Naom Chomsky
Por David Brooks/La Jornada
Quando se fala da "crise", quase todos se referem à financeira, visto que afeta directamente os ricos, mas a crise dos bilhões de seres humanos que passam fome - entre eles cerca de 40 milhões nos Estados Unidos - não é a que tem mais urgência, porque todos os que a sofrem são pobres, afirmou Noam Chomsky.
Com voz tranquila, Chomsky cuidadosamente destruiu os mitos do chamado mercado livre, e documentou de maneira sintética as muitas situações de crise - a econômica e a financeira, a do militarismo, a do ambiente e a alimentar, entre outras - e as suas ligações comuns, construindo uma radiografia de um sistema que se mascara de "democracia", mas cujo objetivo final é socializar os prejuízos, privatizar os lucros e defender o privilégio de uma cada vez mais reduzida minoria rica, com consequências cada vez mais sinistras para as maiorias e para o próprio planeta.
É necessário "desmontar o edifício de ilusões" que se vende como democracia de mercado livre para que o ser humano sobreviva, e para isso exige-se um confronto com o modelo que visa proteger os interesses da "minoria da opulência contra as maiorias", afirmou.
"O povo paga os custos"
Chomsky discursou na passada sexta-feira, perante cerca de 1.500 pessoas, do pódio da famosa igreja Riverside, o mesmo em que Martin Luther King Jr. proferiu o seu histórico discurso de 1967 contra a guerra do Vietnã e o sistema imperial dos Estados Unidos, onde também se escutou Nelson Mandela e, mais recentemente, Arundhati Roy - num evento organizado pelo Fórum Brecht, um centro de investigação independente de esquerda.
"As crises de hoje estão interligadas de diversas formas", afirmou, e algumas são mais prioritárias que outras, pela simples razão expressa por Adam Smith de que "os principais arquitetos das políticas garantem que os seus próprios interesses são os que predominam, sem se importarem com os custos".
E Chomsky, como sempre, deu exemplo atrás de exemplo, documentando a história. Falou sobre a história do Haiti, desde os franceses e a invasão dos EUA de Woodrow Wilson, até à manipulação feita por Washington do desafio de Jean Bertrand Aristide, tanto pelo republicano George Bush (pai) como pelo democrata Bill Clinton, impondo o modelo neoliberal, com o resultado inevitável de "destruir a soberania econômica" deste país, que está agora nas linhas da frente da crise alimentar.
"Esta história é muito parecida em todo o mundo", acrescentou, apontando o Bangladesh e dezenas de exemplos mais.
"A raiz comum das crises de hoje no Sul e no Norte é a mudança para o neoliberalismo que se dá nos anos setenta", declarou. Isto marcou o fim do crescimento sustentável da era do pós-guerra, conhecida como a "era dourada do capitalismo", com o seu Estado-providência e os seus aumentos a nível de rendimentos e de direitos.
Hoje em dia, "o livre fluxo de capital cria um Senado virtual que realiza um referendo instantâneo que veta tentativas de beneficiar as maiorias à custa dos seus interesses".
Agora, com a atual crise que afecta os ricos, adopta-se a mesma estratégia de sempre: "a população paga os prejuízos e assume o risco, enquanto os lucros são privatizados".
Do púlpito da igreja Riverside em Nova York, Noam Chomsky disse no fim-de-semana que perante as crises existentes, o sistema neoliberal protege as minorias abastadas em detrimento das maiorias
Também se focou no plano da política externa, dizendo que Washington não pretende abandonar tão rapidamente o Iraque, e advertiu que a nova abordagem sobre o Paquistão e o Afeganistão é um jogo muito perigoso, uma vez que ameaça a paz mundial e a sobrevivência humanas, por causa das armas nucleares aí existentes.
Acrescentou que é alarmante que um "assassino membro das forças especiais de olhos enlouquecidos", o general Stanley McChrystal, tenha sido nomeado comandante das forças norte-americanas no Afeganistão.
Por outro lado, assinalou que agora é o momento-chave para definir a sobrevivência humana perante a crise climática.
"Temos de enfrentar talvez o mais importante: a forma de inverter o modelo corporativo-estatal estabelecido durante o pós-guerra", promovido por empresas de automóveis, petrolíferas, entre outras, que levou a esta crise ambiental e outras.
Na sua análise das crises do mundo, disse que para impor políticas que não reflitam o interesse das maiorias nos Estados Unidos e noutros países, recorreu-se menos à força do que "ao controle da opinião pública através da indústria de relações públicas, com o objetivo de criar consenso".
Mas impera sempre, desde os inícios desta república, a noção de proteger os "interesses da minoria abastada" contra todos os demais, com conceitos de que "uma minoria inteligente tem que governar uma maioria ignorante e intrometida". Agora isto é manejado por uma "elite tecnocrática", mas com a mesma doutrina.
Destacou a resistência popular para enfrentar o projeto da elite, e sublinhou que as rebeliões dos anos 60 "tiveram um efeito civilizador". Acrescentou que sempre se lançaram "ataques da elite contra a democracia" e que o modelo do mercado livre corporativo continua a ser o "obstáculo à eficiência e à tomada racional de decisões racionais".
"Não há nenhuma razão para permanecerem passivos", disse ele à sua audiência de esquerda. "Por que não ocupar uma fábrica (em referência aos cortes da General Motors) para a converter em centro de produção de transportes de massa? Não é uma questão exótica. Que os trabalhadores controlem as suas fábricas é tão tipicamente americano como a torta de maçã".
Na verdade, acrescentou, parte do objetivo dos administradores do sistema atual é "apagar todas as memórias das lutas" sociais, mas advertiu que suspeita que estas tendências "continuam latentes" nos mais desfavorecidos e "podem ser despertadas". Este é um momento propício para o fazer".
A tarefa é superar o "déficit democrático", acrescentou, e "promover uma sociedade democrática, que funcione na realidade." Entre as chaves para o conseguir identificou a renovação dos sindicatos, a luta educativa e cultural e a necessidade de "desmantelar o edifício de ilusões" pela minoria que governa nas chamadas democracias formais.
A crise fundamental de hoje é, talvez, a do "déficit democrático", resumiu, esse fosso que existe entre os interesses das grandes maiorias e as políticas dos governantes.
Tradução de Rui Maio para o Esquerda.net.
Fonte:Revista Fórum
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