sexta-feira, 29 de maio de 2009

AS CARTILHAS DE SÃO PAULO.

Mauro Santayana

Entre os livros escolares da primeira metade do século passado, se destacava Contos pátrios, de autoria de Olavo Bilac e Coelho Neto. Na mesma época, foi traduzido para o português um dos mais importantes compêndios de leitura escolar na Itália, Cuore, de Edmond De Amicis. Os dois livros, o brasileiro e o italiano, de estilos bem diferentes, se identificavam em um objetivo comum: o da construção da nacionalidade, mediante o respeito aos valores da solidariedade familiar e comunitária como base da coesão política. O livro do jornalista Edmond De Amicis foi editado em 1888, poucos anos depois da unificação italiana, promovida por Cavour e Garibaldi, quando ainda eram vivas as repercussões da luta armada. Fazia falta trabalhar a fim de que vários Estados independentes se unificassem sob uma só bandeira, e que ela se consolidasse no coração das crianças.

Contos pátrios foi redigido logo depois de proclamada a República, e editado em 1904, e até 1962, quando deixou de ser adotado, teve 46 edições. Bilac, republicano e nacionalista, estava naturalmente preocupado com o novo regime, tanto assim que se exilou em Minas, durante o período autoritário de Floriano Peixoto. Os relatos são também amarrados aos valores éticos, como o patriotismo, a solidariedade, o respeito aos pobres, a importância do trabalho honrado.

Outro grande autor de textos escolares foi o paulista Tales de Andrade, que localizava seus relatos na cidade de Piracicaba e em seu entorno rural. Saudade faz lembrar, na medida certa da linguagem, o Cuore. Mas a boa literatura escolar não se limitava a esses livros. Até o fim dos anos 50, os textos didáticos não ensinavam apenas a ler; ensinavam a pensar, fundavam-se nos sentimentos comuns do povo brasileiro e na autoestima nacional nos tempos de Vargas e Juscelino.

A Secretaria de Educação de São Paulo distribuiu livros à rede estadual de ensino, destinados às crianças, que são uma ofensa aos pobres, já que os ricos não frequentam escolas públicas. Um deles, em quadrinhos, sob o argumento de que facilitaria o aprendizado da leitura, está recheado de ilustrações obscenas e textos apenas chulos, com linguagem de sarjeta. A pretexto de levar às crianças temas da atualidade – de acordo com a Folha de S.Paulo de ontem – distribuiu outra publicação, sob o título de Poesia do dia, poetas de hoje para os leitores de agora, em que se recomenda desprezar o amor e preferir o estupro, entre outros conselhos no mesmo estilo. Se os autores sabiam a que público se dirigiam, merecem a indignação do povo brasileiro, porque veem as crianças pobres como pequenos bandalhos, interessados em relatos fesceninos. Se quiseram imitar o método Paulo Freire, cometeram uma contrafacção perversa e criminosa. Ao contrário do que muitos pensam, os trabalhadores são muito ciosos da boa formação moral dos filhos, e naturalmente irão receber esses textos com indignação.

É um erro entender a educação como um meio de ajustar o aluno a seu tempo, quando esse tempo é inconveniente ao homem. A educação deve ser teleológica. Os alunos têm que ser preparados não para submeter-se a uma sociedade deformada pela injustiça mas, sim, para mudá-la. A educação deve libertar o homem, e essa libertação não se encontra na banalização do sexo, no repúdio ao amor, no ódio psicopata contra a vida. As sociedades totalitárias – como a do neoliberalismo – sempre estimulam a liberdade dos costumes, a fim de distrair os povos de seus direitos reais, de sua essencial dignidade.

A edição de livros escolares se tornou um negócio gigantesco, com grandes interesses comerciais em jogo. As editoras pressionam as autoridades em busca da adoção de seus livros na rede oficial, usando dos meios de convencimento conhecidos. Suspeita-se também que haja um sistema de trocas, em que o aprovador de hoje pode vir a ser o editado de amanhã. Ao escândalo (porque se trata de um escândalo) atual, o governo de São Paulo só pode responder com a instituição de um inquérito rigoroso, antes que a Assembleia Legislativa tome a iniciativa da investigação.

Tal como na Itália do Risorgimento e no Brasil da transição republicana, somos hoje chamados a mobilizar o povo para a construção de uma sociedade solidária dentro de um projeto nacional soberano. O ensino fundamental é o melhor trecho do caminho para a cidadania. Mas, aos pobres, desprovidos de tudo, também se nega, e de forma criminosa, o direito constitucional de participar do destino da nacionalidade.
Fonte:JB

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