quinta-feira, 25 de junho de 2009

AMÉRICA LATINA - Alto risco social.

A região chega a essa crise com fortalezas macroeconômicas, mas com déficits sociais marcados. As prioridades devem estar claras: é preciso garantir o trabalho, a educação, a saúde e a dignidade do povo.

A análise é de Bernardo Kliksberg, economista e assessor de governos e organizações internacionais. Ele também é co-autor, junto com o prêmio Nobel Amartya Sen, do livro "Primero la gente". O artigo foi publicado no jornal El País, 24-06-2009. A tradução é de Moisés Sbardelotto.

A América Latina cresceu 4,8% em 2005, 5,6% em 2006, 5,7% em 2007, e 4,6% em 2008. Por consequência de uma crise que ela não gerou, mas da que é mais uma vítima, suas economias decrescerão em 2009 cerca de 0,3%, segundo o Cepal [Comissão Econômica para a América Latina e o Caribe], ou 0,6% de acordo com o Banco Mundial. Será uma queda muito forte. Está sendo produzida por diversas vias. Em cinco de suas maiores economias, as exportações caíram um terço entre agosto e dezembro de 2008. Os fluxos de investimentos podem cair a menos da metade neste ano. O turismo está sendo afetado.

As remessas migratórias estão diminuindo. São de 18% a 24% do Produto Interno Bruto de Honduras, Guiana, Haiti, Jamaica e El Salvador, e de 6,6% a 12,1% do PIB da Nicarágua, Guatemala, República Dominicana, Bolívia e Equador. Reduziram-se no último ano em 8% na Guatemala, e 11% no México. Por exemplo, as remessas da Espanha foram, em 2008, 7,1% menores do que no ano anterior.

A região chegou a essa crise com fortalezas macroeconômicas, mas com déficits sociais marcados. Mais de um terço de sua população é pobre, e a desigualdade é a pior de todos os continentes. A combinação da crise com essas vulnerabilidades pode ser explosiva se não forem adotadas políticas mais adequadas.

Entre os possíveis efeitos sociais da crise, encontram-se:

1. Aumentará o desemprego. A taxa de desemprego urbano pode crescer segundo a OIT, que foi aumentando suas projeções negativas de 7,5% a 8,4% e depois para 8,8%. Seriam entre 2,3 milhões e 3,2 milhões de novos desempregados, que elevariam o total a 18,2 milhões ou 19,1 milhões.

2. Os mais afetados serão os jovens. Em nove países analisados, a taxa de desemprego juvenil mais do que duplica a taxa de desemprego total. Mesmo em uma das economias mais prósperas como a do Chile, 20,2% dos jovens estão desempregados. Na Colômbia, os jovens desempregados são 978 mil, 50% do total nacional. No Peru, são 22%. Um em cada quatro jovens latino-americanos está fora do mercado de trabalho... e do sistema educativo.

A crise pode agravar ainda muito mais a situação dos jovens. Isso já está ocorrendo nos Estados Unidos. Um estudo do Center for Labor Market de maio conclui: "Quanto mais jovem, mais será expulso do mercado de trabalho". Na medida em que se reduzem os postos de trabalho disponíveis, os jovens, os pobres e os de menor educação estão ficando fora. Também está se produzindo o fenômeno de que os jovens graduados com título universitário estão ingressando em trabalhos que não requerem mais qualificação do que um título de nível médio, substituindo assim os seus pares menos educados.

3. As mulheres podem ser mais discriminadas no trabalho. Já anteriormente à crise, em 2006, a taxa de desemprego feminina era 56% superior à masculina, e sua renda era de 72% da dos homens. Mas, nesta crise, essas brechas estão se agudizando. Entre outras coisas, continuam atuando as estruturas machistas que seguem vendo o homem como o sustento real do lar e desvalorizam o papel trabalhista conquistado com tanto esforço pela mulher.

As mulheres também verão aumentadas as suas responsabilidades familiares por causa das dificuldades econômicas. Em um mercado de trabalho muito mais tenso e disputado, se tornará ainda mais difícil a situação das mulheres solteiras chefes de família, que são um pilar da família na região. Em média, 33% dos lares são dirigidos por elas. No caso da Nicarágua, são 40%, no México, 26%. A Cepal estimou que, sem a barreira de proteção que são as trabalhadoras à frente dos lares, a pobreza seria 10% maior na América Latina.

