Europa se 'latinoamericaniza' e troca Estado de bem-estar por política social à brasileira, diz professora
O que há em comum entre o ajuste fiscal
que ameaça retirar direitos dos trabalhadores no Brasil e as medidas de
austeridade que levaram milhares de gregos, espanhóis e portugueses às
ruas nos últimos meses? Para Sara Granemann, professora da Escola de Serviço Social da UFRJ
(Universidade Federal do Rio de Janeiro) que acaba de voltar de um
pós-doutorado em Portugal, o que está acontecendo nos países da Europa
do Sul é um processo de “latinoamericanização”.
Sociedades europeias que tinham conquistado importantes direitos sociais,
através de revoluções ou da experiência do Estado de Bem-Estar Social,
hoje adotam uma “política de mínimos”, em que as políticas sociais se
tornam um meio de transferir recursos do fundo público para o capital privado. E esse modelo, segundo Sara, tem, em grande medida, o Brasil como referência mundial.
A entrevista é de Cátia Guimarães, publicada por EPSJV/Fiocruz, 26-05-2015.
Nesta entrevista, além de descrever com mais detalhes a situação de Portugal, ela explica as origens históricas da política de austeridade — que no Brasil surge como contrarreforma do Estado —, analisa a “divisão de tarefas” desse processo entre os governos Fernando Henrique, Lula e Dilma Rousseff e desmistifica a ideia de que ajuste fiscal
e austeridade significam menos gastos públicos. Ela também comenta a
reação que tem se construído na Europa por meio de partidos como Syriza, na Grécia, e Podemos, na Espanha.
Eis a entrevista.
A que momento podemos nos
remeter para explicar a forte política de austeridade que recai hoje
sobre países como Grécia, Portugal, Espanha e Itália?
A determinação de
fundo, na minha compreensão, está relacionada ao fim daquele ciclo mais
"virtuoso" de extraordinários lucros que possibilitaram enorme
crescimento do capital no pós-2ª Guerra Mundial, quando, por essas e
outras razões, foi possível o Estado de bem-estar social. Até esse
momento, ainda havia lugares e setores da economia que tinham
possibilidade de crescimento e de se tornarem capitalistas.
Não é possível aprofundar esse tema agora, mas é preciso relacionar
esse momento virtuoso em uma parte do mundo — a Europa — com a barbárie
em curso na África e em muitos países da América Latina, que foram
submetidos a ditaduras cruéis do grande capital. Outro
elemento importante para garantir um certo fôlego na manutenção das
estruturas dos Estados Sociais e de direitos dos trabalhadores no
continente europeu foi a conversão dos países do Leste Europeu ao modo
capitalista de produção a partir de 1989. Mas, uma vez esgotada a
possibilidade de expansão da acumulação capitalista pela expansão
territorial, a lei férrea do modo capitalista de produção impõe-se sobre
aquelas áreas que antes eram ocupadas pelo Estado. Refiro-me a um
fenômeno que não é original desse período, mas que ganha agora uma
qualidade nova: a privatização do fundo público, que deve ser
transferido aos capitais já que o Estado não deve ser tão largo.
Aquela fração do mesmo fundo público que
viabilizava as políticas sociais como direito dos trabalhadores passa a
constituir os montantes que, por múltiplas e facetadas formas, devem
ser agora transferidas aos capitais. Assim, racionalidade do Estado,
enxugamento, vida acima das possibilidades, déficit, austeridade são
expressões diversas para justificar a mesma política de aumento da
exploração do trabalho. São austeros os capitais, são imprudentes
gastadores irresponsáveis os trabalhadores. Então, austeridade tem que
ser para e sobre os trabalhadores. Em Portugal, por exemplo, os
políticos e os capitais, dizem que os trabalhadores viveram acima das
suas possibilidades; curiosamente, essa constatação não faz referência à
porção do fundo público destinada aos capitais durante suas crises e
fora delas. Portugal, nisto foi emblemático: no ano de 2014, o socorro
ao BES (Banco Espírito Santo) realizou-se amparado no
fundo público, o mesmo fundo que não se pode utilizar para as
aposentadorias (ditas reformas, naquele país) por conta de uma "gestão
austera".
A crise dos anos 1970, o começo do
esgotamento desse ciclo de crescimento pós-guerra traz um sinal muito
claro: o modo de produção capitalista está começando a ter mais uma das
suas dificuldades de crescimento. Com o fim do Leste Europeu, há um leve
refresco para esse crescimento, mas aí vêm Margareth Tatcher e Ronald Reagan.
