sábado, 6 de junho de 2009

VENEZUELA - Intelectuais venezuelanos fazem balanço da revolução.

Emir Sader

Ao completar 10 anos, intelectuais revolucionários venezuelanos , todos absolutamente identificados com o processo bolivariano, mas ao mesmo tempo preocupados com os problemas que ele tem que enfrentar, se reuniram, em evento inédito, na capital da Venezuela, nos dias 2 e 3 de junho. Foram convocados pelo Centro Internacional Miranda, para fazer um balanço das “luzes e sombras” – como diz a convocatória – que o país está vivendo. A reunião contou com 40 intelectuais, entre eles o diretor do Centro, Luis Bonilla, Juan Carlos Monedero – espanhol, professor da Universidade Complutense de Madri, radicado em Caracas -, Vladimir Acosta, Luis Damiani, Luis Acuña, Iraida Vargas, Luis Britto Garcia, Santiago Arconada, Rigoberto Lanz, Miguel Angel Pérez, Carmen Bohórquez, Victor Alvarez, Eleazar Dias Rangel, Roberto Hernandez Montoya, Roland Denis, Fausto Fernandez, Daniel Hernandez, Filinto Duran, Mario Sanoja, Marta Harnecker [chilena radicada em Cuba], Aram Aharonian [uruguaio radicado em Caracas].

Participei como convidado estrangeiro e pude constatar a extraordinária riqueza das análises e propostas desse grupo de intelectuais, também como o processo venezuelano produz novas questões, permite novas abordagens e permite a geração de espaços de crítica e de debate no seu interior.

Como mostra do tipo de intervenção, segue a intervenção de Juan Carlos Monedero:

“Eu conheci cinco momentos revolucionários na minha vida. O dos meus velhinhos republicanos, a revolução cubana, a revolução dos cravos em Portugal, a revolução sandinista e a revolução bolivariana. Esta ultima é que eu fiz minha e à que uni meu destino nos últimos cinco anos. Quem fala não é uma pessoa de fora, mas uma pessoa que fala de dentro de um processo em que já trabalha há muito tempo.

Não nos vamos a deter nas conquistas da revolução bolivariana, nem na importância da liderança do Presidente Chavez. Ambos os aspectos são claros e estão fora de dúvida para todos os presentes. Há exatamente uma semana pudemos nos dirigir à opinião pública para reiterar os avanços enormes que a Venezuela conseguiu nos últimos cinco anos, para dizer à direita mundial que na Venezuela está-se construindo uma alternativa, para defender a liderança do Presidente Chavez como referência política do processo bolivariano. Hoje fomos aqui chamados para outra coisa.

O pensamento crítico é aquele que diz que o que existe não esgota as possibilidades da existência. Por isso tem sempre que ir mais além do evidente. Esta reunião tem a vantagem de que não precisa demonstrar o que para nós é óbvio: a Venezuela bolivariana devolveu a esperança na política aos desencantados com a IV República, aproximou o sonho socialista de uma encarnação prática, que como prática sempre estará abaixo da potência dos sonhos, e demonstra seu rumo de esperanças pela violência e pela condição dos seus inimigos.

Inimigos com muitos focos e meios, mas sem idéias, como pudemos ver recentemente na Venezuela na reunião da extrema direita, reunida na Venezuela, porque é daqui que se está irradiando a mudança para todo o continente.

É obrigação dos intelectuais olhar as zonas não iluminadas, tirar véus, iluminar caminhos prometedores e alertar sobre caminhos improdutivos ou desaconselháveis. À diferença do intelectual complacente, o trabalhador crítico das idéias, como disse Aristóteles, é muito amigo de Platão, mas é mais amigo da verdade.

Mas nunca é complacente, sempre tem algo que incomoda e vive sempre com uma sensação de insatisfação permanente.

São três as tarefas dos intelectuais honrados:

- Em primeiro lugar, contribuir, como trabalhadores das idéias, com argumentos para melhorar a justiça e a liberdade dos povos;

- Em segundo lugar, fazer contrapeso ao poder, não somente o dos governos, mas também os poderes escondidos que traçam as sendas das sociedades através da força do dinheiro, do controle da mídia, das armas ou de qualquer outra forma de dominação;

- Em terceiro lugar, corresponde aos intelectuais propor alternativas sustentadas pelo conhecimento da história, do seu olhar totalizador e da sua capacidade de construir marcos teóricos sobre a experiência dos povos.

Na Venezuela, a intelectualidade crítica cumpriu plenamente a primeira das três tarefas. Esteve firme na crítica de todos os problemas da IV República, ajudando a fazer nascer a Nova República, argumentou política e constitucionalmente sobre o novo sistema e apoiou diretamente o governo do Presidente Chavez como uma possibilidade de que a defesa do povo se tornasse uma realidade. Como o Presidente Chavez era a garantia de continuidade da revolução, todos os ataques se uniram para tentar derrubar de qualquer forma o Presidente. Daí que o correto era defende-lo contra todos esses ataques internos e externos.

Cumpriu igualmente a segunda das tarefas, desvelando as máscaras de um poder que mandava no país há séculos.

