por John Pilger
Gordon Brown. No dia em que Gordon Brown fez o seu "discurso da política dominante" sobre o Afeganistão, repetindo o absurdo aviso de que se o Exército Britânico não combatesse as tribos Pachtun ali, elas chegariam a Londres, o cheiro a carne queimada pairava sobre as margens do Rio Kunduz. Os caças da NATO haviam reduzido os mais pobres dos pobres a pedaços. Eram aldeões afegãos que se tinham apressado a tirar o combustível de dois camiões-cisterna detidos. Muitos eram crianças com baldes de água e panelas. "Pelo menos" 90 foram mortos, embora a NATO prefira não contar os civis. "Foi uma cena infernal", disse Mohammed Daud, uma testemunha. "Mãos, pernas, e partes do corpo espalhadas por toda a parte". Não houve nenhuma parada em sua honra numa via principal de Wiltshire.
Vi uma coisa semelhante no sudeste da Ásia. Uma bomba incendiária arrasara a quase totalidade duma aldeia de cabanas e havia pedaços de corpos carbonizados que pendiam de redes de pesca suspensas. Os corpos intactos jaziam negros e desconjuntados, como grandes aranhas. Nunca acreditei que fosse necessário testemunhar um inferno destes para compreender o crime. Uma consciência comum é suficiente para todos, excepto os moralmente corruptos e poderosos.
Fresco depois de outra oportunidade para uma fotografia disfuncional com as tropas no Afeganistão (um estratagema que está longe da realidade de sofrimento miserável daquele país) Brown "autorizou" o resgate ao estilo de Rambo de Stephen Farrell, um jornalista de nacionalidade britânica e irlandesa, no local onde se deu o ataque da NATO. Foi uma proeza que correu mal. Um soldado inglês foi morto e o guia de Farrell, Sultan Munadi, um jornalista afegão, foi abandonado e morto. A família de Munadi compreende agora a diferença de valor entre uma vida inglesa e uma afegã.
Durante o massacre de 1914-18, o primeiro-ministro Lloyd George asseverava: "se as pessoas conhecessem [a verdade], a Guerra acabaria amanhã. Mas é claro que não sabem, nem podem saber". Não avançámos já sobre um século de cadáveres o suficiente para que aos Gordon Brown deste mundo sejam negados os seus subterfúgios desonestos? A Guerra do Afeganistão é uma fraude. Começou como uma vingança norte-americana para consumo doméstico no rescaldo dos ataques do 11 de Setembro, nos quais nem um único afegão esteve envolvido. Os Talibã, que são afegãos, não tinham nenhuma querela com os EUA e negociavam secretamente com a administração Clinton a construção de um oleoduto estratégico. Oferecem-se para capturar Osama Bin Laden e entregá-lo a um tribunal religioso, mas esta oferta foi rejeitada.
Estabelecer uma presença permanente dos EUA e da NATO numa região estratégica e rica em recursos naturais é a principal razão para a guerra. Os ingleses estão lá porque é isso que Washington quer. Impedir os Talibã de atormentarem as nossas ruas relembra o lamento do presidente Lyndon B. Johnson: "temos que travar os comunistas [no Vietname] ou teremos brevemente que os combater na Califórnia".
Há uma diferença. Recusando fazer regressar as tropas, Brown ainda pode provocar uma atrocidade por parte de jovens muçulmanos ingleses que vêem a guerra como uma cruzada do Ocidente; o recente julgamento em Old Bailey deixou-o bem claro. Isto foi-lhe dito pelos Serviços Secretos e pelos serviços de segurança britânicos. O próprio conselheiro para a segurança de Brown o afirmou publicamente. Como aconteceu com Tony Blair e os atentados de 7 de Julho de 2005, Brown será responsável pela violência e sofrimento que recaírem sobre o seu próprio povo.
Mais do que as fraudes de membros do parlamento, é esta banalização e manipulação da vida e da morte que assinalam um fim apropriado para o "modernizado" Partido Trabalhista, o partido das guerras criminosas. Os delegados que se preparam para os rituais anuais do partido em Brighton compreendem isto? O facto de a maioria dos membros trabalhistas do parlamento nunca terem exigido um voto ao derramamento de sangue no Iraque que Blair causou e lhe terem proporcionado uma ovação de pé quando ele se foi embora diz o suficiente. Uma tímida moção proposta pelos "populares" em Brighton poderá talvez ser permitida. Esta conclui que "a maioria dos ingleses acredita que a guerra [do Afeganistão] não pode ser ganha". Não se sugere que ela é errada, imoral e baseada em mentiras semelhantes àquelas que levaram à extinção de um milhão de iraquianos, "um episodio mais mortífero que o genocídio no Ruanda", de acordo com uma investigação.
É por isso que a brincadeira das políticas parlamentares acabou para tantos ingleses, em especial os jovens. Em 2005, um sistema viciado permitiu a Blair ganhar com menos votos populares que os conservadores na sua catástrofe eleitoral de 1997. O maior feito do New Labour é ter conseguido a mais baixa participação popular desde os primórdios do sufrágio universal. Hoje, os eleitores vêem Brown dar milhares de milhões em dinheiros públicos a bancos de casino nada pedindo em troca, tendo uma vez saudado as suas práticas como uma inspiração "para toda a economia". Num recente encontro dos líderes do G20 em Londres distinguiu-se por se ter oposto e acabado com uma modesta proposta franco-alemã para um limite nos bónus e penalizações para empresas que abrem falência. O fosso entre os ricos e pobres na Grã-Bretanha é agora o mais vasto desde 1968.
As causas do New Labour e os seus efeitos vão desde um em cada cinco jovens verem recusado emprego, educação e esperança de chegar aos 12 milhões de libras que Blair ganha por ano a "aconselhar" os ricos e dando-lhes formação ao preço de 157 mil libras. Para os mais dedicados de entre os mentores e cortesãos de Blair e Brown, tais como o desacreditado Peter Mandelson, é este o resultado pretendido: o posicionamento do Labour à direita dos conservadores, embora seja provavelmente correcto afirmar que os dois principais partidos convergiram e competem agora um com o outro nas ameaças de cortes nos serviços públicos de modo a pagar o resgate financeiro dos bancos e os senhores da droga de Cabul. Não há menção de cortar nos milhares de milhões a gastar na substituição dos submarinos nucleares "Trident" concebidos para a defunta guerra fria.
A brincadeira acabou. O corporativismo e militarismo revigorado apropriaram-se finalmente da democracia parlamentar, um passo histórico. Para aqueles aldeões afegãos estilhaçados em nosso nome, uma moção cobarde na conferência do Partido Trabalhista vem já demasiado tarde. No mínimo dos mínimos, talvez os "populares" do Partido se perguntem porquê.
17/Setembro/2009
O original encontra-se em http://www.johnpilger.com/page.asp?partid=548 . Tradução de André Rodrigues P. Silva.
Este artigo encontra-se em http://resistir.info/
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