Eu acho que a política mais recente de austeridade tem suas raízes aí,
no marco temporal que cobre dos anos 1970 ao começo dos anos 1990. Aí
começam as políticas que já foram chamadas de ‘ajuste’ e agora, na
Europa, se chama de austeridade. O bloco de regramento de países
europeus começa com a construção da Comunidade Europeia, do Euro, de
todo aquele disciplinamento imposto aos países para que pudessem
participar de um bloco econômico. E para isso era preciso fazer já
alguns ajustes: de produtividade, de contratação da força de trabalho,
de valores de remuneração do trabalho necessário, etc. Mas ainda não era
tão brutal como aquilo que se desenhou a partir de 2007/2008, com a
crise. Nesse momento, o ajuste, evidente, nos países da Europa no Sul —
mas que não é diferente do que acontece aqui —, significa claramente ser
austero com os "muitos" direitos que os trabalhadores conquistaram por
meio de uma legislação de trabalho um pouco mais protetora.
Você conheceu de perto a experiência de Portugal. Como esse processo está se dando por lá?
Lá os trabalhadores conseguiram, especificamente a partir da Revolução dos Cravos,
de 1974, direitos que nunca tinham tido, direitos que inexistiam em
Portugal e na Espanha, mas que já tinham vigência na Inglaterra, França,
Suécia, Alemanha, Itália, como jornada de trabalho; salários decentes; a
construção de uma política social universal de educação, saúde e
segurança social (que é como eles chamam a previdência), e de habitação.
Essas políticas básicas de emprego e políticas sociais são de
construção recente em Portugal. A revolução em Portugal durou cerca de
19 meses e o que aconteceu depois foi um acordo pelo alto e uma “democratização”,
que na verdade foi a reconstrução da política burguesa. Só que como
tinha havido uma revolução, os direitos sociais tinham que ser
garantidos. Porque a burguesia foi corrida de lá — uma parte muito
importante dela veio para o Brasil —, o dinheiro no banco foi bloqueado
pelos trabalhadores. Com a “reinstitucionalização democrática”, ela
voltou aos poucos, recebeu indenizações — porque havia deixado suas
casas e suas fábricas, muitas delas ocupadas pelos trabalhadores, num
modelo de autogestão. Então, mesmo após a “redemocratização burguesa” , a
burguesia não teve como retirar os direitos alcançados pela revolução
dos cravos no período imediatamente posterior à sua volta ao país. O
ataque aos direitos teve de ser uma medida urdida com cuidado: suas
primeiras iniciativas ocorrem por volta dos anos 2000, com os socialistas.
Aí começam a tirar aquelas coisas que parecem pequenas, e que não se
nota no dia a dia, mas que, quando se faz um acúmulo de todas elas, a
população vê que foi muito. Por exemplo, a agenda de atendimento nos
hospitais e postos de saúde começa a ser mais demorada, começa a
priorizar um certo tipo de doenças a serem atendidas.
Mas antes não era assim. Isso foi uma
desconstrução. E um povo que nunca tinha tido esses direitos passou a
ter uma certa confiança cultural de que esses direitos não seriam
alterados nunca. Então, deixou a política para os políticos, que é um
pouco o que aconteceu em quase todos os países. E os políticos, deixados
à sua própria sorte, não representam os trabalhadores; em sua maioria,
representam o capital. Agora, com a crise de 2007/2008, Portugal teve
que fazer um novo ajuste. Os grandes capitais, pela via da Troika,
passam a exigir da periferia da Europa regramentos condizentes com a
produtividade do trabalho já que ela tem uma alta produtividade do
trabalho, mas não tão alta como a da Alemanha, por exemplo. Para esse
conjunto de trabalhadores da Europa do Sul exigem-se reformas como, por
exemplo, a oferta de saúde só para aqueles que não consigam pagar por
ela – em Portugal, para ser atendido pelo sistema nacional de saúde sem
pagar as tais “taxas moderadoras”, há que se provar que é pobre, que
ganha até um determinado percentual do salário mínimo. As universidades
públicas requerem o pagamento pelos estudantes de taxas chamadas de
“propinas", que podem alcançar os 1200, 1400 euros ao ano. Essa tragédia
tem empurrado uma parte importante da juventude para fora do ensino
superior
Todas essas mudanças se dão a partir de 2007/2008?
