Claudio Leal
No auge da campanha contra a Academia Brasileira de Letras (ABL), no Rio de Janeiro, o crítico Agrippino Grieco dizia que "ser acadêmico é obter, evitando exames de saúde, de português e fiança, um ótimo emprego". Mas as boas sinecuras não deixam de trazer descontentamentos. Nas últimas semanas, os "imortais" insatisfeitos com os artimanhas eleitorais na Casa de Machado de Assis infundem queixumes no chá.
Ungida sucessora de Marcos Vilaça na presidência da ABL, Ana Maria Machado é caracterizada pelos dissidentes como uma afilhada do ex-ministro da Educação Eduardo Portella, 78 anos. "Ele é a eminência parda da Academia", diz um imortal, que prefere não ser identificado. Desde o início da década de 1990, Portella opõe-se abertamente ao poeta Lêdo Ivo, 87 anos. A briga foi rejuvenescida na sessão de 4 de agosto. Interrompido durante uma conferência sobre Gonçalves de Magalhães, o alagoano vingou-se do ex-ministro com um discurso de tom licencioso.
Uma semana antes, o "tintureiro de si mesmo" - epíteto usado por Lêdo, wellatonianamente inspirado no padre Manuel Bernardes -, conversara à farta com a confrade Cleonice Berardinelli. Na tribuna, o orador prosseguiu a palestra, guardando as palavras venenosas para a sessão seguinte. Os dois haviam trocado rosnados num coquetel da Academia, em 2004, quando o poeta jogou um copo de Coca-Cola em Portella, depois de ouvir comentários lascivos. A rixa foi turbinada por acusações mútuas de colaboração com a ditadura militar. Agora, em seu novo ataque, Lêdo despenteou o Dicionário:
- Durante 25 minutos, este auditório ouviu, ininterruptamente, ganidos, gemidos, vagidos, coaxos, grasnidos, uivos, ladridos, miados, pipilos e arrulhos intoleráveis, senão obscenos, de um macilento boquirroto ostensivamente deliberado a tisnar e perturbar a minha exposição - cravou o autor de "Ninho de Cobras".
"Considero que foi uma contenda de dimensão quase homérica, pelo seu ineditismo. Nunca soube, antes, que na vida de uma Academia de Letras, naturalmente um lugar de convivência altamente civilizada, pudesse haver um confronto tão radical e retumbante", opina o escritor João Carlos Teixeira Gomes, autor de "Gregório de Mattos, o Boca de Brasa".
Na residência de Portella, o pedido de entrevista é contido: ele não vai atender ao repórter nem "comentar esse assunto", mas quem fala ao telefone não deixa de sugerir um "tratamento médico" ao desafeto. O discurso de garras expostas agradou aos imortais descontentes com a gestão de Marcos Vilaça. "As coisas mudaram muito na Academia. Há mais largueza em função do poder. Na minha época, o plenário tinha mais autoridade. Hoje, a diretoria tem muito mais poder. É uma ditadura", lamenta um acadêmico veterano. "Machado (de Assis) defendia as diferenças. Não precisamos concordar com o outro, mas existe uma prepotência da dita 'eminência parda', no sentido de esmagar as ideias dos colegas", completa o outoniço literato, beliscando Portella à distância.
"Livre como um táxi"
Um dos traços das críticas de bastidores é o borbulhar de epítetos, que funcionam como dribles na indelicadeza de espezinhar um "querido confrade". Terra Magazine conversou com imortais da ABL sobre as divisões da mais importante instituição cultural do País.
Nas confabulações de quinta-feira, o personagem recorrente tem sido "o imortal que abusou do táxi". Mais atinente à pequena história, a questiúncula virou uma crise institucional ao ser levada a plenário por Marcos Vilaça, queixoso da exorbitância dos gastos de um escritor. Estima-se que a ABL desembolse R$ 20 mil por mês com o vaivém de seus componentes. Contrariando a parcimônia machadiana, o gastador usava o táxi preto de segunda-feira a sábado (o Dia da Criação) e acumulou uma conta de R$ 8 mil.
Durante os chás, um poeta é indicado como o autor do pecado. Vilaça não quis entregar o nome ao plenário. "Apure e me diga, que você entra na Academia igual ao Merval Pereira", ironiza um eleitor do romancista Antonio Torres, derrotado pelo colunista político do jornal "O Globo" em recente escrutínio. A diretoria da ABL não fala da polêmica com a imprensa, por se tratar de "uma casa particular" que não expõe os seus agremiados, como argumenta a assessoria de imprensa.
Dois veteranos sustentam que a puxada de orelha não deveria ter sido pública, e sim conduzida pelo segundo-secretário da ABL, o jornalista Murilo Melo Filho, ou pelo tesoureiro, Geraldo Holanda Cavalcanti. Houve mal-estar após a reprimenda irrestrita. Lêdo Ivo mencionou o incidente no libelo antiportelliano, evocando as "burras fartas desta Academia, a mais rica do mundo".
