sexta-feira, 21 de outubro de 2016

POLÍTICA - Uma Bienal preocupada com a democracia.

Uma Bienal preocupada com a democracia

Por Tereza Cruvinel, em seu blog:

Com homenagens à poeta mineira Adélia Prado e ao pensador português Boaventura Sousa Santos, será aberta amanhã, no estádio Mané Garrincha, a III Bienal do Livro e da Leitura de Brasília (21 a 29 de outubro), um evento lítero-cultural que já encontrou seu lugar na agenda nacional. A programação deste ano reflete as aflições deste momento com a democracia, com os direitos humanos e com a intolerância que ameaça a convivência pluralista. “Precisamos reinventar a democracia se quisermos que ela faça parte da solução”, disse Boaventura em mensagem preliminar ao evento onde, além de homenageado, fará palestra e autografará livros no dia 28.
Os temas dos seminários programados refletem o espírito desta Bienal preocupada com a democracia e com os problemas do mundo: “Deslocamentos: Geopolítica, Cultura, Etnia, Economia e Religião”, “Novas Tecnologias e os efeitos na cultura, economia e vida cotidiana”, “Amor, afetividade e individualidade nos tempos modernos” e “ Vida urbana – Novos espaços, novos caminhos”.

A Bienal tem direção geral de Nilson Rodrigues e produção executiva de Eduardo Cabral. É uma realização do ITS – Instituto do Terceiro Setor, em parceria com a Secretaria de Cultura do GDF e apoiadores privados. Nesta edição, haverá atividades com cerca de 120 escritores convidados, entre brasileiros e estrangeiros, 100 sessões de autógrafos e lançamentos de livros, 80 sessões de contação de histórias para crianças e jovens, 40 apresentações teatrais, além de 10 shows musicais de artistas nacionais e do Distrito Federal. 

Entre os convidados estrangeiros estão a mexicana Guadalupe Nettel, o inglês Theodore Dalrymple, a portuguesa Raquel Varela e o norte-americano Glenn Greenwald. Entre os brasileiros, Renato Janine, Leandro Karnal, Celso Amorim, Márcia Tiburi, Viviane Mosé e Fernando Moraes. Participam da Bienal 170 expositores, desde pequenas livrarias até grandes editoras, oferecendo um painel da indústria editorial e livros a preços módicos. Na curadoria, além de Nilson Rodrigues, estão os escritores Hamilton Pereira, José Rezende e Nicolas Behr e a tradutora Lídia Luther.

No teatro, Jonas Bloch apresentará “O delírio do verbo’, inspirado em poemas de Manoel de Barros, Paulo Betti encenará seu monólogo autobiográfico e Arnaldo Antunes fará um espetáculo especial para o evento. A programação completa
pode ser vista aqui.

Nesta entrevista ao 247, Nilson Rodrigues fala do espírito da Bienal, de seu significado político e cultural e de suas atrações.

Quando você organizou a I Bienal do Livro de Brasília os mais céticos temeram que o evento não se firmasse, por conta das dificuldades para sustentar sua ambiciosa logística ou por receio de que um evento voltado para livros e literatura não atraísse o publico de uma cidade essencialmente administrativa. Agora, na III edição, já é possível afirmar que a Bienal virou uma tradição?

Eu sempre acreditei na vocação cosmopolita da nossa capital. Quando projetamos a Bienal tínhamos convicção de que a resposta da sociedade seria muito positiva. Brasília é patrimônio cultural da humanidade, sedia os corpos diplomáticos e desde a sua fundação se propôs a ser uma cidade moderna, aglutinando os pensamentos e a criatividade de intelectuais como Oscar Niemeyer, Lúcio Costa, Joaquim Cardozo, Darci Ribeiro, entre muitos outros. A Bienal é um projeto de caráter internacional que reúne escritores brasileiros e estrangeiros, debate temas contemporâneos e estimula o mercado do livro. È um esforço para que a cidade continue pensando e refletindo sobre os grandes temas do Brasil e do mundo.

Quais são as dificuldades para organizar um evento desta grandeza e quais foram os obstáculos específicos desta terceira edição, num ano de recessão, ajuste fiscal e patrocinadores retraídos?