As taxas moderadoras na
saúde sim e o agravamento das propinas também. Elas já existiam na
universidade desde, talvez, 2001, mas eram como uma pequena taxa de
matrícula. De 2010 para cá, são outra coisa. Foi quando a Troika
chegou a Portugal e impôs o “memorando do entendimento”, como fez na
Grécia, que a situação de vida e de trabalho da classe trabalhadora
portuguesa agravou-se perigosamente. Esse memorando diz o que tem que se
fazer, diz qual política os soberanos governos devem implementar. É de
2010 e se renova todos os anos para garantir os empréstimos ao país que
está em crise. A austeridade implica — e eu digo isso com ironia — a
“democratização” das condições rebaixadas da Europa a partir de um
referencial da América do Sul, uma latinoamericanização cujo modelo
principal é o Brasil.
Em que essa política de austeridade na Europa se parece com o Brasil?
Na redução dos direitos
pela reforma das políticas sociais, que são rebaixadas. Em Portugal,
havia uma escola em cada aldeia, agora estão fechando e transportam as
crianças e jovens de ônibus de um lugar para outro. Os direitos do que
eles chamam de contrato coletivo — férias, 13º salário —
começam a desaparecer ou ser reduzidos: os servidores públicos tiveram
em 2011 ou 2012 uma redução que chegou a quase 30% do seu salário. Não é
que não tenham recebido aumento de salário pela inflação: o Estado
cortou os salários, com a justificativa de manter o emprego. O outro
pilar dessa austeridade
via Estado é tornar o fundo público devedor de títulos públicos,
securitizar o fundo público. Para aumentar o fundo público – que é a
política de austeridade – o Estado tem que vender títulos e, com isso,
aumenta a dívida. Eu diria que a forma dessas sociedades está ficando
muito parecida com a do Brasil por esses três caminhos.
Ao par disso, tem se desenvolvido
lentamente uma política de repressão na Itália, na Espanha, na França e
na Alemanha, embora ainda não tão forte como aqui. Tem aumentado nesses
países a violência policial sobre os mais pobres, os que vivem em bairros sociais, os trabalhadores mais precarizados e os imigrantes. A austeridade
consiste nisso. A Europa tem estimulado a população a tratar os
imigrantes como estranhos. Austeridade acaba dando vazão para o
crescimento da xenofobia porque reduz o emprego.
Como essa política tem afetado os direitos trabalhistas?
Eu vou te dar um dado que eu recebi recentemente — compilado pela pesquisadora Maria da Paz Campos Lima, do grupo de estudos de que faço parte em Portugal — que ilustra as consequências dessa austeridade.
Em Portugal, o número de trabalhadores abrangidos pelos contratos
coletivos era de quase 2 milhões em 2008. Contratos coletivos são os
contratos de uma categoria. Em 2008, eram precisamente 1.894.846. Ou
seja, quase metade dos trabalhadores assalariados. Hoje, em 2015, só
246.643 trabalhadores, cerca de 5% da população ativa, são protegidos
por contrato coletivo. Lá existe uma coisa que eles chamam de trabalho
“a recibos verdes”, que são uma flexibilização da legislação
trabalhista, do contrato coletivo. O Estado paga uma parte ou dá isenção
ao empregador que contrata a recibos verdes. Quem é
contratado a recibos verdes não tem direito a férias remuneradas, 13º
terceiro salário e o valor do seu salário é menor. Então, é o
rebaixamento do valor da força de trabalho, com um contrato individual e
sem direito algum. Isso se dá com a política de austeridade da troika —
que é quem impõe essa política, claro que em consonância com os
burgueses de cada país —, de 2008 para 2014, que é o período que a crise
bate em Portugal e a partir de 2010, 2011, com o memorando do
entendimento. É brutal. Temos um êxodo gigantesco de força de trabalho.
Nas décadas que se seguiram à revolução de abril de 1974, Portugal foi
um dos países que alcançou, proporcionalmente a população, um dos
maiores índices de doutores da Europa. Mas eles não têm onde trabalhar.
Ou trabalham a recibos verdes ou migram. Eles têm migrado, e muito.
Essa política de austeridade também recai sobre os países que não são da periferia da Europa?
