Celso Lungaretti
"Canta, canta passarinho,
canta, canta miudinho
na palma da minha mão"
("Canta Coração", de Geraldo
Azevedo e Carlos Fernando)
Não há nada de realmente inédito na entrevista que Sebastião Curió Rodrigues de Moura, o major Curió, concedeu a O Estado de S. Paulo neste domingo, 21 (Curió revela que Exército executou 41 no Araguaia) ou nos arquivos que ele entregou ao jornal.
A contabilidade macabra agora tem cifras exatas, fornecidas pelo próprio comandante das operações de cerco e extermínio dos guerrilheiros, em 1973/75: de 67 militantes que as Forças Armadas mataram no Araguaia, foram 41 os aprisionados com vida e eliminados a sangue frio ("amarrados e executados, quando não ofereciam risco às tropas", explicita a reportagem). Acreditava-se que fossem "só" 25.
O jornal constata que a verdade admitida por Curió "contraria a versão militar de que os mortos estavam de armas na mão na hora em que tombaram". E acrescenta: "Muitos se entregaram nas casas de moradores da região ou foram rendidos em situações em que não ocorreram disparos".
A extrema-direita passa a vida derramando lágrimas de crocodilo sobre o túmulo do tenente Alberto Mendes Júnior, morto para não fornecer informações que dificultassem ainda mais a fuga de Lamarca e seu punhado de guerrilheiros, cercados por milhares de militares em Registro, SP.
Embora condenável, inaceitável e injustificável, foi uma decisão tomada em circunstâncias extremas. Bem diferente de, ao arrepio das Convenções de Genebra e da honra militar, abaterem-se, como cães, 41 seres humanos indefesos -- afora tantos outros exterminados da mesma forma nas cidades, como as vítimas da Casa da Morte de Petrópolis (RJ).
Virou-me o estômago ficar sabendo do destino dado aos restos mortais de Antonio Ribas, que conheci em 1968 como presidente da União Paulista de Estudantes Secundários. Um rapaz grandalhão, simpático e bonachão, que conseguia manter a ordem nas assembléias estudantis com sua voz forte — mesmo tendo a desvantagem de ser o único militante do PCdoB entre dezenas de adversários. Ninguém o imaginaria no papel de guerrilheiro.
“Morto em 12/1973. Sua cabeça foi levada para Xambioá” - esta curta citação do arquivo de Curió esclarece o que foi feito de um um homem idealista a ponto de engajar-se, no pior momento, numa luta desigual e quase suicida. Nem seu cadáver respeitaram, profanando-o como os jagunços faziam com os cangaceiros.
Exatidão dos detalhes à parte, já se sabia de tudo isso. E também que as ordens para que fossem perpetradas as atrocidades provinham dos altos escalões, como sempre ressaltei ao refutar a lorota de que os subalternos agiam por conta própria. Eis o que o Estadão informa:
"O arquivo dá indicações sobre a política de extermínio comandada durante os governos de Emílio Garrastazu Medici e Ernesto Geisel por um triunvirato de peso. Na ponta das ordens estiveram os generais Orlando Geisel (ministro do Exército de Medici), Milton Tavares (chefe do Centro de Inteligência do Exército) e Antonio Bandeira (chefe das operações no Araguaia). Curió lembra que a ordem dos escalões superiores era tirar de combate todos os guerrilheiros. “A ordem de cima era que só sairíamos quando pegássemos o último.”
Fica, mais uma vez, comprovado que não se fará verdadeira justiça punindo-se apenas os executantes dessas ordens hediondas e poupando-se os mandantes.
Os Curiós e Ustras da vida não passavam de instrumentos de uma política sanguinária ordenada por Médici e, no mínimo, consentida por Geisel, com a cumplicidade de toda a cadeia de comando das Forças Armadas e propiciada pelo prévio estupro à Constituição cometido pelos signatários do AI-5. Repugna à minha consciência ver só os lambaris na berlinda, enquanto os tubarões continuam aclamados a ponto de manterem colunas na grande imprensa.
É positivo que as revelações e indicações de Curió eventualmente venham a propiciar a descoberta de mais algumas ossadas e a identificação de outras.
Mas, tudo isto já poderia ter sido feito no ano passado, se houvesse mais empenho oficial em dar satisfações às famílias sem mortos para enterrar e/ou sem informações precisas sobre o destino de seus entes queridos.
Pois, em sua edição de 27/02/2008, a IstoÉ já alertara o Governo, a partir do próprio título de sua matéria: Este homem sabe onde estão os cadáveres do Araguaia.
O homem, claro, era o próprio Curió. Eis o relato da revista:
"...com o cerco dos militares, os guerrilheiros foram empurrados para um recuo no Castanhal dos Ferreira. De lá, eles se dirigiram para a região da Palestina. Neste local, no Natal de 1973, iniciou-se a fase final do combate na qual as forças do governo mataram mais de 20 guerrilheiros antes do Réveillon. “O pessoal dos direitos humanos fica procurando corpos em Xambioá (base militar), mas muitos corpos estão enterrados na Palestina, que na época era uma vila com uma rua de terra”, revela. Contra essa declaração, existe o fato de que sua comprovação custaria caro. Daquela vila, a 286 quilômetros de Belém, nasceu uma cidade que hoje conta com 7.500 habitantes. E para revirar o solo seria preciso demolir casas e esburacar ruas."
Curió também deu, então, esta declaração sintomática à IstoÉ: "Eu não tenho o direito de levar para a sepultura os dados que tenho e que eu sei”.
Ou seja, estava ansioso para contar tudo que sabia. Bastaria que lhe perguntassem.
Mas, como a repercussão do que sai na IstoÉ não é nem de longe comparável à do Estadão dominical, as autoridades preferiram fazer ouvidos de mercador, evitando mexer nesse vespeiro.
Afinal, além das despesas com demolições e escavações, há o fato de que cada ossada trazida à luz (do dia e dos flashes...) representará uma acusação gritante à bestialidade da ditadura militar. Muitos ainda preferem o silêncio.
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