Câmara avisa que tem patrão
Por Paulo Moreira Leite, em
seu blog:
Vamos combinar que assistimos, ontem, a uma suprema ironia do momento político brasileiro. Os líderes dos mesmos partidos que adoram subir a tribuna para elogiar o juiz Sérgio Moro e denunciar a corrupção na Petrobrás trabalharam sem descanso para preservar o sistema de aluguel dos poderes públicos que está na origem das irregularidades, desvios e abusos costumeiros do Estado brasileiro. Ignoraram uma campanha popular que recolheu 700 000 assinaturas no país inteiro para bater continência a quem assina seus cheques de campanha.
E agiram dessa forma sem pudor de fazer hora extra, pois foram obrigados a voltar atrás numa decisão de véspera.
A força dos lobistas nas decisões políticas dos EUA é tamanha que as empresas privadas costumam ser responsáveis pela contratação e pagamento de funcionários de gabinetes parlamentares, que são emprestados a deputados e senadores - atuando, dentro do Poder Legislativo, como representantes diretos de seus empregadores privados. Imagine como saem os projetos de lei, as propostas, as sugestões. Como é o “debate”.
A força dos lobistas de armas explica porque o país não consegue controlar a venda de submetralhadoras automáticas pelo correio. Ela também ajuda a entender porque a Casa Branca e o Capitólio são os principais sustentáculos diplomáticos do Estado de Israel, postura de alinhamento automático que nem de longe favorece os interesses da maioria da população norte-americana, pelos riscos óbvios que representa para a paz.
Não há dúvida de que os parlamentares brasileiros, ontem, promoveram uma derrota de um esforço histórico para emancipar a política brasileira do interesse direto do empresariado.
A votação só não avançava em função de Gilmar Mendes, que se manteve impassível, desde agosto do ano passado, inclusive diante dos apelos públicos para devolver seu voto - qualquer que fosse ele - para permitir ao plenário que seguisse nas deliberações e proclamasse a decisão.
A operação só não foi inteiramente bem sucedida porque, num acidente de percurso, um descuido de última hora, faltaram os votos na votação de anteontem. Na manhã de ontem, a partir de conversas fechadas, no gabinete de Eduardo Cunha, a maioria dos aliados de sempre se articulou novamente. O vice Michel Temer ajudou muito.
Como bons empregados, ontem eles só queriam defender seus patrões, mostrar-se dignos de sua confiança tão bem representada. Desta vez, contudo, não foi possível fazer um bom teatro. Até pelos tropeços no enredo, tudo ficou muito evidente.
Vamos combinar que assistimos, ontem, a uma suprema ironia do momento político brasileiro. Os líderes dos mesmos partidos que adoram subir a tribuna para elogiar o juiz Sérgio Moro e denunciar a corrupção na Petrobrás trabalharam sem descanso para preservar o sistema de aluguel dos poderes públicos que está na origem das irregularidades, desvios e abusos costumeiros do Estado brasileiro. Ignoraram uma campanha popular que recolheu 700 000 assinaturas no país inteiro para bater continência a quem assina seus cheques de campanha.
E agiram dessa forma sem pudor de fazer hora extra, pois foram obrigados a voltar atrás numa decisão de véspera.
Assim, vinte e quatro horas depois de se recusar a transformar o
financiamento de empresas privadas em direito constitucional, a Câmara de
Deputados mudou de ideia.
Por 330 votos a favor e 141 contrários - será preciso ainda passar por uma
segunda votação - as contribuições privadas passam a fazer parte da
Constituição. Não terão força de uma clausula pétrea, como a separação entre
poderes, o voto direto e secreto, que não podem ser abolidos. Mas só poderão ser
questionadas a partir de uma reforma constitucional.
Os 76 votos que mudaram de lado, de um dia para o outro, estabeleceram o
domínio do capital privado sobre o Congresso num grau jurídico que nunca se
viu.
A partir de ontem, assume-se que a política brasileira - pois a lei vale
para campanhas para presidente, governador, prefeito - tem patrão. Não estou
falando de Eduardo Cunha, por favor. Mas daquele personagem social-econômico,
que paga para ser obedecido, colocando-se acima dos 200 milhões de eleitores,
cidadãos daquele universo democrático onde 1 homem=1 voto.
Está garantido, agora, que temos eleitores de 1 homem=R$ 1 milhão de
reais.
Caso a decisão de ontem venha a ser confirmada, o país terá perdido uma
chance de tornar-se uma democracia comparável aos regimes mais avançados do
mundo, aqueles onde a soberania popular é exercida como o poder fundamental da
República. Foram estes países que puderam criar um estado de bem-estar social,
onde os trabalhadores e a população pobre têm acesso a um sistema de benefícios
capazes de garantir uma vida civilizada as grandes maiorias. E este caminho
estava aberto pelo Supremo Tribunal Federal, onde uma maioria de 6 votos a 1 já
havia rejeitado o financiamento de empresas privadas, a partir de uma
constatação fundamental: pessoas vão as urnas e votam; seres inertes, as
empresas não estão capacitadas para isso.
O debate de fundo envolve alterações importantes na vida da maioria dos
brasileiros. O cientista político Adam Przeworski demonstrou que o estado de
bem-estar funciona através de um pacto de parte a parte. Enquanto os
trabalhadores se comprometem a respeitar o regime de propriedade privada os
empresários aceitam fazer concessões às chamadas classes despossuídas e
subalternas. Przeworski, um autor muito lido no curto período de sua existência
em que o PSDB respeitava a palavra ” social-democracia “do batismo, definia este
regime como capitalismo democrático.