Claro. Especialmente na
França e na Alemanha, a locomotiva da Europa, os salários estão
sofrendo um rebaixamento e diminuição dos postos. A grande massa de
imigrantes portugueses, espanhóis que vão para a Alemanha começa a ter
dificuldade de manutenção dos seus empregos lá porque também começam a
sofrer uma disputa grande com os alemães. Eles são estimulados a ir,
tanto pela Alemanha e França quanto pelos países que estão em crise. O
primeiro ministro disse para os trabalhadores portugueses no ano
passado: imigrem, não tem emprego aqui. Só que quando eles chegam à
Europa pujante, aumentam a oferta de trabalhadores dispostos a qualquer
trabalho e isto faz cair o valor da força de trabalho empregada,
inclusive da nativa. Quando os empregos começam a restringir, a própria
classe trabalhadora começa a hostilizar os trabalhadores vindos de
outros países; começam a crescer fenômenos como o da xenofobia.
E no Brasil? A partir de que momento podemos identificar mais claramente a prevalência de uma política de austeridade?
Eu acho muito boa a inspiração do Otavio Ianni
— que ele não desenvolveu muito, mas está no livro ‘Ditadura do grande
capital’ — que mostra como a dívida tem, da ditadura para cá, dois
momentos muito marcados. Naquele momento a dívida foi um dos elementos
para a ditadura fazer o trânsito consolidado – que já vinha acontecendo
desde JK pelo menos — da economia brasileira para a idade dos monopólios.
O endividamento foi um mecanismo de “modernização” das estruturas do
Estado e produtivas para o país, o que incluiu a construção das
estruturas financeiras que ainda não existiam: remodelação da bolsa de
valores, construção da Comissão de Valores Imobiliários, bancos nos
estados, um conjunto de organismos necessários a um novo momento do
desenvolvimento capitalista no Brasil. Então, a dívida era um
instrumento para essa “modernização” (com muitas aspas, porque é a
modernização capitalista) necessária à passagem para um novo momento. A
dívida, nesse período da ditadura, é especialmente dívida externa. Houve aquele crescimento brutal, passamos por Sarney e veio a Constituição. Eu não faço parte daqueles que consideram que se instaurou aqui naquele momento um certo Estado de Bem-Estar Social
porque o que houve foi muito limitado e não se deu como naquelas partes
da Europa em que isso foi desenvolvido. Para ser Estado de Bem-Estar
social exigiria políticas sociais e políticas de emprego combinadas, de
desenvolvimento econômico.
O segundo momento, que eu identificaria mesmo como o do ataque a essas políticas, começa com Fernando Henrique.
É um projeto profissional, científico, organizado, muito bem construído
do ponto de vista do capital de reestruturação do Estado. Aquilo que
nós chamamos de contrarreforma já é a austeridade aqui.
É nisso que consiste a austeridade: o Estado entregar o fundo público
ao capital, gastar menos com direitos sociais, com políticas sociais e
destinar esses recursos ao capital. Só que tem um limite em vender os
bancos, as empresas: o limite é que elas acabam. O fundo público alocado
nas políticas sociais é renovado todos os anos, todos os meses, todos
os dias por meio dos impostos. Então, me parece que o capital acordou
para esse maná de dinheiro. Existe uma divisão do trabalho com relação a
essa política de austeridade. Fernando Henrique faz a contrarreforma do
Estado, prepara os instrumentos para a continuidade disso, mas não
consegue realizar todo o projeto. Então, continua a venda das estatais,
privatiza os bancos, enxuga o Estado, põe maiores dificuldades para o
alcance das políticas sociais. Lula e Dilma
também privatizam aeroportos, estádios, estradas, mas atuam já num
segundo momento da austeridade, no uso do fundo público para os
trabalhadores. E no que consiste? O Brasil é emblemático e modelo numa
política social que está se desenhando especialmente na Europa do Sul,
que é essa política social de mínimos, de destituição de direitos, para
usar menos recursos do fundo público, e ao mesmo tempo para abrir espaço
para novos negócios. Retira-se dinheiro das políticas sociais para que
sobre mais dinheiro para essa nova forma do segundo momento da dívida, o
que é uma manipulação do fundo público para pagar os títulos públicos.
Isso é algo novo, não porque antes não existisse, mas porque ganha uma
centralidade no montante do fundo público que é destinado para isso
enquanto para as outras coisas tem-se uma redução brutal. Esse é o
modelo brasileiro.
No senso comum, a defesa da
austeridade se baseia num discurso de diminuição de gastos do Estado.
