José Saramago
Ontem foram armas, hoje são notas de música. Vamos avançando, portanto. A ideia, segundo julgo haver entendido, foi da Fundação Calouste Gulbenkian e a ela se juntaram a Câmara Municipal da Amadora e o Conservatório Nacional. Tratava-se de reunir crianças residentes em bairros degradados e ensinar-lhes música e a tocar um instrumento. O propósito não era original, basta lembrar a recente revelação da orquestra juvenil de Venezuela, agora conhecida em todo o mundo, mas o erro de partida teria sido seguir ou imitar uma ideia má, nociva, de alguma maneira prejudicial, e esta valeria o seu peso em ouro se uma ideia tão rica de conteúdo pudesse ser pesada. Acabo de assistir à passagem de um vídeo em que se me apresentaram umas quantas crianças, de cor na sua maior parte, às voltas com instrumentos em que nem em sonho haviam posto alguma vez as mãos, manejando arcos e pistões com uma facilidade para mim assombrosa, pois foi inevitável recordar o tempo, não muito, em que frequentei a Academia de Amadores de Música, onde não fiz mais que balbuciar uns vagos solfejos e tropeçar com os dedos no teclado de um piano. (O meu futuro não estava ali.) E mesmo que o futuro de todas aquelas crianças não venha a ser a música, tenho a certeza de que nunca irão esquecer as horas passadas na sala de ensaios e menos ainda, creio, os caminhos para chegar lá, carregando elas próprias as caixas dos seus instrumentos, pequenas como para uma flauta, manejáveis se continham um violino, menos cómodas se de um violoncelo se tratava. A gravidade daqueles rostos, mesmo quando a boca se lhes descerrou em sorrisos, a luz daqueles olhares, a ponderação com que respondiam às perguntas, confirmaram uma velha ideia minha, a de que a felicidade é uma coisa muito séria. Compenetrados, atentíssimos, ensaiavam uns quantos compassos da Nona de Beethoven. Creio que os que lêem estas páginas estarão de acordo comigo se eu disser que é um bom princípio de vida.
Fonte:O Caderno de Saramago.
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