Em Portugal como em França, a Direita fabrica e dissemina representações dos pobres em que se amalgamam caoticamente indolência, criminalidade, impermeabilidade cultural e ameaça à ordem.
Afundado em impopularidade a 20 meses das eleições presidenciais, Sarkozy deixou cair a máscara e voltou ao registo de extrema-direita que marcara a sua ascensão fulgurante enquanto Ministro do Interior. Então defendera o direito de a França expulsar os imigrantes ilegais quantificando esse objectivo entre 30 mil e 40 mil por ano. Agora, talvez inspirado pelo debate por si promovido sobre a essência da identidade francesa – “a nacionalidade francesa merece-se e é necessário mostrar-se digno dela”, proclamou há dias – vai ainda mais longe: antecipa legislação que retira a nacionalidade francesa a cidadãos franceses “de origem estrangeira” que “voluntariamente tenham atentado contra um funcionário da Polícia, um militar da Gendarmerie ou outra pessoa possuidora de autoridade pública", ao mesmo tempo que anuncia a destruição de metade dos “acampamentos ilegais” de ciganos nos próximos três meses.
A xenofobia evidenciada por estas medidas não cuida sequer das aparências. Os princípios mais basilares do Direito Internacional e da própria Constituição Francesa são pura e simplesmente arrasados neste vendaval de radicalização. Na verdade, a Declaração Universal dos Direitos Humanos, no seu artigo 15º nº 2, é muito clara: “Ninguém será arbitrariamente privado de sua nacionalidade, nem do direito de mudar de nacionalidade”. E a Convenção Europeia sobre a Nacionalidade, adoptada no quadro do Conselho da Europa em 1997, clarifica que “um Estado Parte não poderá prever, no seu direito interno, a perda da sua nacionalidade ex lege ou por sua iniciativa”, excepto em casos nela taxativamente previstos. Não caberá nunca numa correcta aplicação destas normas remeter para o executivo a decisão de privação da nacionalidade.
A tudo isto Sarkozy diz nada. Porque sabe, como nós sabemos, que a questão é política antes de ser jurídica. E sabe, como nós sabemos, que esse é hoje um dos campos em que a luta ideológica entre Esquerda e Direita é mais encarniçada e, por isso, mais clarificadora. O darwinismo social co-natural à Direita tem na estigmatização dos pobres a sua ferramenta ideológica mais eficaz. Em Portugal como em França, a Direita fabrica e dissemina representações dos pobres em que se amalgamam caoticamente indolência, criminalidade, impermeabilidade cultural e ameaça à ordem. Em última análise, essas representações estimulam o que constitui hoje um dos núcleos definidores da cultura política da Direita: a diferenciação do valor dos movimentos transnacionais – apologia entusiástica da mais plena liberdade dos movimentos de capitais e de mercadorias, por um lado; por outro, percepção do movimento de pessoas como fonte de todas as ameaças. Disciplinar as periferias (tanto territoriais como culturais ou sociais) é pois uma exigência estratégica da Direita. Uma Esquerda que lhe faça frente não tem contemplação para com nenhuma parte deste processo de construção de um discurso e de um senso comum. Uma Esquerda que lhe faça frente é cosmopolita e internacionalista. Por lealdade ao seu código genético e porque sabe que, hoje mais que nunca, o soberanismo é uma armadilha sedutora.
Sobre o autor »
José Manuel Pureza
Deputado, dirigente do Bloco de Esquerda, professor universitário.
Fonte: esquerda.net
Nenhum comentário:
Postar um comentário