Hoje, vê-se claramente um grande fluxo de transferência direta de
dinheiro do fundo público para empresas privadas, por exemplo, na
educação, com programas como Prouni, Fies e Pronatec. Como isso convive
com esse discurso de austeridade? Porque não tem diminuição geral do
gasto do Estado no Brasil hoje.
Nem no Brasil nem em
lugar nenhum. Ajuste, austeridade são formas ideológicas de embalar uma
transferência monumental de recursos públicos e um assumir cada vez mais
do Estado que é um Estado de classe. Em Portugal, é
desenvolvido o tempo todo o discurso de que vivemos acima das nossas
possibilidades. Então, o ajuste tem que ser feito nas políticas sociais,
porque os trabalhadores é que estão vivendo acima do que o Estado pode
bancar. O capital entendeu o seguinte: há um limite para construir e
vender carros, computadores, celulares e tudo no planeta. Além disso,
não há mais espaço físico para ser integrado na acumulação capitalista —
a China já está integrada, quem mais vai sobrar? A Coreia? Sim, mas
isso não resolve a crise. Diante desse cenário, há que se utilizar mais
do que nunca o fundo público. Nunca na história foi tão absolutamente
claro pela análise do fundo público que esse é um Estado de classe. A
burguesia se reapropria daqueles fundos que antes tinham alguma
destinação para o trabalhador. De que forma? Reduzindo os recursos
destinados à política social de modo direto: essa é
condição para abrir novas frentes de acumulação, na previdência privada,
na educação privada. Só que, ao mesmo tempo, esses novos campos de
acumulação não têm gente que possa consumir esses serviços. Não dá para
consumir essas mercadorias em quantidades de modo a garantir uma
lucratividade média elevada. Você forma o maior conglomerado de ensino
privado superior no Brasil, mas à custa de financiamento público
para que os estudantes frequentem essas universidades. Então, o fundo
público, transferido assim, parece até que é outra forma de direito. O
menino que tem a bolsa, que vai lá para o Prouni, acha
que isso é um direito. O fundo público está sendo transferido para a
instituição e endividando o trabalhador. Sem o Estado transferindo essas
quantidades amazônicas de recursos no Brasil, em Portugal, na França,
na Alemanha e nos Estados Unidos, o capitalismo já teria colapsado.
A presidente Dilma fez
recentemente um discurso televisivo em que anunciava claramente medidas
de austeridade. Parece um movimento de retirada de direitos mais abrupto
do que se teve nos últimos 12 anos. O que está acontecendo no Brasil
hoje?
Eu acho que nós vivemos sob essa austeridade também nos governos Lula
brutalmente, mas havia medidas que pareciam fogos de artifício, ou
seja, tinham algum impacto. Em Portugal, uma importante médica,
professora universitária, me disse: ‘Sara, a FAO
[Organização das Nações Unidas para a Alimentação e Agricultura] acaba
de mostrar que a fome reduziu no Brasil e isso é inegável’.
Mostrei a ela os recursos do Bolsa Família
e ela não acreditava. Como nunca teve Estado de Bem-Estar Social, como
nunca teve política universal de combate à fome, a miséria é tanta no
Brasil que 40 euros mensais numa família com três crianças têm algum
impacto. Sim, é um impacto quantitativo: farinha e feijão. Não é um
impacto qualitativo, de reversão da fome, de reversão da miséria
intelectual que a dieta impõe, etc. Eu diria que, do ponto de vista dos
mais pobres, foi sempre austeridade, na medida em que essas políticas
nunca foram para retirar os trabalhadores dessas condições. Mas vamos
lá: é verdade que as camadas médias viajaram mais, que os trabalhadores
moradores das grandes cidades passaram a comprar TV, geladeira,
computador. Está bem: aceitamos tudo isso.
