O
fato do modo de produção capitalista causar desequilíbrios em
sociedades e no meio ambiente foi amplamente descrito e analisado no
século passado. Entretanto, na atual fase do capitalismo, destaca-se
ainda outra tendência, ainda menos estudada, inerente deste sistema: a
de explorar economicamente crises, inclusive aquelas por ele provocadas.
A jornalista canadense Naomi Klein (2008), no seu livro "A doutrina do
choque: a Ascensão do Capitalismo de Desastre" descreve, como, nos
Estados Unidos, experimentos psiquiátricos associados a teorias do
liberalismo econômico de Milton Friedman deram origem a novas
estratégias de dominação geopolítica, que, em seguida foram "testadas"
nas ditaduras latino-americanas. Estes mecanismos começam a funcionar
quando os indivíduos de uma sociedade perdem sua narrativa, e o
capitalismo selvagem, aproveitando sua paralisia e impotência, pode
impor suas regras sobre eles. Nesta lógica perversa, desastres naturais
e até guerras tornaram grandes "oportunidades de mercado".
O
presente artigo busca, a luz do conceito do Capitalismo de Desastre,
analisar a adaptação de um modelo "clássico" de desenvolvimento
sustentável, vigente no Acre na maior parte da primeira década de 2000
para o modelo atual que enfatiza a implementação dos mecanismos da
chamada Economia Verde, apontando como marco desta transição a Lei
Estadual 2.308/2010, que cria o Sistema Estadual de Incentivos a
Serviços Ambientais(SISA), no Acre.
Fase um: "Use-o ou perca-o"
O
período do "clássico" desenvolvimento sustentável teve seu início no
Acre em 1999, quando a chamada Frente Popular do Acre (FPA), liderada
pelo Partido dos Trabalhadores (PT) assumiu o governo do Estado com
Jorge Viana. A equipe do chamado "Governo da Floresta" soube
reproduzir em nível local um discurso que havia se criado no âmbito da
Organização das Nações Unidas (ONU), a partir de 1980, e consolidado na
ECO 92. Conforme o lema: "use it or lose it" (use-o ou perca-o), o
discurso do "desenvolvimento sustentável" disseminado nesse momento
afirmava que a única possibilidade de preservar os recursos biológicos
seria usá-los comercialmente, ou seja, incluí-los em processos
produtivos.
A FPA e os primeiros empréstimos para políticas de desenvolvimento sustentável
Promovendo
a ideia que a "Frente Popular" seria a autentica continuação da luta
dos povos das florestas acreanas e transfigurando estes povos como se
fossem vocacionados "ambientalistas de mercado" , o Governo ofertou o
Acre para as grandes agências e bancos de desenvolvimento, como
laboratório e vitrine do desenvolvimento sustentável na Amazônia.
Logo
em 2002, o Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID) concedeu um
primeiro empréstimo de US$ 64,8 milhões para viabilizar o Programa de
Desenvolvimento Sustentável do Estado do Acre (PDSA). Seguiriam-se, nos
dez anos posteriores, uma série de financiamentos dos grandes bancos de
desenvolvimento nesta linha. De acordo com documentos do Governo, as
operações de créditos (empréstimos) em 2011 totalizaram R$ 1.62 bilhões.
(ACRE 2011, p.13). Os dados da oposição entretanto indicam, que a
dívida do Acre esteja na cifra dos R$ 3 bilhões. (AC24HORAS, 2013) . O
problema do endividamento ainda é agravado pela crescente dependência do
estado dos recursos federais. Enquanto em 2004 a União transferiu em
torno de 1,2 bilhões de Reais para o Acre, em 2012 as transferências
ascenderam a mais que 3 bilhões. (CGU 2013)
As condicionantes que acompanham os empréstimos estão exemplificadas na descrição do projeto atual financiado pelo BID: "Espera-se
leiloar 300.000 hectares de florestas estaduais em licitações fechadas
para o manejo florestal sustentável. [...] O projeto prevê um aumento
da contribuição do setor florestal para o crescimento econômico em 6 por
cento" (IADB 2013, tradução nossa)
Mesmo
ocorrendo praticamente despercebido pela população do Acre, o
endividamento do Estado surte severas consequências, inserindo-se na
lógica do Capitalismo de Desastre. - Assim como a
crise da dívida na década de 80 havia forçado os países africanos e
latino-americanos a "privatizar ou morrer" (KLEIN 2008,p.20), os
compromissos financeiros com os grandes bancos fizeram "necessário" a
penhora e privatização das florestas no Acre. Em 2006, a então
Ministra Marina Silva criou as bases para esta privatização, ao
permitir, por meio da Lei n.º 11.284, as concessões de florestas
públicas para empresas privadas.
