José Saramago
Baltasar Garzón é uma das pessoas mais influentes que a sociedade espanhola produziu na última metade do século XX. Ao juiz Garzón devemos alguns dos momentos mais luminosamente democráticos que conhecemos: o processamento do general Pinochet e a investigação contra os crimes da guerra e do franquismo. Nesse segundo caso, Garzón considerava que Franco e outros 44 membros dos seus governos e da Falange cometeram “delitos contra Altos Organismos da Nação” e também de “detenção ilegal com desaparecimento de pessoas num âmbito de crimes contra a humanidade”. Pois bem, a investigação contra estes crimes exasperou os franquistas, que ainda os há em Espanha, até ao ponto de processar Garzón, a quem acusam de prevaricar, porque iniciou processos, dizem, sabendo que os responsáveis estavam mortos. Assina a queixa um tal Bernard, antigo dirigente da Fuerza Nueva, grupo ultra-direitista muito activo na repressão de antifranquistas, e actual presidente de uma associação sindical que cinicamente diz “defender” o estado de Direito e que copiou o nome de Mãos Limpas da nunca esquecida iniciativa italiana.
Que fez Baltasar Garzón? Fora das associações judiciais, com as suas intrigas e as suas confrontações, fora da fúria, que não é só política, que os franquistas sentem contra as iniciativas que a sociedade adopte para limpar-se da ditadura, o que vemos é uma actuação que introduz o senso comum nos tribunais. Há um juiz corajoso que em vez de enredar-se em leis para justificar silêncios e omissões busca os resquícios que as leis permitem para que às vítimas da guerra e do franquismo se lhes reconheçam direitos e se esclareça a sua memória. Garzón entendeu que tinham direito a recuperar os corpos enterrados em fossas comuns, ou a saber onde estão as então crianças que foram separadas com violência das suas famílias, por isso pôs em marcha um processo que logo continuou noutras instâncias, porém, ele foi o precursor e isso não se perdoa. O terrível, o incompreensível, é que os herdeiros do franquismo tenham encontrado eco no Tribunal Supremo de Espanha onde Garzón terá que declarar como imputado pela causa contra o franquismo. Diz o Supremo que “sem valorar nem pré-julgar o sucedido, entende que não se dão as condições para rejeitar a admissão a trâmite desta queixa”, que a hipótese de prevaricação não é nem absurda nem irracional. Isso é o que dizem cinco magistrados, cinco, do Supremo. A ver agora o que diz a sociedade espanhola, sempre tão apaixonada quando se trata de defender causas justas. Deixará, sem fazer ouvir a sua voz, que a Fuerza Nueva, perdão, Mãos Limpas, use e abuse do Direito? Permitirá, sem protesto, que conceitos como Estado de Direito, pelo qual tanto lutaram os antifranquistas, sejam utilizados contra as vítimas, para que uma vez mais caiam no esquecimento? Já não se trata de Garzón, de cuja amizade me honro, mas sim de que não se divirtam à nossa custa. Prevaricar não é actuar para ampliar o Direito, prevaricar é não ter actuado antes. E troçar da justiça é aceitar como normal que os franquistas venham dar lições de escrúpulo democrático.
Fonte:O Caderno de Saramago.
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