sexta-feira, 5 de junho de 2009

CORAÇÃO E PASSES CURTOS.

por Michelle Amaral da Silva última modificação 04/06/2009 17:06
Colaboradores: Silvia Beatriz Adoue.

Em 29 de maio de 1969, acontecia o Cordobazo, quando a população da cidade argentina de Córdoba promoveu uma greve geral e foi duramente reprimida pelo regime militar

Silvia Beatriz Adoue

Há 40 anos que os 29 de maio deixaram de ser, entre as famílias argentinas, apenas uma ocasião para comer nhoque. Diz a tradição, trazida pelos imigrantes italianos, que colocar uma nota embaixo do prato de nhoque no dia 29 de cada mês atrai dinheiro ou, pelo menos, evita o péssimo costume de perdê-lo. Nas casas das famílias trabalhadoras de Argentina, em 1969, o salário chegava cada vez mais recortado. Era a época da ditadura do general Juan Carlos Onganía e os direitos trabalhistas só retrocediam. Os trabalhadores iniciaram uma sequência de greves, por categoria e por região. Fazia já mais de um ano que o movimento sindical havia rachado, mas as duas centrais combinaram uma greve geral para 30 de maio.

O cenário

Na província de Córdoba, a coordenação da greve contava com regionais sindicais muito combativas, mesmo quando filiadas à “colaboracionista” Central General de los Trabajadores (CGT), aquela que “colaborava” com o governo militar, e a “combativa” Central General de los Trabajadores Argentinos (CGTA). A região contava com milhares de trabalhadores jovens reunidos na então florescente indústria automotriz. A categoria dos eletricitários, que alimentava os complexos fabris com energia, também contava com uma direção que era de luta. A coordenação da greve em Córdoba convocou a paralisação já para o dia 29, às 11 horas.

Além de contar com uma grande concentração industrial, Córdoba tinha um grande contingente de estudantes universitários e secundários vindos de outras províncias. A tradição estudantil vinha de longe, afinal, a primeira universidade de Argentina foi fundada na cidade, em 1613. E também foi nessa capital provincial que começou o movimento da Reforma Universitária, em 1918, para depois se estender a toda Hispano-América. Em 1969, os estudantes de Córdoba também estavam mobilizados. Era uma efervescência nas escolas e universidades em todo o país. As ações pipocavam aqui e ali, pelo preço da refeição ou pelo sistema de avaliação. Mas o espelho de maio do ano anterior na França e a greve dos trabalhadores revestiram esse maio de um brilho de possibilidades insuspeitadas até então.

A preparação: “coração e passes curtos”

Os cordobenses trocaram, nesse mês, os nhoques pelos “ravióli”. Assim chamavam os envelopes de papel com pó de cloreto de potássio e enxofre que amarravam ao gargalo das garrafas cheias de gasolina. A receita das bombas incendiárias circulou durante toda a semana em pequenos panfletos que corriam de mão em mão e até as vovózinhas cordobenses sabiam prepará-las. Nos bairros operários, e mesmo nos de classe média, as famílias acumulavam comida. Os jovens providenciavam pedras, couro e borracha para os estilingues e tudo que pudesse ser útil para as barricadas. Os trabalhadores e os estudantes arranjavam alguma arma de fogo.


As redes se ramificavam como vasos capilares. Todos quebravam a cabeça para imaginar como vencer o primeiro obstáculo: atravessar as pontes que davam acesso para o centro da cidade, nas que se sabia que iriam se concentrar todas as forças policiais da província. Essas redes não eram articuladas apenas pela coordenação da greve e nem pelos centros acadêmicos ou pelas organizações políticas. Elas resultavam das iniciativas que partiam das fábricas para os bairros onde os trabalhadores moravam, ou das escolas, ou das repúblicas dos estudantes universitários, nos quais a planta da cidade era virada do avesso para imaginar possibilidades.

O bairro Clínicas, próximo do hospital e do estádio do Belgrano, foi ocupado pelos estudantes, na sua maioria vizinhos do local, desde o sábado 24. Barricadas foram postadas nas entradas, onde os estudantes se revezavam na guarda. Pichações nos muros davam conta do espírito dos ocupantes: “Bairro Clínicas: território livre de América”. Domingo Menna, líder estudantil, deu suas últimas recomendações aos companheiros próximos: “Como dizia o técnico do Belgrano: agora é ‘coração e passes curtos’”. Os companheiros olharam para ele, pedindo tradução. “Quer dizer: nada de grandes jogadas, olhar para o companheiro de lado e jogar com ele”.

Os sindicatos resolveram que haveria uma concentração nos locais de trabalho na manhã da quinta feira, dia 29, e daí se partiria para as sedes dos sindicatos em colunas suficientemente fortes e seguindo diferentes caminhos, para dividir a atenção das forças policiais.

Enquanto isso acontecia na província, a central sindical “colaboracionista”, que só queria convocar a greve para negociar com o governo em melhores condições, pedia às suas regionais para se limitar a uma paralisação sem mobilizações. Os dirigentes regionais argumentavam que estavam ultrapassados pelas suas bases.

