EUA: saúde, solidariedade e revolução
Por: Flavio Aguiar
Mudança na saúde pública dos Estados Unidos altera rota de políticas liberais que se voltavam apenas para o individualismo
Plano de saúde pública nos EUA vai mobilizar quase de imediato US$ 938 bilhões e, sejamos dramáticos, trazer para o século atual 32 milhões de norte-americanos que não têm assistência de saúde (Foto: Pete Souza/Casa Branca)
Há uma visão herdeira da antiga Guerra Fria, segundo a qual uma vitória ou avanço de um campo socialista renovado só será possível com uma derrota militar dos Estados Unidos. Isso implica a desarticulação do Departamento de Estado, uma rendição do Pentágono e a completa aniquilação da CIA. Tudo envolveria uma espécie de ocupação de Washington. O FBI ficaria para depois.
As coisas podem não ser bem assim, no entanto. Veja-se o exemplo da antiga União Soviética. Não houve uma ocupação de Moscou que significasse uma vitória militar do capitalismo e dos EUA à antiga. O regime desabou econômica e militarmente sim, mas devido a uma espécie de “morte natural”, por inadimplência e, como se diz em relação ao corpo humano, uma “falência geral de órgãos”. A KGB não desapareceu: transformou-se, a ponto de seus remanescentes, Putin à frente, terem se credenciado como única forma organizada capaz de empalmar o que sobrara do Kremlin. Desmoralizado, quebrado, depois da falência de sua atuação do Afeganistão, o Exército Vermelho, transformado em Russo, não se desarticulou. Recuou, mas está de pé e de volta, pelo menos desde o tempo de intervenção na Geórgia.
Nessa derrota, o que se desarticulou mesmo foi a utópica ideia de um “homo soviéticus”, o novel ser humano que nasceria da prática comunista. Em seu lugar, ganharam o proscênio da cultura política e econômica na “nova” Rússia e em antigas repúblicas da sua órbita, representantes de um capitalismo selvagem, predatório e corrupto, novos ricos de um “mercadismo” neoliberal tardio e aviltante. Coisa que mostra que o o que medra no mundo cultural, não por cima, mas por debaixo das estruturas econômicas e políticas, pode ser vital como uma infraestrutura de transformações e mudanças radicais. Paradoxo? Nem tanto. Marx entenderia perfeitamente essa ideia. Basta (re) ler o notável “Fetichismo da Mercadoria”, ao final do 1o. capítulo de “O Capital”.
É com base numa ideia desse tipo, ou análoga, que penso termos de fato presenciado um acontecimento maior nos Estados Unidos no último fim de semana, quando, por votação apertada (219 x 212) a Câmara de Deputados em Washington aprovou o “core”, o “núcleo duro”, da Reforma do Sistema de Saúde pretendida pelo governo de Barack Obama. Tal votação foi complementada pela assinatura da lei, na terça-feira, 23 de março, na Casa Branca.
Fala-se em números que impressionam. Um plano que vai mobilizar quase de imediato 938 bilhões de dólares e, sejamos dramáticos, trazer para o século XXI 32 milhões de norte-americanos que não têm assistência de saúde nenhuma: mais ou menos duas grandes São Paulo. Fala-se também em lutas históricas que também impressionam, pois a luta por um sistema de saúde universal nos Estados Unidos data do final do século XIX, começo do XX. Foi o ideal de Franklin Delano Roosevelt, de Harry Truman, de John e Ted Kennedy, para citar apenas alguns nomes. Especialistas comparam essa lei a outras de grande significação histórica: o Equal Pay Act, de 1963, para terminar com a discriminação salarial das mulheres; o Civil Rights Act, de 1964, que proibiu a segregação racial em escolas, transportes e lugares públicos; e as Social Security Amendments (“Emendas da Seguridade Social”), de 1965, que criou os programas Medicare e Medicaid, para idosos (mais de 65 anos) e famílias pobres.
As datas logo acima são eloqüentes: desde então a consciência de solidariedade social nos Estados Unidos, em termos gerais, só fez recuar. Nas esferas da administração pública, pouco a pouco, também se produziu uma avalancha arrasadora de natureza neoliberal, com uma mistura de um fundamentalismo individualista e também religioso, cuja ápice foi o governo de Bush Filho, antecessor de Obama. Todas as ideias de coletividade orgânica, de tecido social regulado, de intervenção do Estado não só na economia mas na regulamentação de direitos e na vida diária dos cidadãos foram postas “sob suspeita”. Esse é o caldo de cultura em que proliferou a catástrofe do sistema de saúde norte-americano até hoje, reputado como um dos piores do mundo, e infenso a conceitos básicos como os que organizam o nosso SUS no Brasil (!) e o sistema médico de Cuba (!!). Há deficiências nestes? Há. Mas nada que se compare à desorganização e precariedade de alcance do norte-americano.
Assim o que de melhor se pode saudar nesse passo gigantesco dos EUA em direção à modernidade (!!!) é o reatar oficial de relações – ainda tímidas – com ideias de solidariedade no campo social. Isso pode levar sim a “revoluções lentas e de longo prazo”, que possam melhorar as políticas públicas, inclusive a externa, e minorar, senão exorcizar, o impulso para as guerras. Se esse caminho se tornar consistente, quem sabe não haverá necessidade de lembrar aquele cenário de vitórias e derrotas militares que evoquei nos primeiros parágrafos deste post que, para mim, nada tem de exultante, só de sombrio.
Os – É claro que na lei votada ainda há uma série de lacunas. A principal delas é o acordo feito com o lobby democrata anti-aborto, excluindo essa prática médica da cobertura federal, exceto nos casos admitidos de estupro, incesto ou risco da vida da mãe. Essa exclusão (ainda assim 34 democratas votaram contra a Reforma) vai continuar a penalizar e fragilizar a vida de milhões de mulheres nos Estados Unidos. Quem sabe isso poderá ser tratado mais adiante.
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