Essa bolha de consumo se fez em função
de crédito para o trabalhador. Uma das pernas do endividamento é feito
sob o crédito consignado para os trabalhadores do serviço público e para
os aposentados, que são aqueles que, como têm um ganho salarial mensal,
podem financiar para a família que perdeu o emprego a compra da TV, a
partir do crédito consignado que o banco dá, com a garantia da
aposentadoria. Isso foi o governo Lula que fez. Eu tenho chamado esse
instrumento de política social dos governos Lula e Dilma de monetarização e financeirização,
que é a conversão da política social na forma dinheiro e que, portanto,
entra pelos condutos da financeirização, pelas instituições bancárias, e
se torna crédito. Marx, no livro 3 [do Capital], tem uma genial sacada,
em que ele diz que todo o dinheiro disponível na sociedade
progressivamente vai se tornar capital monetário, que é capital moeda
guardado pelos bancos, e esse capital vai se transformar em capital
portador de juros porque ele vai ser emprestado. O que esses caras
fizeram? – é por isso que o Obama chama o Lula de ‘o
cara’, né? Fizeram do fundo público destinado às políticas sociais
elementos de acumulação para o capital bancário e financeiro. Transforma
tudo isso em dinheiro. A Bolsa Família não é um conjunto de serviços
que o pobre no Brasil pode utilizar: não é escola, não é alimentação na
escola, não é o hospital de boa qualidade. É um dinheiro que ele recebe
via banco e que, individualmente, é uma miséria, mas aquilo que entra no
banco é, na totalidade, um montante muito considerável. Esse foi o
traço mais inovador que esse conjunto de ações que nós chamamos de
austeridade trouxe para as políticas sociais. Porque transferir recursos
pela forma de fundos, de sustentação ao capital, existe no Brasil já há
um tempo. Mas isso foi muito sofisticado, mais complexificado. É esse
momento da política social que o Brasil está exportando como referência.
Isso nasce no Brasil?
O Banco Mundial já sugeria isso como medida. Hayek e Friedman
já diziam que para aquele que não pode pagar, o Estado não deve ter
equipamentos públicos (escola, hospital, bibliotecas), mas sim
transferir em dinheiro para que a pessoa possa escolher, exercendo a sua
liberdade de comprador no mercado. Eles dizem isso lá na década de
1940. Só que isso não se transforma em política social porque é
implementado o Welfare State, por todas as condições do
pós-guerra que tornaram isso possível. Não é mais possível isso. Eu
tenho absoluta convicção de que nós temos que continuar a lutar por
políticas sociais no modo de produção capitalista, mas no estágio atual,
é guerra: um Estado de Bem-Estar Social não é possível mais em lugar
nenhum do mundo. Porque o fundo público que estaria alocado no Welfare
State é absolutamente vital para o desenvolvimento do capitalismo.
Se não, ele colapsa. E aí são as
políticas do Banco Mundial — especialmente os estudos desenvolvidos na
segunda metade da década de 1980, mas essencialmente, nos anos 1990 —
que começam a sugerir a política social como transferência de uma
quantia monetarizada, em dinheiro, para os usuários, para aqueles que
precisam da política social. E, embora existisse, na Bolívia e em alguns
países da América do Sul e Central algumas iniciativas dessas, nunca
tinha se tornado uma política de importância como se tornou sob Lula, no
Brasil. Porque não é qualquer economia. A minha hipótese é que o Brasil
é o padrão de referência mundial para esse novo tipo de política
social, essa nova forma Estado. É por isso que eu chamo o que está
ocorrendo na Europa de latinoamericanização da política
social e da forma Estado. Eu estudava isso no Brasil, cheguei a
Portugal — um país que teve uma revolução que, junto com a do Chile, foi
a mais importante dos últimos 30 anos do século 20 —, e vejo que lá
está acontecendo isso. Aí começo, na relação com os pesquisadores de
Espanha e Itália, a ver que nesses países é a mesma coisa. Há pequenas
diferenças de um país para o outro, mas a referência é Brasil. Claro que
esses países não dizem que a referência é o Brasil, dizem que no Brasil
vai tudo bem porque aqui não teve crise, foi um país que cresceu — e lá
aplica-se essa política. Então, a latinoamericanização, claro, na
América inteira está implementada. A novidade é lá, onde teve Welfare
State. A latinoamericanização se dá nas políticas sociais, nas formas de
redução dos direitos, na redução do contrato coletivo que garante
direitos trabalhistas. E na dívida que passa a ser uma dívida pública,
não uma dívida externa. Junto com essas modificações, tem o aumento da
violência contra os pobres e os organizados. E a polícia lá, que não era
violenta, começa a matar nos bairros sociais.
Temos assistido, na Grécia, por
exemplo, a alguma reação da população, que pede um basta nessas medidas
de austeridade. Como você tem visto essa reação na Europa?