Perda de identidade
A pressão financeira exercida pelos bancos se traduz diretamente na
repressão dos povos da floresta pelo Governo. Além da tutelagem pelo
discurso tecnocrata e a cooptação de lideranças, o medo contribui para a
paralisia destas pessoas: medo de ser multado pelos órgãos ambientais,
medo de ser criminalizado, de ser excluído ou reprimido por discordar
com as políticas governamentais. O líder seringueiro Osmarino Amâncio
descreve a atual situação do movimento assim: "Hoje você vê o
Secretário dirigindo a assembleia do sindicato, secretário do Governo do
Estado fazendo a pauta do movimento sindical e o sócio ta la, muitas
vezes assistindo" (ALMEIDA, CAVALCANTE 2006, p.70). O que os
fazendeiros não conseguiram na década de 1980 - desmobilizar o movimento
seringueiro - as politicas paternalistas do desenvolvimento sustentável
promoveram com muito mais eficácia nas décadas seguintes. O principio
da dominação neste processo se baseia, assim como às técnicas
psiquiátricas que foram aplicadas pela Agência Central de Inteligência
americana (CIA) nas ditaduras latino-americanas, no isolamento, no
esmorecimento da personalidade e na perda de identidade No caso dos
povos da floresta, esta identidade é plenamente vinculada ao us e às
formas de ocupação do território. .
A
Presidente do Sindicato de Trabalhadores Rurais de Xapuri, Dercy Teles
descreve a iminente perda de identidade provocada pelas represálias
ambientais assim: "você vai se sentir inútil, não tem como a pessoa
viver parada só comendo e olhando pra mata sem poder fazer tudo aquilo
que ele cresceu fazendo, pescando, caçando, andando, fazendo sua roça,
etc." (DOSSIÊ ACRE 2012, p.39)
Fase dois: "Precifique, ameace e negocie-o"
Em 2007, a ONU iniciou uma nova produção discursiva, ao introduzir o Programa Economia dos Ecossistemas e da Biodiversidade (TEEB,
na sigla em inglês) (2008). Em contraste com o lema do "clássico"
desenvolvimento sustentável "use-o ou perca-o", agora agrega-se valor
financeiro à recursos e processos naturais ameaçados ao se comprometer
em os manter intocados, ou seja, em não usá-los. Uma vez tendo um
processo natural descrito tecnicamente como "serviço ambiental", e tendo
ele precificado sob a confirmação de que sua existência e reprodução
estão ameaçadas, certificados podem ser emitidos e vendidos. Estes
papeis certificam que haverá uma provisão "adicional" deste serviço por
meio de um determinado projeto: adicional em relação a um cenário
projetado sem o projeto. O primeiro "serviço" a ser precificado e
negociado na prática foi o da fixação de carbono nas florestas, que deve
parcialmente compensar emissões de indústrias que causam o aquecimento
global. Certificados gerados a partir de projetos de Redução de
Emissões por Desmatamento e Degradação Florestal, chamados REDD ou
REDD+, já podem ser adquiridos por poluidores que querem se tornar
"neutros em carbono".
Mais
uma vez, o governo da FPA soube rapidamente traduzir o discurso do
nível global para o local e assegurar sua posição de "vanguarda" na
aplicação da Economia Verde nas florestas tropicais. Ao
criar a já citada neste artigo Lei SISA , o Estado autoriza a si mesmo,
por meio da criação de institutos, comissões e uma agência comercial, a
criar e alienar créditos resultantes de "serviços ambientais", tais
como sequestro de carbono, conservação da beleza cênica natural,
regulação de clima, valorização cultural e do conhecimento tradicional
ecossistêmico, entre outros.
Mas,
como recursos e processos naturais que são concebidos pela Constituição
Federal de 1988, em seu Artigo 225 como bens comuns e,
consequentemente, inapropriáveis e inalienáveis, podem de repente "por
lei" ser transformados em mercadoria? Ignorando as fortes preocupações
da sociedade civil, como aquelas formuladas na Carta do Acre (2011), os
promotores da Economia Verde dão maciço apoio à implementação do
sistema "exemplar" no Acre. Após quatro dias da criação da Lei SISA, o
Fundo Amazônia aprovou o financiamento do Projeto Valorização do Ativo
Ambiental Florestal com R$ 60 milhões, para incentivo técnico e
financeiro aos serviços ambientais. (FUNDO AMAZÔNIA 2013) Em 2013,
seguiram mais R$ 50 milhões do banco alemão KFW à titulo de
reconhecimento pelas "ações pioneiras" e como incentivo, dentro do
programa REDD "Early Movers" (REM) (IPAM 2013).