"Não posso dar opinião. Recomendo que você procure os dois (Lêdo e Portella). Eu não estava na hora do discurso. Cheguei há pouco de uma viagem a São Paulo, não estou inteirado...", desconversa Melo Filho. Os membros da diretoria contam com uma frota diária de táxis, enquanto os demais "mortais" podem usá-los duas vezes por semana, ao longo de cinco horas. "Virou regime de colégio. Para pegarmos um táxi, é preciso pedir à secretaria", critica um afamado ensaísta. "Nós estamos sujeitos a apenas dois dias da semana para usar o táxi", lamenta outro insatisfeito.
Em 8 de agosto, houve o primeiro veto do novo regime. Um acadêmico encaminhou um requerimento para ser taxiado até o Palácio da Cidade, onde ocorreria a estreia do documentário "Roberto Marinho - Senhor do seu tempo", e ouviu um "não" - claro, tratou de divulgá-lo aos colegas. "A administração tem motoristas próprios e os acadêmicos estão sendo vigiados no uso dos automóveis", denuncia um dos quarenta suspeitos. Três membros da ABL insinuaram a existência de outros abonos para a diretoria.
"Galinha parda"
Os proventos de um acadêmico podem chegar a R$ 9 mil, caso ele se anime em conviver no serpentário. Cada sessão ordinária corresponde a R$ 1.000; e são quatro delas por mês, às quintas-feiras. Os acadêmicos com mais de 80 anos estão dispensados da presença física, para evitar sacrifícios decorrentes da idade. A participação em uma conferência, ainda que aos cochilos, equivale a R$ 500. E contam com uma verba de representação de R$ 3 mil. Em 2010, a missa do centenário de Joaquim Nabuco, fundador da cadeira nº 27, também foi celebrada com jetom. Ainda existe a vantagem elencada pelo ex-embaixador Roberto Campos ao explicar por que se candidataria a uma vaga: "É para usar o mausoléu".
A ABL não comenta os ataques à presidência de Marcos Vilaça, acusada de ser antidemocrática e centralizadora como o velho Partido Comunista. Ele não concede entrevistas sobre "política interna", pontua a assessoria. Há mais desabafos sobre a inexistência de reajustes dos jetons nos últimos anos, apesar dos rendimentos substanciosos do Palácio Austregésilo de Athayde, na Avenida Presidente Wilson.
"O prédio é uma galinha de ovos de ouro, embora seja parda e fumê", brinca um imortal. Outros acadêmicos atacam a falta de transparência dos gastos; o plenário não acompanharia as contratações e as receitas detalhadas, e apenas estaria à margem da comissão das contas, no final do ano.
"O clima está muito ruim. O Lêdo Ivo teve a coragem de levantar um problema. Temos que viver lá o resto da vida. Portanto, o que falta é urbanidade", resume um membro. Os adversários do pernambucano Marcos Villaça acusam-no de, unilateralmente, esquentar o nome do recém-empossado Geraldo Holanda Cavalcanti, seu coestaduano, para a secretaria-geral.
Amigos do chá
A frequência nos chás é um dos sinais da ambição literária de futuros candidatos. Merval Pereira e Marco Lucchesi, novos usuários do fardão, eram habitués dos tapetes do palácio. O ex-ministro do STF Eros Grau ainda persiste. Agora, os imortais próximos a Portella incensam a professora Rosiska Darcy de Oliveira, colunista de "O Globo". No ciclo "Ética e cidadania em tempos de transição", organizado por Ana Maria Machado, Rosiska foi uma das conferencistas. A participação estimulou as apostas e os hummmmms de quem a vê como forte pretendente ao Petit Trianon.
"Fico preocupado com esse clima de divisão", afirma Lêdo Ivo. Ex-presidente da ABL, o jornalista Cícero Sandroni pega outro caminho: "Não há clima de divisão nenhum. Ontem (quinta-feira, 11), tivemos uma reunião em que falaram os acadêmicos Alberto Venâncio Filho sobre Afrânio Peixoto e Antonio Carlos Secchin sobre Fagundes Varela. Aprendemos muito, foi uma sessão excelente, como são todas as sessões da Academia, com exceção daquela que houve aquele problema. Olha, estou há oito anos lá, é a primeira vez que acontece isso. É um assunto interno. São acadêmicos que não se dão bem, mas, numa comunidade de quarenta pessoas, é uma coisa normal. Continuamos nossa caminhada".
Observadores internos opinam que Sandroni desistiu de candidatar-se à presidência da casa, no próximo ano, porque não teria chances de enfrentar o grupo majoritário. Ele desanuvia: "Já fui presidente e não pretendo voltar".
Ex-presidente do Tribunal de Contas da União, o presidente Marco Vilaça também recebe discretas punhaladas por abrir a Academia para clubes de futebol e escolas de samba. Em abril, num almoço em homenagem ao escritor flamenguista José Lins do Rego, ele recepcionou o jogador Ronaldinho Gaúcho e o técnico Vanderlei Luxemburgo. Esses gastos são vistos com reservas pelos agremiados mais antigos, alguns deles inconformados com a ausência de reajustes. Um dos entrevistados sintetiza a fraqueza da glória acadêmica: "Meu filho, a inflação não entra na imortalidade".
Fonte: Terra Magazine.
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