A batalha de Córdoba: “aqui ninguém dirige coisa nenhuma”

Na quinta feira, as colunas iam se formando nos locais de trabalho desde bem cedo. No bolso do macacão, não poucos tinham uma arma de calibre pequeno. Nas sacolas, bombas incendiárias. No bairro de Clínicas, a assembleia reunia milhares de estudantes. Grupos nas portas das escolas e nas esquinas de todos os bairros. Quem dispunha de motocicleta fazia a ligação entre os grupos. As colunas iam engrossando com vizinhos no percurso e se dirigiam para o centro da cidade.

A polícia postada nas pontes começou com as bombas de gás lacrimogêneo, que os manifestantes levantavam com um pano e devolviam. Os estilingues começaram a sair dos bolsos e bandos de artilheiros, um joelho apoiado no asfalto, faziam pontaria à distância. Os primeiros veículos foram virados para fazer barricadas, na medida em que as colunas avançavam. As barricadas serviriam em caso de necessidade de recuo, para barrar a perseguição policial. Quando um grupo de trabalhadores encontrava com um grupo de estudantes, cantava-se: “Obreros y estudiantes: unidos adelante”.

A polícia começou a retroceder. Trabalhadores e estudantes avançavam já no centro da cidade. Foi queimado o prédio da Xerox e os próprios manifestantes foram para o quartel de bombeiros, que temiam sair para a rua de uniforme, e voltaram montados no caminhão para apagar o fogo que ameaçava se espalhar para o prédio vizinho.

O dirigente eletricitário Agustín Tosco, que percorria a cidade, ligou para o um companheiro na sede do sindicato: “Aqui o povo saiu por conta própria, ‘morreram’ dirigentes... aqui ninguém dirige coisa nenhuma”. Não era exatamente isso, havia organização, mas as iniciativas partiam de todo lado, segundo uma lógica que confluía nos objetivos gerais de ocupar a cidade.

O comandante do Terceiro Corpo do Exército, localizado em Córdoba, pressionou o responsável regional da central sindical “colaboracionista”, avisando que havia uma solicitação do governador provincial para intervir com as tropas. O sindicalista convocou uma conferência de imprensa e disse que os objetivos da mobilização já tinham sido atingidos e que estava terminada. Imediatamente, um comunicado do Terceiro Corpo do Exército constituía conselhos de guerra. A polícia se recolhia aos quartéis.

Dona Laura: não conseguiram cortar suas pernas

As colunas de eletricitários começaram a derrubar postes de cimento para barrar os tanques. Nos muros, os manifestantes começaram a pichar: “Soldado, não atire contra seus irmãos”. Uma coluna se encaminhou para a sede do Círculo de Suboficiais e quebrou todos os sabres que encontraram dentro. Mas, ao dar de cara com um piano, o carregaram até a rua e alguém começou a tocar. Os manifestantes, no meio da batalha, dançaram ao som do piano por um bom tempo. O prédio do Ministério de Obras Públicas foi incendiado e, desta vez, os bombeiros foram barrados pelos manifestantes.

Foi no final da tarde que os tanques do exército começaram a avançar, esmagando as barricadas de madeira e pneus. Dos tetos, choviam bombas incendiárias e vasos com plantas. Os soldados avançavam colados à parede, com um misto de medo e vergonha.

Às 20h, os eletricitários cortaram o fornecimento de energia da cidade. E os manifestantes recuaram para os bairros. Alguns entravam em qualquer casa, alguns, despencando desde o teto, e se apresentavam: “sou operário” ou “sou estudante”. Imediatamente, a família ajeitava um lugar e, em caso de batida, viravam filho, irmã, tio... O exército aguardou que clareasse. Às 10h do dia 30, a polícia entrou na sede do sindicato dos eletricitários e prendeu os dirigentes que estavam reunidos para avaliar a jornada de 29. Agustín Tosco permaneceu preso por anos.

Oficialmente, houve 30 manifestantes mortos, centenas de presos e perdas de 12 milhões de dólares. O comandante do Terceiro Corpo do exército admitiu que se sentia comandando um exército de ocupação. Num bairro, uma vizinha, Dona Laura, saiu atrás de um carro do exército com sua filha e sua neta, gritando: “Assassinos! Assassinos!”. Uma rajada de metralhadora feriu as três nas pernas.

A tática utilizada pelo exército foi calcada na da divisão de paraquedistas franceses em Argel, capital da Argélia: quadricularam a cidade. Cada unidade se ocupava de um setor. Na tarde da sexta feira, dia 30, já controlavam militarmente Córdoba. Mas, aquele 29 foi o começo do fim da ditadura militar. Houve levantamentos semelhantes em muitas outras cidades e um ascenso popular. A luta permitiu revelar a própria força e as fraquezas do oponente. E também permitiu construir a confiança entre os diferentes setores que até então vinham lutando isolados.

Silvia Beatriz Adoue, argentina radicada no Brasil, é mestre em Integração da América Latina pela Universidade de São Paulo, doutora em literatura latinoamericana pela FFLCH-USP, e professora da Escola Nacional Florestan Fernandes (ENFF)
Fonte:Brasil de Fato.

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