Quais
são então, nesta nova fase, as condições do financiamento? Para
garantir a manutenção dos "serviços ambientais" os impactos negativos da
"ação antrópica" (atividades de seres humanos) precisam ser
minimizados, ou seja , as pessoas que vivem da floresta precisam ter
suas atividades controladas ou suspensas. Isto exige restrições e regras
de gestão ambiental mais severas.
É
neste momento, que a crise - a paralisia do movimento, a criminalização
das práticas tradicionais pelas políticas paternalistas do
"desenvolvimento sustentável" - se torna "oportunidade", abrindo o
terreno para a imposição dos novos mecanismos mercadológicos.
Comprometidos por algum pagamento, enganados por um falso discurso que
os descreve como "guardiões da floresta" e, de fato, privados de seu
direito de livre interação com os elementos da natureza, os moradores da
floresta passam a preencher no cenário da Economia Verde na verdade a
função de imóveis "espantalhos culturais", tendo a única atribuição de
vigilância para que os processos de acumulação de capital, a partir do
seu território, ocorram imperturbados.
Em
2012, na Rio+20, integrantes do grupo da Carta do Acre interviram em
eventos promovidos pelo Governo do Acre e lançaram um dossiê intitulado
"O Acre que os mercadores da natureza escondem", revelando a aplicação
do modelo da Economia Verde no Acre como ambientalmente destrutivo e
socialmente excludente.
Entretanto,
as palavras mais diretas acerca da "nova logica" por trás dos serviços
ambientais e REDD vieram de forma inesperada, de uma pessoa que tinha
sido considerado um potencial "parceiro" do Governo do Acre. No evento
paralelo da Rio+20 Economia Florestal Verde e Cooperação Sul-Sul,
realizado pelo WWF Internacional com o Governo do Acre e o Governo de
Sabah (Malásia), o diretor do setor Florestal de Sabah, Datuk Sam
Mannan causou constrangimento entre os presentes representantes de
governos e ONGs, quando explicou: "Se nossa atividade habitual é
a boa governança das florestas, tratando-se de uma floresta certificada
e bem gerida em uma área de padrão mundial de conservação e, assim por
diante, o REDD + não pode ser aplicado. Foi-me explicado que não há
adicionalidade - ou seja, a adicionalidade do medo!!. Não havendo
adicionalidade, o carbono não tem nenhum valor - não vai vender. Ninguém
quer comprá-lo. Nada! Se, pelo contrário, você destruir e depois parar
no meio, ameaça de causar mais danos, então há adicionalidade e,
portanto, o carbono retido vende. Senhoras e Senhores, isso é loucura e um sistema que recompensa trapaceiros, recompensa chantagistas e recompensa pessoas que intimidam. Al Capone deve estar sorrindo no túmulo dizendo: 'Cumpadre, minha cultura está viva!'" (MANNAN 2012, p.11, tradução nossa)
O Acre como laboratório de choque?
Mais recentemente, com a aprovação da Lei Estadual 2.728, em agosto de
2013, o Governo do Acre autorizou a transferência de cem milhões de
toneladas de dioxido de carbono para a Companhia Agência de
Desenvolvimento de Serviços Ambientais do Estado do Acre S/A, a agência
comercial do SISA. Supondo que uma tonelada do gás tenha valor de R$ 10,
esta transferência corresponderia a um bilhão de reais. Com isso, o
Governo parece querer inaugurar o ato da milagrosa "multiplicação do
carbono", no qual quaisquer ameaças ambientais ou impactos negativos
sobre os ecossistemas, inclusive aqueles que podemos esperar no futuro
próximo em consequência da exploração de gás e petróleo no Acre, podem,
através da palavra mágica "adicionalidade" ser transformados em
dinheiro. Mas qual será ao final o destino deste dinheiro? Provavelmente
terá que ser usado para pagar os juros para os bancos, viabilizando
assim novos e maiores financiamentos e continuar saciando a sede do
capital em manter escalas de lucro crescentes.
Os
Programas de Pagamento por Serviços Ambientais e REDD visam transformar
o Acre em mais um "laboratório de choque", onde endividamento,
destruição ambiental, opressão e espoliação dos povos formam um circulo
viçoso. Naomi Klein define um estado de choque como "momento em que se
forma uma lacuna entre os eventos que se sucedem rapidamente e a
informação disponível para explicá-los." (KLEIN 2008, p.543) Neste
sentido, temos que concentrar esforços para monitorar, analisar e
compreender estes eventos, ou seja, fechar esta lacuna e recuperar a
capacidade de reação.
