domingo, 28 de junho de 2009

ANOS DE CHUMBO - Arquivos de uma tragédia brasileira.

Vitor Hugo Soares
De Salvador (BA)

Demolidos emocionalmente pela longa espera da notícia que não chega, há entre os parentes dos desaparecidos quem desconfie que as surpreendentes e polêmicas revelações do major Curió na entrevista ao "Estadão" esta semana, sobre a Guerrilha do Araguaia, tenham mais o propósito de confundir do que o desejo sincero de esclarecer este episódio tenebroso da história recente do País. Segundo o oficial da reserva do Exército, 41 guerrilheiros foram executados, depois de presos e amarrados.

Teorias de conspirações à parte, tudo é possível, inclusive algo exatamente assim, ou parecido, em uma terra de absurdos. Principalmente quando se desliza sobre terreno alagadiço, mais coberto de sombras que as causas da morte do astro pop, Michael Jackson, quinta-feira (25), pois não se trata apenas das obscuridades do coração e dos sentimentos, nem daquelas produzida pelas imensas árvores milenares da Amazônia que ainda restam em Xambioá. Fala-se, neste caso, principalmente da zona de neblina causada pelos desleais e desumanos jogos de interesse da política, da grana, das ideologias e do poder.

Ainda assim resta muito de positivo e alentador na matéria assinada pelo repórter Leonencio Nossa no "Estado de S. Paulo" - tanto para o jornalismo que ultimamente se tem praticado por aqui, como para a parte da sociedade - em especial a formada pelas famílias das vítimas - que aguarda há mais de três décadas não apenas pelos corpos de seus entes queridos, mas também a verdade sobre o que se passou com eles naqueles tempos temerários.

O fato é: raramente se viu revelações de uma reportagem ou entrevista sobre este episódio cavernoso despertar tamanha atenção e tantos propósitos de esclarecimentos. Além disso, não recordo de outra matéria jornalística recente que tenha merecido tanta repercussão no seio da própria mídia em geral, mas igualmente em redutos de opinião diversificados, relevantes e significativas, quanto esta conversa com o oficial do Exército brasileiro com papel preponderante no combate à guerrilha.

Onze baianos, quase todos jovens, constam da relação dos 60 desaparecidos no Araguaia há mais de três décadas. Dez deles tiveram seus nomes divulgados mais uma vez pela secção estadual do grupo Tortura Nunca Mais, coordenado por Diva Santana (cuja irmã Dinaelza Santana Coqueiro e o cunhado Wandick Coqueiro estão entre os que não voltaram para casa).

Estudante de Jornalismo e de Direito na UFBA, na época pré-guerrilha, convivi muito proximamente com quase todos eles. Na faculdade, na resistência das ruas, no Restaurante Universitário, nos shows de novos e velhos baianos, nas sessões do Clube de Cinema da Bahia, nos fantásticos carnavais atrás dos trios elétricos, na Barraca Botafogo, nos bares e na vida política e boêmia da cidade, enquanto eles andavam por Salvador.

Dois deles, Rosalindo Souza (ex-presidente do histórico Centro Acadêmico Ruy Barbosa - CARB) e Dermeval Pereira (clássico e culto beque central do time da Faculdade de Direito, fã ardoroso de Caetano, dos Beatles e de Waltinho Queirós), ex-colegas de turma, estão na lista de melhores e mais leais amigos de sempre. Outros dois, Dina e Antonio Monteiro, "casal mais bonito de Geologia e da UFBA dos anos 60/70", integram a lista permanente da admiração maior. Mas todos um dia sumiram "para nunca mais", como canta o baiano Gil, que os três amigos admiravam igualmente.

Esta semana o presidente Lula afirmou: "é importante levar a sério" (espera-se que a começar por ele próprio), os documentos revelados pelo "Estadão" sobre a repressão à Guerrilha do Araguaia, escondidos durante 34 anos por Curió. E justificou em uma emissora de rádio: "uma mãe que tem um filho desaparecido e não sabe o paradeiro dele, essa mãe só vai se conformar quando enterrar o filho". Um sentimento que, de outra maneira de querer, é também dos amigos, posso acrescentar.

O presidente do Supremo Tribunal Federal, Gilmar Mendes, defendeu igualmente a abertura de todos os documentos e segredos do tempo da guerrilha, com outro argumento forte: o direito à verdade. "Eu acho que há um direito à verdade. Se de fato esses documentos existem, eles devem ser mostrados". O ministro da Defesa, Nelson Jobim, também falou grosso demais como sempre, mas dá sinais de agir de menos. Criou há dois meses um grupo responsável por retomar as buscas pelos corpos dos guerrilheiros, mas até esta semana, nem sequer a composição dos integrantes havia sido definida totalmente. Além disso, na comissão de Jobim os parentes e representantes das vítimas constam apenas como observadores.

Mesmo cético por dever de profissão, o jornalista prefere acreditar que algo de novo se move das sombras de Xambioá, na direção da luz dos fatos e da justiça. Seria doloroso demais se essa nova esperança se transformasse, para a família dos desaparecidos e para a sociedade, em mais uma farsa das tantas que cercam esta tragédia brasileira dos anos 70, nas selvas do Araguaia.

A conferir.

Vitor Hugo Soares é jornalista, editor do site-blog Bahia em Pauta
Fonte:Terra Magazine.

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