quinta-feira, 16 de junho de 2011

SEU FILHO JÁ VIU UMA VACA "IN LOCO"?

Uma geração de estranhos. Os seres humanos modernos não estão mais acostumados a viver na natureza: só conhecem a cidade.

Umberto Eco

Creio que Michel Serres tem a melhor cabeça filosófica que há na França hoje em dia. E como todo bom filósofo, Serres é capaz de refletir sobre os temas atuais tão bem quanto sobre os fatos históricos. Vou basear descaradamente esta coluna no esplêndido ensaio que Serres escreveu no mês passado para o “Le Monde”, no qual nos alerta sobre questões relacionadas à juventude atual: os filhos de meus leitores jovens e os netos de nós mesmos, os velhos.

Para começar, a maioria desses filhos ou netos nunca viu um porco, uma vaca ou uma galinha – observação que me faz lembrar uma pesquisa feita há cerca de 30 anos nos Estados Unidos. Ela mostrou que a maioria das crianças de Nova York achava que o leite, que elas viam em recipientes sendo vendido nos supermercados, era um produto fabricado pelo homem, tal como a Coca-Cola.

Os seres humanos modernos não estão mais acostumados a viver na natureza: só conhecem a cidade. Eu também gostaria de assinalar que ao sair de férias, a maioria deles se hospeda no que o antropólogo Marc Augé definiu como “não lugares”: espaços de circulação, consumo e comunicação homogeneizados.

As vilas dos resorts são impressionantemente parecidas, digamos, ao aeroporto de Cingapura – cada um deles com uma natureza perfeitamente ordenada e limpa, árcade, totalmente artificial.

Estamos no meio de uma das maiores revoluções antropológicas desde a Era Neolítica. As crianças de hoje vivem em um mundo superpovoado, com uma expectativa de vida próxima dos 80 anos.

E, por causa da crescente longevidade das gerações de seus pais e avós, têm menos probabilidade de receber as suas heranças antes que estejam à beira da velhice. Uma pessoa nascida na Europa nos últimos 60 anos não conheceu a guerra. E, tendo se beneficiado dos avanços da medicina, não sofreu tanto quanto seus antepassados.

A geração de seus pais teve filhos quando tinham mais idade do que a geração de meus pais teve. E seus pais, muito possivelmente estão divorciados. Na escola, estudou ao lado de crianças de outras cores, religiões e costumes.

Isso levou Serres a se perguntar quanto tempo mais os estudantes da França cantarão a Marselhesa, que contém uma referência ao “sangue impuro” dos estrangeiros.

Que obras essa pessoa pode desfrutar? E com quais ela consegue estabelecer uma conexão, já que nunca conheceram a vida rústica, a vindima das uvas, as invasões militares, os monumentos aos mortos, os estandartes perfurados por balas inimigas ou a urgência vital da moralidade?

Seu pensamento foi formado por meios de comunicação que reduzem a permanência de um fato a uma pequena frase e a imagens fugazes – fiéis ao senso comum dos lapsos de atenção de sete segundos – lembrando que as respostas dos programas de perguntas devem ser dadas em 15 segundos.

E esses meios de comunicação lhe mostram coisas que não veria em sua vida cotidiana: corpos ensanguentados, ruínas, devastação. “Ao chegar aos 12 anos de idade, os adultos já forçaram as crianças a serem testemunhas de 20 mil assassinatos”, escreve Serres. As crianças atuais são criadas com publicidades repletas de abreviações e palavras estrangeiras que as fazem perder contato com sua língua materna.

A escola já não é mais um lugar de aprendizado e, acostumadas aos computadores, elas vivem uma boa parte de sua existência no mundo virtual. Ao escrever em seus aparelhos eletrônicos usam seus dedos indicadores ou polegares em vez da mão toda. (E, além disso, estão totalmente consumidas pelo afã de desenvolver várias tarefas ao mesmo tempo).

Elas ficam sentadas, hipnotizadas pelo Facebook e pela Wikipedia, que, segundo Ferres, “não estimulam os mesmos neurônios nem as mesmas zonas do córtex (cerebral)” que se estivessem lendo um livro.

Antes, os seres humanos viviam em um mundo conhecível, tangível. Esta geração existe em um espaço virtual, que não estabelece distinção entre proximidade e distância.

Não comentarei as reflexões de Serres sobre como manejar as novas demandas de educação. Mas sua observação geral do tema engloba um período de revolução total não menos essencial que as eras que levaram à invenção da escrita e, séculos depois, da imprensa.

O problema é que a tecnologia moderna muda a uma velocidade louca, escreve Serres, e “ao mesmo tempo o corpo se transfigurou, o nascimento e a morte mudaram, bem como o sofrimento e a cura, as vocações, o espaço, o meio ambiente e o estar no mundo”.

Por que não estávamos preparados para essa revolução? Serres chega à conclusão que talvez parte da culpa deva ser atribuída aos filósofos, que, por natureza de sua profissão, deveriam prever mudanças no conhecimento e na prática. E não fizeram o suficiente nesse sentido porque, como estavam “envolvidos na política diariamente, não sentiram a chegada da contemporaneidade”. Não sei se Serres está completamente certo, mas com certeza não está totalmente errado.

(transcrito do Diário do Comércio,
com tradução de Rodrigo Garcia)

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