Nota:
Fazem parte do arranjo Institucional do SISA: (1) o Instituto de
Regulação Controle e Registro, (2) a Comissão Estadual de Validação e
Acompanhamento, (3) o Comitê Científico (4), a Ouvidoria do Sistema e
(5) a Agência de Desenvolvimento de Serviços Ambientais do Estado do
Acre.
Referência bibliográficas:
ACRE, Governo do Estado , Desenvolver e Servir - Plano Plurianual 2012 - 2015, Rio Branco, 2011.
AC24HORAS, Notícia do 12/12/2012: Dilma não anistia dividas dos estados e medida provisória vai mudar indexador.
[http://www.ac24horas.com/2012/12/12/dilma-nao-anistia-dividas-dos-estados-e-medida-provisoria-vai-mudar-indexador/ , Acesso 04 Set. 2013 ]
ALMEIDA, L.; CAVALCANTE, M., Osmarino Amâncio: tempo de resistência, em PAULA, E., SILVA, S., (Orgs.)Trajetórias da Luta Camponesa na Amazônia-Acreana, EDUFAC, Rio Branco 2006, p.63-77.
CARTA
DO ACRE - Em defesa da vida, da integridade dos povos e de seus
territórios e contra o REDD e a mercantilização da natureza (documento
elaborado por 30 organizações sociais de defesa ambiental e dos direitos
humanos na Amazônia, em Rio Branco (AC),
2011. [http://www.plataformabndes.org.br/site/index.php/biblioteca/category/12-notas-e-manifestos?download=38 , Acesso 23 Ago 2013 ]
CGU - Controladoria-Geral da União, Portal da Transparência: Transferência de Recursos. [http://www.portaldatransparencia.gov.br . Acesso em 04 Set. 2013]
DOSSIÊ ACRE: O Acre que os mercadores da natureza escondem (documento especial para a Cúpula dos Povos), 2012. Disponível em: http://www.cimi.org.br/pub/Rio20/Dossie-ACRE.pdf. Acesso em 23 Ago 2013 ]
FUNDO AMAZÔNIA, Projeto: Valorização do Ativo Ambiental Florestal [http://www.fundoamazonia.gov.br/FundoAmazonia/fam/site_pt/Esquerdo/Projetos_Apoiados/Lista_Projetos/Estado_do_Acre. Acesso em 04 Set. 2013]
MANNAN,
Datuk Sam, The Rainforests of Sabah, Malaysian Borneo: will we still
see them in the next century ? A speech delivered by Satuk Sam Mannan,
Director of Forestry, Sabah, Malaysia, at the Rio+ 20 side event,19th
june 2012, Rio de Janeiro, Brazil. Disponível em [http://www.forest.sabah.gov.my/images/pdf/press%20release/en/Speech-Rio.pdf. Acesso em Ago.2013.
IADB,
Brazil's Acre gets $72 million IDB loan for Sustainable Development
Program - Inter-American Development Bank. Disponível em: http://www.iadb.org/en/news/news-releases/2013-04-22/sustainable-forestry-in-brazils-acre,10425.html. Acesso em 23 Ago2013.
IPAM,
Instituto de Pesquisa Ambiental da Amazônia - Karl-Heinz Stecher:
Programa remunera Acre por resultados contra desmatamento [ http://www.ipam.org.br/revista/Karl-Heinz-Stecher-Programa-remunera-Acre-por-resultados-contra-desmatamento/493 Acesso em 23 Ago 2013 ]
KLEIN, Naomi, A doutrina do choque: a Ascensão do Capitalismo de Desastre / Naomi Klein; tradução Vania Cury, Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2008.
TEEB, Economia dos Ecossistemas e da Biodiversidade, Um relatório preliminar, Cambridge - Reino Unido, 2008. Disponível em: http://www.teebweb.org/wp-content/uploads/Study%20and%20Reports/Additional%20Reports/Interim%20report/TEEB%20Interim%20Report_Portuguese.pdf.,Acesso em 23 Ago2013.
Michael f. Schmidlehner*
é austríaco nato e brasileiro naturalizado, possui mestrado em
filosofia pela Universidade de Viena - Áustria, e atua no Acre desde
1995 como sócio fundador da organização não governamental
Amazonlink.org, jornalista e professor de filosofia.
Nenhum comentário:
Postar um comentário