segunda-feira, 9 de agosto de 2010

ECONOMIA - Crise americana: os mercados voltam a reinar.

Crise: três anos depois, os mercados voltam a reinar.

Passaram-se três anos desde que o tecto começou a desabar. Assim sendo, o que aconteceu desde então? Simples: muito pouco. Os mercados (e os banqueiros) ainda dominam. Por Philip Stephens, Financial Times

E apenas passado pouco mais de um ano desde que os mais covardes abasteceram as suas despensas com água mineral e comida enlatada, temendo que o colapso financeiro pressagiasse uma derrocada rumo à anarquia.

Lembra-se das declarações grandiosas proferidas por líderes políticos à medida que o sistema financeiro global cambaleava à beira da autodestruição? As promessas e garantias vinham da esquerda, da direita e do centro – de Gordon Brown e Barack Obama, de Angela Merckel e Nicolas Sarkozy, de bancos centrais e do Fundo Monetário Internacional.

As finanças, asseguravam-nos, seriam removidas do seu pedestal dourado. A economia real reafirmaria a sua primazia sobre o sector financeiro. Os dias de glória do capitalismo “laisser faire” do Consenso de Washington tinham acabado. As economias mais ricas do mundo voltariam as suas atenções para estimular a engenharia real, não a financeira.

Uma ou duas coisas mudaram realmente. As ciências económicas foram expostas como uma disciplina baseada em fé. Escravos de longa data de expectativas racionais e de teorias da eficiência dos mercados retornaram aos fundamentos e redescobriram Keynes. Um alto posto no Goldman Sachs costumava conferir um toque de classe, bem como um jacto particular. Os banqueiros perderam a sua aura de respeitabilidade.

A desonra pública, porém, parece ser um preço baixo a pagar pela calamidade que se abateu sobre todos os restantes. Um executivo de um banco que conheço há muito tempo disse-me que espera receber o mesmo número de milhões que sempre recebeu.

Ocorreu também, é claro, uma mudança realmente grande: centenas de milhões de dólares em activos tóxicos que no passado repousavam na contabilidade dos bancos foram amontoados no déficit público causado pela recessão induzida pelo colapso. As famílias estão a pagar a conta dos banqueiros através de impostos crescentes, serviços públicos de pior qualidade e mais desemprego.

A determinação política rendeu-se ao medo. Ninguém bradou com maior eloquência do que Sarkozy sobre as perversidades dos mercados liberais. Esse seria o momento, disse-nos o presidente da França, em que o capitalismo seria refeito à imagem do mercado social europeu. Tudo isso, contudo, foi antes que a crise da dívida soberana grega sitiasse a zona do euro. Agora Sarkozy permanece acordado na sua cama noites a fio temendo que a França possa perder sua classificação de crédito AAA.

Sarkozy não está sozinho. Enquanto procuram reduzir enormes déficits públicos, os políticos ocidentais em quase todas as partes estão sob o jugo dos mercados de capital globais. David Cameron não hesitou a respeito: o Primeiro-Ministro britânico diz que está a cortar radicalmente os gastos com o Estado do Bem-Estar e a regularizar o papel global do país porque o Banco da Inglaterra (o BC) assegurou que as agências de classificação de risco não se satisfariam com nada menos do que isso.

As agências de classificação de risco, lembra-se delas? Há quem se possa lembrar de que essas mesmas organizações foram profundamente cúmplices na tramóia que fez instrumentos de dívida sem valor serem recondicionados para parecerem títulos financeiros de primeira linha. Tenho certeza de ter ouvido políticos dizerem que elas seriam colocadas no seu devido lugar. Isso nunca aconteceu. As agências de classificação não se arrependeram; e agora elas reinam uma vez mais.

Desde o início, a crise estava repleta de ironias. Um dos grandes motivos que explicam por que tamanha quantidade de dinheiro chafurdava em torno do sistema, pronta para ser emprestada a americanos compradores de moradias que jamais conseguiriam pagar os empréstimos, foi que grande parte dos países emergentes do mundo interpretou o Ocidente ao pé da letra.

Depois do colapso financeiro do fim da década de 90, a Ásia aprendeu de cor o catecismo da prudência fiscal do FMI. O dinheiro que ela subsequentemente economizou foi emprestado ao Ocidente perdulário, para respaldar o crédito fácil que deu ao mundo os financiamentos imobiliários de alto risco (os “subprime”) e os títulos que têm como garantias carteiras de empréstimos (os CDO).

A maioria dos europeus, é claro, colocou a culpa do colapso no desenfreado capitalismo anglo-americano, só para descobrir que suas próprias instituições foram completamente cúmplices. Enquanto Merkel denunciava os fundos de hedge e os fundos de private equity (na realidade, relativamente inocentes na calamidade), constatou-se que os bancos regionais estatais da Alemanha foram um dos jogadores mais entusiastas no casino.

Nada disso tem a intenção de absolver governos e órgãos reguladores da responsabilidade pelo colapso. O então governo trabalhista do Reino Unido contentou-se em olhar para o outro lado enquanto o sector financeiro continuava a gerar as receitas fiscais que financiavam o gasto social. A Grécia estava a deturpar a contabilidade muito antes que a maioria tivesse ouvido falar da AIG. Alan Greenspan e Ben Bernanke, do Fed (o banco central dos EUA), cometeram o erro de acreditar na sua própria propaganda.

Agora as autoridades dizem-nos que tomaram providências para sanar esses erros. Alguns governos instituíram impostos sobre lucros extraordinários que incidem sobre os grandes bancos; os EUA aprovaram um regime regulatório mais rígido; os salários com gratificações exorbitantes agora incluem um ténue vínculo com desempenho. O comité de reguladores da Basileia está prestes a impor exigências de capital mais rígidas – não antes de 2018.

Ainda que sejam meritórias, tais medidas parecem ser meros paliativos quando contrapostas à capacidade dos mercados de capital de causarem danos económicos. As instituições financeiras continuam a obter vastos lucros com actividades de intermediação descritas por Adair Turner, que chefia a FSA, órgão regulador do sector financeiro do Reino Unido, como basicamente inúteis. Turner, porém, tem sido uma voz praticamente solitária ao sugerir uma reavaliação fundamental.

A crise na zona do euro mostra como os instintos de manada dos mercados de capital podem desestabilizar um continente inteiro. A consequência foi obrigar os governos europeus a empreender uma corrida prematura e arriscada para reduzir drasticamente os seus déficits fiscais antes que a recuperação económica estivesse garantida.

Com uma pequena ajuda das agências reguladoras, os bancos já podem dizer-se devidamente testados para o stress, mas a instabilidade sistémica persiste. Os mercados internacionais moveram-se bem além da capacidade dos políticos de compreendê-los, que dirá supervisioná-los, adequadamente. Essa falha da governança política em acompanhar o ritmo da integração económica global é tão evidente agora como foi em 2007.

Mesmo se os políticos souberem reconhecer melhor os riscos da interdependência e as vulnerabilidades de instituições e instrumentos financeiros particulares, ainda estão longe de um consenso sobre como dividir a responsabilidade pela supervisão global. Portanto, três anos depois, as coisas estão praticamente como estavam, excepto que a maioria de nós está mais pobre. Os mercados reinam. OK?
Fonte:Esquerda.net

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