Também pode se produzir, como ocorreu em crises recentes em diversos países da região, um aumento das já muito altas taxas de violência doméstica, que vão de 10% a 38% segundo o país. O estresse socioeconômico agudo que a crise causa em muitas famílias pode ser um disparador dessas condutas aberrantes que recém começam a ser denunciadas e sancionadas como devem.

4. Elevação do número de trabalhadores pobres. A OIT projeta que, em um cenário passivo, se não houver respostas públicas à altura, o número de trabalhadores com emprego mas cujos salários são menores do que o limiar da pobreza pode subir em cinco milhões em 2009.

5. Crescimento da vulnerabilidade na saúde e na proteção social. A cobertura social da região é limitada. Quase quatro de cada 10 empregados urbanos carecem de proteção em saúde e segurança social. O crescimento do trabalho informal por causa da crise aumentará a população vulnerável.

Por outro lado, apesar dos progressos, a região tem indicadores comprometidos em mortalidade infantil (10 vezes a dos países nórdicos) e mortalidade materna (15 vezes a do Canadá). Podem se potencializar pelo aumento da pobreza em suas diversas expressões.

6. Os riscos em deserção escolar. A América Latina tem 110 milhões de pessoas que não terminaram o Ensino Fundamental, e só um de cada dois jovens termina o Ensino Médio. Na crise, o trabalho infantil, que leva ao abandono da escola nos primeiros níveis, pode aumentar significativamente. Há 18 milhões de crianças menores de 14 anos que trabalham. O ingresso cedo ao mercado de trabalho dos jovens de menos recursos também pode fazer com que se encurtem os anos de estudo, em um mundo em que o aumento do capital educativo é fundamental para as pessoas.

7. O fortalecimento das "armadilhas da pobreza". O Banco Mundial estima que haverá seis milhões de novos pobres na América Latina neste ano. Muitos deles estarão fechados em "armadilhas" que só políticas públicas agressivas podem quebrar.

O círculo perverso que se produz é conhecido. Sendo crianças de lares pobres, deverão trabalhar, abandonarão a escola, só poderão ter acesso a empregos marginais, carecerão de proteção social e reproduzirão a pobreza. Uma alta porcentagem das crianças nascidas em lares onde seus pais não terminaram o Ensino Fundamental também não a termina. No México, em 2008, mostrando como essas "armadilhas" funcionam, 83% dos empregados com Ensino Fundamental incompleto não tinham segurança social, frente a 45% da população global.

A região tem, apesar de seus avanços macroeconômicos, um forte calcanhar de Aquiles social. Suas desigualdades agudas incidem nos altos níveis da pobreza. O seguinte fato é ilustrativo: apesar de produzir alimentos que poderiam abastecer várias vezes a sua população, 16% das crianças estão desnutridas. De 2005 a 2007, mesmo sendo época de bonança econômica, ao subir o preço dos alimentos, o total de pessoas desnutridas cresceu fortemente em seis milhões, chegando aos 51 milhões. Na América Latina, a questão não é a produção, mas sim o acesso aos alimentos.

A crise irá requerer que se preste máxima atenção ao social. As ideias de ajuste ortodoxo praticadas em décadas anteriores podem ser fatais, acentuar todas as tendências referidas e gerar altíssimos níveis de conflito.

Entre outras áreas, será necessária muita política contracíclica: investir fortemente em obras públicas, potencializar o mercado interno, proteger a pequena e a média empresa, estender o crédito, blindar os investimentos em educação e saúde, encarar especialmente o desemprego jovem e as discriminações de gênero, ampliar a cobertura social...

Como financiar tudo isso? Há muito terreno a ser explorado, desde os elevados níveis de evasão fiscal, passando pela possibilidade de refazer o anacrônico pacto fiscal atual, até o gasto militar, que cresceu 30,54% nos últimos dez anos.

Será preciso, ainda, junto à política pública de qualidade, responsabilidade social no nível da empresa privada, mobilizar o voluntariado e aumentar substancialmente os níveis de acordo social.

Uma sociedade cada vez mais ativa exige que, diferentemente dos anos 80 e 90, as prioridades, desta vez, devem ser claras. Em primeiro lugar, deve ficar garantido o direito ao trabalho e à dignidade das grandes maiorias da população que estão em sério risco.
Fonte:IHU

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