Mas teve menos espaços ou sorte para construir os cenários alternativos. Os que estamos hoje aqui hoje vimos mantendo uma defesa firme do processo bolivariano. Nesta reunião vamos demonstrar que a crítica é possível na Venezuela. A oposição esteve a ponto de ganhar uma batalha que debilita profundamente ao governo: descartar qualquer crítica como contra-revolucionária ou paga pela CIA. Os aqui presentes somos todos homens e mulheres que levamos muitos anos nos arriscando para defender este processo e os processos irmãos de outros países. Os que nos acusam de contra-revolucionários por defender e por exercer a critica ao processo, desde dentro do processo, são pessoas que estão fazendo da política um âmbito de privilégio, pessoas que não defendem ideologias, mas espaços de interesse. Não é o caso desta reunião.

Quero manifestar neste escasso tempo a importância do peso da história em cada país. Na Espanha, cada momento de crise ressuscita o enfrentamento entre a Espanha republicana e a Espanha franquista. Mesmo hoje no DNA da democracia espanhola há muito de franquismo, da mesma forma que de anti-franquismo.
No DNA da V República há muito de “quarto-republicanismo sociológico” e também de “mantuanismo” ideológico[menção à “elite crioula” que primeiro liderou o movimento de independência], de “perezjimenismo” sociológico [menção ao militar e político autoritário Marcos Pérez Jiménez, ditador e presidente de meados do séc. XX] que obriga a um alerta especial diante dos fantasmas políticos da história da Venezuela.

A República deu resposta a muitos destes problemas, mas não com a suficiente intensidade. Uma lista simples dos fantasmas que caminham com a história da Venezuela vem a seguir. Buscou-se algum tipo de solução para esses problemas na V República, mas ainda resta muito por fazer:

Hiperliderança, própria de países com um escasso embasamento social, com um frágil sistema de partidos democráticos e com uma alta porcentagem de exclusão. A hiperliderança permite definir uma alternativa à seletividade estratégica do Estado herdado, sempre um freio à transformação; além disso, tem a vantagem de articular a desestruturação e a fragmentação com formas de cesarismo progressista – na expressão de Gramsci -, mas que desativam a participação popular excessivamente confiante na capacidade heróica da liderança.

Centralização: é outra cara da mesma debilidade da sociedade civil. A descentralização foi usada na Venezuela para que de fato fosse introduzido o neoliberalismo mais duro, mas em um mundo complexo, a descentralização é sinônimo de eficiência.

Clientelismo partidista: hoje com um signo, amanhã com outro, que funciona como uma forma alternativa de articulação política, mas sempre inferior em termos de emancipação que formas impessoais de império da lei e da colocação em prática de direitos civis, políticos e sociais. Além de que quem se clienteliza tem sua dignidade roubada. Uma revolução popular não precisa de formas clientelistas pois todo o poder reside no povo.

Mentalidade rentista, que considera que os venezuelanos não precisam trabalhar para viver como reis. Isso os leva a exigir do Governo que lhes resolva os problema da vida sem a necessária co-responsabilidade.

Corrupção e ineficiência: são as duas faces de um mesmo problema, que articulou a campanha de 1998, e que ainda está esperando resposta; a corrupção arrasa com recursos que são de todos e os coloca a serviço do privilégio de novas castas que fazem do luxo e da ostentação um objetivo. O que em outros processos demorou uma geração, na Venezuela foi construído durante apenas os últimos cinco anos. É possível pela debilidade de um Estado que arrasta a Venezuela desde a colônia, quando não foi vice-reinado , mas Capitania Geral. Há determinadas frases que continuam a ser usuais e que marcam a relação com o Estado. “Caminhos verdes”, “resolver”, “quanto há para isso”...

Militarismo, articulado na V República com a união cívico-militar, mas que precisa de formas mais audazes que avancem no papel do exército na democracia socialista. Onde estão os estudos que antecipam novas formas dessa relação?

Violência: com este contraste entre a amabilidade das formas e a dureza da vida cotidiana, no tráfico, nos bairros, no lugar de trabalho.

Este é um leque de problemas pendentes. A solução, creio, não passa por aprofundar nenhum destes aspectos, mas em conseguir alguma forma de aufhebung hegeliana, uma superação que continue iluminando, como até agora fez, o caminho da emancipação deste povo e dos que olham para ele atentamente desde a América Latina. O primeiro passo consiste em iluminá-los como problemas. O que não se vê não permite ser identificado como fonte de dor, o que não dói não se transforma, e o que não se transforma vira necrose.

O papel essencial desempenhado pela revolução bolivariana na emancipação da Venezuela e no continente faz deste processo o mais importante do continente. O peso neste seminário das críticas não significa que haja mais problemas do que soluções.

Estou convencido de que o melhor que a aconteceu à Venezuela em décadas foi a revolução bolivariana, que foi alavanca essencial para tudo o que aconteceu depois com a esquerda latino-americana. Razão suficiente para que, entre todos nós, cuidemos deste processo e o façamos avançar. Aos trabalhadores das palavras e das idéias corresponde desvendar os problemas , iluminar novos rumos e prevenir possíveis nós. Oxalá estas reflexões, junto às que saiam deste seminário, ajudem nesta direção. O socialismo do século XXI se diferencia do socialismo do século XX, principalmente na sua aposta na participação. No nosso caso, a crítica faz parte da nossa maneira de participar. E criticando somos parte do processo revolucionário.

Muito obrigado".

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