Nunca é fácil realizar projetos culturais, principalmente os que se propõem a ser provocadores, questionadores dos modelos de sociedade que temos. A Bienal se afirmou nesses anos como um dos principais projetos de livro e leitura do país, atraindo um grande público e se diferenciando dos demais pela qualidade de sua programação, pelos debates que promove. Nesse momento politico e econômico que o país vive, as possibilidades de parceria e de patrocínios diminuíram. Como a Bienal tem entrada franca para todas as atividades, esses apoios são determinantes. Entretanto, embora as dificuldades e os obstáculos sejam muitos, não podemos parar. Até porque os debates e as reflexões nos iluminam para superar as dificuldades em que vive o país.

A programação deste ano sugere que houve um maior empenho em promover artistas e escritores locais, embora sejam muitos os convidados internacionais e de outros estados. Isso procede?

Desde a primeira Bienal buscamos equilibrar a participação de artistas de Brasilia. Nacionais e internacionais. Nesta edição não foi diferente, há espaço para todos.

Você tem uma avaliação do impacto positivo que as bienais passadas tiveram sobre a dinâmica cultural e especialmente sobre a produção intelectual e a vida editorial da cidade?

Eu sempre penso no público, no cidadão, quando realizo projetos artísticos e culturais. Quando há diálogo com o publico, se o destinatário das ações é alcançado, sempre ha impacto da cultura e nas sua dinâmica. A qualidade da produção intelectual de uma país , de uma cidade depende de vários fatores. Acho que a Bienal ajuda o debate sobre grandes questões que nos afligem, contribui para que esses temas saiam das páginas dos livros e do espaço acadêmico e se encontre com um público mais amplo. E isso tem relevância política, social e cultural.

O homenageado deste ano é o pensador social português Boaventura Sousa Santos, um crítico do capitalismo global e do neoliberalismo, um defensor da radicalização da democracia e da reinvenção do pensamento de esquerda. A escolha guarda alguma relação com a conjuntura política que o Brasil atravessa, marcado pelo arranhão democrático que foi o impeachment e a emergência de um governo ultraliberal que tem sua legitimidade contestada, aqui e lá fora?

A Bienal sempre buscou estar em sintonia coma História e com as questões contemporâneas. Na primeira edição homenageamos o Nigeriano Woylle Soynka, ensaista, romancista, dramaturgo e o primeiro negro africano a ganhar o Prêmio Nobel de literatura. Portanto, um gesto de reconhecimento a contribuição africana à literatura mundial e à formação cultural do nosso país, sabidamente racista e excludente. Na segunda edição, homenageamos o uruguaio Eduardo Galeano, o grande interprete dos sonhos , das dores e das possibilidades da América Latina. Homenagear nesta terceira edição da Bienal o pensador português Boaventura de Souza Santos significa dar destaque às suas reflexões sobre direitos humanos e aos descaminhos do modelo de democracia representativa, que garroteada pelas corporações e pelo poder econômico representa, menos do que se quer e se necessita, os interesses da maioria das sociedades. Essa crise não é só no Brasil, em todo o ocidente temos visto o desgaste desse modelo. Daí a importância de homenagear um intelectual como Boaventura de Souza Santos, pelo seu compromisso com a democracia, com as possibilidades de ampliação de participação dos cidadãos nos processos políticos.

Você é ativista cultural, produtor de cinema, empresário do setor e formulador de políticas para cultura. Como se sai com estes pais numa cidade que gravita em torno do poder e não possui exatamente uma infraestrutura cultural consistente?

Brasília tem hoje uma demanda muito grande por atividades culturais. Há muitas pessoas produzindo arte e cultura e um público crescente, interessado. Paradoxalmente, a maioria dos espaços culturais está fechada ou funcionando precariamente. È uma tragédia urbana! Não há politicas públicas de cultura que dêm conta de, pelo menos, aproximar-se dos que estão excluídos, que estão na periferia, à margem. Se o Teatro Nacional está fechado h[a três anos, é possível imaginar como deve ser a oferta nas cidades satélites, de espaços para fruição e formação. O pouco que é feito é para as classes medias e altas. Essa realidade está presente em quase todos os estados, salvo uma ou outra exceção. A responsabilidade é dos governos e das corporações, que enxergam mais seus interesses próprios em detrimento do conjunto da sociedade.

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