Mauro Santayana
Os anarquistas do fim do século 19 – período em que foram assassinados reis, rainhas e chefes de Estado republicanos – desdenhavam a morte acidental de pessoas comuns. "Não há inocentes". Essa máxima servia também para os executores, que morriam durante os atentados, ou eram posteriormente condenados à morte. Nesse caso, o Estado, para se vingar dos mortos, abatia simples suspeitos nas ruas, ou os sentenciava à guilhotina nos tribunais. Há centenas de ensaios que buscam explicar a violência dos anarquistas, seja como resistência contra os tiranos e exploradores do povo, seja como comportamento patológico. É provável que todas as explicações estejam corretas, porque a verdade tem muitas orelhas.
Em Nous sommes tous des assassins, o cineasta André Cayatte discute a débil linha que separa o assassinato político do crime comum. O tema é conhecido: um jovem desequilibrado é recrutado para matar em nome da Resistência. Terminada a guerra, continua a matar. Preso, discute, com seus companheiros, o seu fado, e concluem que ele fora uma vítima, indireta ou direta, da ordem de domínio. Enfim, não há inocentes. Feito esse excurso, vale a pena lembrar que não convém desprezar a aparência. Conforme a peça de Pirandello, Cosi è (se vi pare), as coisas são como parecem ao observador.
Se somos todos assassinos, como o jovem matador de Cayatte, somos todos responsáveis pelo que ocorre no Senado. Colocar a culpa apenas no senador José Sarney não é correto. Pouquíssimos são os de túnica realmente cândida no plenário do Senado. O Congresso foi perdendo o bom senso, pouco a pouco, com a aceitação prazerosa de crescentes privilégios. É claro que havia descompasso entre certas vantagens e os postulados éticos. Essa anomalia, permitida pela regulamentação interna do Parlamento, foi considerada normal. Tanto é assim que o radical senador Arthur Virgílio, em recente entrevista à televisão, disse que se utilizou da vantagem das passagens, porque ela estava dentro dos costumes da Casa, mas nunca a utilizou com sua namorada, e sim com sua mulher. Para o erário, pouco importa quem se tenha beneficiado e, do jeito em que andam os nossos costumes, tampouco importa à sociedade. Mulher ou namorada, não faz diferença.
Queixa-se o senador Sarney de que todos os raios estejam caindo sobre a sua cabeça, em momento difícil de sua vida pessoal, e não lhe falta razão. Ele pode ter sido eventualmente omisso, por não manter estrita vigilância, fosse como presidente da Casa ou apenas senador pelo Amapá, pelo que houve, e mais ainda quando pessoas de sua família se encontram sob acusação. Mas dessa omissão foram também culpados todos – todos, mesmo – os seus predecessores, na presidência da Casa, e seus colegas do plenário. Se cabe aos senadores zelar pela Federação republicana, cabe-lhes, antes disso, cuidar da própria Casa. O senador Pedro Simon apela para o bom senso de Sarney, e o aconselha a deixar o cargo. O veterano parlamentar sabe como começam os movimentos de desestabilização política, porque conheceu vários deles.
Mais do que Sarney, mais do que o Senado, está em jogo a Federação. Sem uma Câmara que a represente, o Estado unitário, com todos os seus defeitos, será imposto pela Câmara dos Deputados. É nisso que mora o perigo: a estabilidade republicana depende do sistema federativo, mesmo precário, como é o nosso. Sem Federação, já disseram tantos, não há República.
Durante a Convenção Constitucional de 1787, em Filadélfia, o moderado John Dickinson, delegado do Delaware, foi claro nesse postulado: "One source of stability is the double branch of legislature. The division of the country into distinct States forms the other principal source of stability". O sistema bicameral possibilita o diálogo conciliador no Poder Legislativo e, na representação direta da Federação, o Senado modera o predomínio dos estados mais populosos.
Retornando ao início de nossas reflexões, todos nós – homens públicos, jornalistas, pensadores políticos e cidadãos eleitores – somos responsáveis pelo Estado, seja no exercício do poder, seja com o voto e a influência política. Simon tem razão: a construção do Estado democrático, que reiniciamos em 1985, se encontra em perigo. Cabe ao senador Sarney atender ou não ao conselho do colega gaúcho. A renúncia à presidência, em favor da estabilidade constitucional, não o diminuirá diante da nação.
Fonte:JB
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