As democracias com patrão existem, também. A maior delas fica nos Estados
Unidos. Ali, nada se aprova que seja contra os grandes interesses privados. É
por isso que nos EUA não se consegue criar um sistema de saúde pública
equivalente ao que existe na Europa - embora os gastos sejam várias vezes mais
altos do que no Velho Mundo. As empresas privadas de saúde não
permitem.
Pela mesma razão, as boas universidades são fundações privadas, com
mensalidades caríssimas - quem não pode pagar precisa ter um desempenho muito
acima da média para conseguir bolsa. Não é de espantar que o Congresso
norte-americano seja capaz até de aprovar guerras para atender a seus
financiadores de campanha que costumam ser apresentadas como iniciativas
puramente patrióticas.
A força dos lobistas nas decisões políticas dos EUA é tamanha que as empresas privadas costumam ser responsáveis pela contratação e pagamento de funcionários de gabinetes parlamentares, que são emprestados a deputados e senadores - atuando, dentro do Poder Legislativo, como representantes diretos de seus empregadores privados. Imagine como saem os projetos de lei, as propostas, as sugestões. Como é o “debate”.
A força dos lobistas de armas explica porque o país não consegue controlar a venda de submetralhadoras automáticas pelo correio. Ela também ajuda a entender porque a Casa Branca e o Capitólio são os principais sustentáculos diplomáticos do Estado de Israel, postura de alinhamento automático que nem de longe favorece os interesses da maioria da população norte-americana, pelos riscos óbvios que representa para a paz.
Não há dúvida de que os parlamentares brasileiros, ontem, promoveram uma derrota de um esforço histórico para emancipar a política brasileira do interesse direto do empresariado.
Utlizando a gestão de Eduardo Cunha para levar uma política de revanche
contra conquistas dos trabalhadores, o projeto de financiamento privado faz
parte da mesma conjuntura do PL 4330, da terceirização, que implica em revogar a
Consolidação das Leis dos Trabalho - embrião daquilo que se poderia chamar de
nosso bem-estar social.
O que se assistiu, na verdade, foi a cena final de uma operação política de envergadura, que vinha sendo articulada há meses, para impedir um avanço que parecia assegurado no Supremo Tribunal Federal. Já no ano passado, depois de uma mobilização popular que recebeu centenas de milhares de assinaturas, formou-se uma maioria de seis votos no STF contra o financiamento de empresas privadas. Pelo placar, a decisão era caso resolvido e não poderia ser mudada, consumando uma vitória que, por boas e profundas razões, tinha um aspecto tão positivo que até podia ser vista como boa demais para ser verdade.
O que se assistiu, na verdade, foi a cena final de uma operação política de envergadura, que vinha sendo articulada há meses, para impedir um avanço que parecia assegurado no Supremo Tribunal Federal. Já no ano passado, depois de uma mobilização popular que recebeu centenas de milhares de assinaturas, formou-se uma maioria de seis votos no STF contra o financiamento de empresas privadas. Pelo placar, a decisão era caso resolvido e não poderia ser mudada, consumando uma vitória que, por boas e profundas razões, tinha um aspecto tão positivo que até podia ser vista como boa demais para ser verdade.
A votação só não avançava em função de Gilmar Mendes, que se manteve impassível, desde agosto do ano passado, inclusive diante dos apelos públicos para devolver seu voto - qualquer que fosse ele - para permitir ao plenário que seguisse nas deliberações e proclamasse a decisão.
Hoje pode-se entender a perfeita lógica daquele espetáculo. Ao travar o
avanço de uma decisão cujo resultado lhe era desfavorável, Gilmar Mendes
permitiu que Eduardo Cunha articulasse uma nova maioria na Câmara a partir da
eleição de 2014. Com isso, ficou assegurado que o empresariado irá manter seu
controle sobre a maioria do Legislativo brasileiro, numa vantagem como poucas
vezes se viu em nossa história política.
A operação só não foi inteiramente bem sucedida porque, num acidente de percurso, um descuido de última hora, faltaram os votos na votação de anteontem. Na manhã de ontem, a partir de conversas fechadas, no gabinete de Eduardo Cunha, a maioria dos aliados de sempre se articulou novamente. O vice Michel Temer ajudou muito.
No início da tarde, não faltaram parlamentares bem comportados, com
discurso na ponta da língua, para garantir o retorno à ordem.
Os mesmos parlamentares que se tornaram campeões de um moralismo barulhento e seletivo foram a tribuna para fingir que falavam de democracia, de respeito ao eleitor. Não faltou quem assumisse ares indignados para falar que não era possível elevar gastos públicos numa conjuntura como a atual - como se as contribuições, privadas entre aspas, de nossos empresários não sejam sempre ressarcidas, com lucros redobrados e correção monetária.
Os mesmos parlamentares que se tornaram campeões de um moralismo barulhento e seletivo foram a tribuna para fingir que falavam de democracia, de respeito ao eleitor. Não faltou quem assumisse ares indignados para falar que não era possível elevar gastos públicos numa conjuntura como a atual - como se as contribuições, privadas entre aspas, de nossos empresários não sejam sempre ressarcidas, com lucros redobrados e correção monetária.
Como bons empregados, ontem eles só queriam defender seus patrões, mostrar-se dignos de sua confiança tão bem representada. Desta vez, contudo, não foi possível fazer um bom teatro. Até pelos tropeços no enredo, tudo ficou muito evidente.
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