Eu acho que, em dois países, Grécia e Espanha, há tentativas, mas eu não arriscaria dizer no que vai dar. O Syriza na Grécia e o Podemos
na Espanha são movimentos muito fortes e acho que tem uma coisa para os
partidos da esquerda tradicional se indagarem porque esse crescimento
se faz por fora deles, em ambos os países. Em Portugal os partidos da
esquerda clássica, com a sua central sindical, tem por vezes, funcionado
como um dique à reorganização dos trabalhadores, porque eles controlam
muito a burocracia dos pequenos trabalhadores do Estado. O Syriza
não é uma coisa única: há no seu interior, trotskistas e lutadores de
correntes comunistas diversas, por exemplo. Ouvi e li um médico grego,
um trotskista de uns 58, 60 anos, que contou como a organização dele que
compõe o Syriza recuperou o trabalho de base na Grécia. Eu fico
comovida com isso, porque o que eles fizeram foi o básico e pelo básico
reconquistaram as pessoas para acreditarem que há um projeto possível de
transformação da sociedade. O trabalho de base era o seguinte: eles
formavam brigadas, iam para as feiras livres com carrinho e conversavam
com os produtores médios que estavam nas feiras, explicando que havia
naquele lugar não sei quantas pessoas passando fome.
Organizavam-se por regiões, começaram a
visitar as pessoas que estavam no mais brutal sofrimento — com toda essa
propaganda ideológica, a pessoa vai deprimindo, achando que ela é o
problema: como o professor José Paulo Netto escreveu
lindamente, é preciso culpabilizar as pessoas, para quebrar a estima de
alguém para a luta, você tem que dizer que ela é uma nulidade,
responsabilizá-la por sua triste situação de vida. Aquelas equipes,
grupos, começaram a redistribuir cestas de alimentação que recolhiam nas
feiras e levavam à casa das pessoas. Não tinha Estado, a família já não
podia socorrer, não havia para onde correr. Mas quando uma pessoa passa
a comer porque pessoas solidárias de uma organização levavam comida,
isso não tem volta. Eles não estavam ali para pedir o voto, estavam
organizando a base para ela lutar. Eles atuavam na alimentação, na saúde
geral e na saúde mental. Porque o nível de depressão e suicídio era
grande: em três anos, foram 6 mil suicídios. Pessoas que perderam o
emprego, não tinham o que comer, não tinham mais energia em casa. Seis
mil suicídios foram declarados como consequência da miséria e da
desesperança na Grécia. Eles começaram a recrutar psicólogos militantes
com empregos também ruins que começaram a ajudar na abordagem que eles
iam fazer às pessoas.
Como era organizado por bairro, por rua,
eu conheço quais são as pessoas que estão deprimidas, sofrendo, no meu
prédio. Então, eu indico que ali tem gente e aí vêm as brigadas, os
grupos organizados. Ele dizia assim: “tirar a pessoa do fundo escuro da
sua própria alma, porque ela foi quebrada por uma crise econômica,
é ganhar uma fidelidade que ninguém consegue destruir”. Esse médico
disse que trabalhava no seu emprego estatal, onde teve salário reduzido,
e entrou nisso — na verdade, ele liderou uma dessas linhas. Iam para os
lugares e começavam a atender as pessoas, como se fosse um médico de
família, só que não era do Estado porque o Estado se reduziu tanto que
não conseguia mais atender. Então, os médicos trabalhavam e continuavam a
trabalhar depois do horário para atender essas pessoas que estavam
doentes. Além do mais, é um país frio, que tem um inverno de cinco
meses. Já pensou tomar banho, cozinhar, se não tem água? Não tem gás,
não tem energia, não tem a dignidade de um banho. A primeira medida do
Syriza depois de eleito foi religar a energia elétrica gratuita
em 400 mil casas, perdoada a dívida. As pessoas vão ter acesso à
energia sem pagar, porque não têm como pagar. Eu não conheço direito
todas as forças internas ao Syriza, mas sei que tiveram correntes lá que
trabalharam desse jeito. A próxima é a Espanha. O Podemos está
com mais de 28% das intenções de voto. A burguesia na Espanha está
enlouquecida porque a Espanha não é a Grécia, né? A Espanha tem um PIB muito importante dentro da União Europeia
e tem classe trabalhadora organizada, sindicatos fortes, os operários
da Galícia que marcharam sobre Madri. Ali a coisa pode ser um pouquinho
mais animada. Eu não sei se é para ter esperanças, mas nesses dois
países, as placas estão em movimento.
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