Privatização dos aeroportos: capitulação surpreendente
Petistas recorrem a argumentos pouco claros e tucanos capitalizam leilão. As concessões não têm base em argumentos objetivos. É pura ideologia em tempos de desmoralização do neoliberalismo e de crise nos países ricos.
Gilberto Maringoni
Belo Horizonte, 28 de novembro de 1999, fim de tarde. A maioria dos delegados eleitos para o II Congresso do Partido dos Trabalhadores aprova uma série de resoluções reunidas no documento O Programa da Revolução Democrática para a construção de um Brasil livre, justo e solidário. Entre elas, uma diz o seguinte:
As privatizações têm representado uma gigantesca transferência de renda do setor público para o privado. Os preços de venda foram aviltantes, muitas vezes financiados com recursos do Estado. Os efeitos sobre o crescimento da economia são inexistentes, com resultados irrelevantes no abatimento das dívidas interna e externa. (...) O PT reafirma sua posição pela suspensão imediata do Programa Nacional de Privatizações.
Nas eleições de 2006, o então candidato petista Luiz Inácio Lula da Silva literalmente triturou seu oponente Geraldo Alckmin no primeiro debate do segundo turno com uma saraivada de ataques às privatizações. A população entendeu o que estava em jogo, após conviver por anos a fio com serviços de má qualidade e preços altos praticados especialmente pelas concessionárias de energia e telefonia.
Em 2010, utilizando discurso semelhante, a então candidata Dilma Rousseff fulminou seu adversário José Serra no debate da TV Bandeirantes, como se vê neste vídeo.
Acrobacias ideológicas
Pouco mais de um ano após as eleições presidenciais, o governo petista decide privatizar os três mais rentáveis aeroportos do país. Quase 90% do montante a ser desembolsado pelas empresas ganhadoras do leilão serão financiados pelo BNDES. Cenas de empresários e investidores segurando um martelo, que pareciam relegadas a um passado distante, se repetiram diante de telas e páginas da imprensa.
O mercado e a mídia comemoram. E os petistas tentam justificar as acrobacias em suas teses.
Os líderes do partido se esmeram em um admirável contorcionismo verbal para dizer que não é bem assim, que não se vendeu nada, o que aconteceu foi uma concessão, o patrimônio continua público, as tarifas vão cair e que o feito demonstra a confiança que nosso país granjeia diante de um mundo em crise.
O deputado Marco Maia (PT-RS), presidente da Câmara, se superou. Suas palavras foram captadas pelo jornal O Globo: “Uma coisa é privatização no setor de energia, de mineração, outra é tratar de concessão em setores que não são tão importantes, estratégicos para a economia. Os aeroportos não têm valor tão estratégico”.
É impressionante! Para os Estados Unidos, país do liberalismo, os aeroportos são tão vitais que toda a gestão é estatal. E se aqui não têm não têm valor estratégico, para que toda a preocupação com caos aéreo, pane nos serviços durante a Copa e presença do BNDES no leilão?
Caso o pensamento de Maia prospere, estará absolvida a maioria das privatizações dos governos FHC, realizadas sob o regime de concessão e financiadas também pelo BNDES. As desestatizações das empresas de energia, telefonia, saneamento, gás e transportes (ferrovias) foram realizadas através de concessões por tempo determinado.
Nada garante que investimentos virão, como chegou a dizer o deputado José Guimarães (PT-CE), assim como não chegou dinheiro novo para modernizar a rede elétrica e a de telecomunicações. No caso da banda larga, por exemplo, as concessionárias só investirão na ampliação do serviço após uma série de desonerações tributárias patrocinadas pelo governo . Aliás, a experiência recente mostra que as empresas estrangeiras concessionárias de serviços públicos preferem remeter lucros às suas matrizes em dificuldades a colocar recursos nas subsidiárias brasileiras.
Capitulação petista
Mais importante que as filigranas conceituais externadas pelos líderes petistas é a defesa que fazem de uma sólida posição ideológica. A mesma, aliás, brandida pelos dirigentes tucanos.
A concessão dos aeroportos não tem base em argumentos objetivos. O Estado tem dinheiro. Mas 47,19% de seu orçamento é direcionado para o pagamento dos juros e serviços da dívida pública, de acordo com dados da organização Auditoria Cidadã.
Por trás da cessão á iniciativa privada está a velha idéia de que o mercado é superior ao Estado para administrar o que quer que seja. E que precisamos de firmas estrangeiras –superiores a nós - para gerir também o que quer que seja.
Em síntese, volta o mercadismo e o complexo de viralatas.
Esta é a grande disputa feita ao longo dos últimos anos na sociedade brasileira. E é também o grande prejuízo – ideológico, para repetir um conceito tido como fora de moda – cometido pelo governo federal.
O PT confessou com grande alarde uma capitulação às teses de seus adversários. Capitulação inexplicável, por dois motivos: 1. Acontece quando o PSDB vive sua pior crise de rumos e de falta de lideranças e 2. É feita quando as idéias básicas do neoliberalismo são desmoralizadas pela crise européia.
Capitalização tucana
O ex-Ministro das Comunicações do governo FHC, Luiz Carlos Mendonça de Barros, não se deixou levar pelas piruetas verbais dos petistas e capitalizou o ocorrido. Em entrevista ao jornal O Estado de S. Paulo, ele foi direto ao ponto: “O mais importante desse leilão é que ele marca a volta da privatização como instrumento legítimo e eficiente para aumentar os investimentos na infraestrutura”. E mais adiante, emenda: “A lógica intrínseca dos contratos de concessão é a mesma [do governo FHC]: um grupo privado, explorando os serviços comercialmente segundo seus objetivos de eficiência e lucratividade, mas balizado por regras estabelecidas pela Anac”.
Mais objetiva ainda foi a economista Elena Landau, uma das principais formuladoras das privatizações dos anos 1990, em seu twitter: “Hoje é dia muito importante: o debate sobre privatizações se encerrou... E nós ganhamos”.
O PT cresceu muito, tornou-se o maior partido brasileiro, ganhou as três últimas eleições presidenciais e provavelmente ganhará a próxima.
Mas entregou os pontos na batalha das idéias.
Gramsci chamava isso de “transformismo”.
Seja o que for, é triste.
Gilberto Maringoni, jornalista e cartunista, é doutor em História pela Universidade de São Paulo (USP) e autor de “A Venezuela que se inventa – poder, petróleo e intriga nos tempos de Chávez” (Editora Fundação Perseu Abramo).
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