O ódio, a exclusão e a lógica do condomínio
Para o psicanalista e professor da
Universidade de São Paulo (USP) Christian Dunker, a falta de um “período
de luto” dos derrotados nas eleições de 2014 possibilitou a
consolidação de uma cultura do ódio que pode ter origens mais profundas
que o cenário político sugere
Por Glauco Faria
“Emerge uma lógica que não é mais negocial, de reconhecer o outro, que vira alguém que tem que ser excluído. Daí a força que a lógica do condomínio tem nesse momento. Temos que por para fora, ‘limpar’, purificar.” É assim que o psicanalista e professor da Universidade de São Paulo (USP) Christian Dunker analisa o momento em que a cultura do ódio se tornou mais explícita no Brasil, o cenário pós-eleitoral vivido em 2014. Para ele, a falta de um “período de luto”, no qual os derrotados avaliam as razões da perda e chegam mesmo a se reinventar, foi substituído pela criação de um inimigo.
Autor do recém-lançado Mal-estar, Sofrimento e Sintoma – A Psicopatologia do Brasil Entre Muros (Boitempo), Dunker avalia que o contexto atual, que traz a necessidade de as pessoas terem pontos de vista definidos como sujeitos políticos, faz com que algumas procurem conhecer mais determinados temas, mas também facilita a emergência de “gurus” de opinião fácil, como colunistas que pregam o desrespeito à diferença. “São usinas de captação de descontentamento e a ampliação disso em uma espécie de gritaria geral”, pontua.
Por outro lado, com as recentes transformações na pirâmide social brasileira, Dunker também avalia existir no país uma transformação dos símbolos de classe, com uma contestação do discurso senhorial. “A grande mutação positiva que está acontecendo é que a gente não aceita mais isso, se tornou um ridículo social. Não o cara que ostenta, mas o que ostenta sem poder dizer como chegou ali. Esse é o lado bom da controvérsia sobre a corrupção, tem uma parte desse discurso rançoso que está dizendo uma coisa positiva, não aceitamos mais ostentação de símbolos culturais de riqueza sem uma história.”
Confira os principais trechos da entrevista abaixo.
Fórum – Hoje, na discussão política, mas não só nela, percebemos uma cultura de ódio, consolidada especialmente nas últimas eleições. É possível identificar a origem disso?
Christian Dunker – Tem várias coisas concorrendo, mas começaria dizendo que talvez estejamos no fim de um ciclo de um tipo de Brasil, país que foi marcado pela redemocratização, pela reinvenção econômica e no qual se colocam tanto o projeto do PSDB como o de Lula/Dilma. Um momento mais à direita, outro mais à esquerda, mas que tínhamos uma interpretação consensual a partir da qual as tensões, oposições e divergências podiam se colocar, e que no fundo o poder continuava nas mãos daqueles com os quais sempre esteve, dentro de uma estrutura que chamo nesse livro de “condomínio”, onde um certo grupo de pessoas se reveza e existe um síndico. Pode até ter a emergência de um governo de esquerda, como de fato teve e operou uma série de transformações, mas não se mexeu nisso, tornou o projeto da esquerda muito mais ligado ao campo do social, o que é uma grande coisa, mas não se alterou a relação, digamos, mais profunda do ponto de vista econômico. Ou seja, não alterou o sentimento de propriedade. Essa ideia produz certos efeitos psicológicos de que no fundo existe um grupo que, quando quiser de volta o poder, ele vai vir. Claro que isso é uma espécie de ideologia de certos segmentos que estão acostumados a uma distribuição não equitativa, essencialista, do poder.
A segunda eleição da Dilma colocou isso em cheque porque o antigo poder, o antigo dinheiro, o quis de volta, e isso não aconteceu. Não se gerou um processo tradicional que existe depois de um pleito, que é o de luto, já que alguém perdeu, que ocorreu após a eleição do Collor, do FHC, Lula, Dilma… E o luto, para a psicanálise, é um trabalho muito importante, porque permite que as pessoas se reformulem, que se separem de uma forma de vida e criem outra. O luto não é só saber perder, é um processo de inventar coisas novas, de ressignificação, muitos inventores fizeram suas coisas em uma situação de luto, que pode ser pela perda de um ideal, perda de uma pessoa, de um estado, não é só aquela experiência psicológica em um sentido individualista. E nós não vimos esse luto, os derrotados disseram: “tem algum problema na regra do jogo, vou pôr em questão o processo, há uma imbecilização do eleitorado, alguém roubou nos números…”.
O embrião veio a partir do discurso da corrupção, que é endêmica, tem sua lógica própria. E por que ela se tornou um grande mote? Porque é a situação daquele sujeito que diz “não é que eu perdi, o juiz roubou”. Então, existe um conjunto de afetos que são de outra natureza, você poderia ter classicamente um ressentimento, um tipo de ódio que chamamos de alternante no processo de luto. Tenho ódio de mim porque se tivesse feito mais essa pessoa não teria me deixado, se tivesse trabalhado mais, se tivesse sido mais amável… Enfim, não teria perdido. Mas em seguida há uma avaliação de que ele me odeia, quis me deixar, é um sacana, não fez o que foi prometido. E entre essas duas fases a gente vai elaborando a perda e inventando uma nova identidade, uma nova forma de vida.
O que aconteceu é que, com o bloqueio do luto, não há esse ódio alternante, a reflexão de que “a gente também pisou na bola porque escolheu um candidato…”. Não tem um movimento de partilha dos culpados, um pouco fui eu quem pisou na bola, um pouco foi o outro. Não. Foi o outro que pisou. E quando isso se polariza no outro é que o ódio vai se acumulando e assumindo uma outra função não muito característica que é de produzir massa, produzir multidão, produzir laços. Sou muito diferente de você, não temos muita coisa em comum, mas nós temos um inimigo comum. E esse tipo de vinculação que é considerado mais simples, mais pobre, menos elaborada do ponto de vista subjetivo, grassa numa situação em que você consegue criar o inimigo, estabelecendo esse consenso relativo de que não fui eu que perdi, foi o juiz que roubou.
Fórum – Como o personagem do Goldstein, do livro 1984, para o qual se dedicavam até os “dois minutos de ódio” durante o dia…
Dunker – Que era um cara que pensava diferente… Massacrar a diferença é uma tendência das grandes massas, como foram chamadas, “regredidas”, qualquer forma de diferença é um ataque ao laço que a gente tem. É a raiz da homofobia, do familiarismo, temos um tipo de laço que sobrevive porque estamos negando outros que não são como nós. No fundo, são estratégias mais simples que denunciam que temos um problema do tipo, “bom, o cara arranjou uma amante, está traindo a gente, mas será que não tem algo que não está funcionando no casamento?”. Para tratar esse mal-estar surgem essas estratégias, a criação de um inimigo, o laço baseado no ódio, substituição do luto pelo acting out, as ações, atos e discurso feitos para que não pensemos.
Fórum – E, do seu ponto de vista, como esse clima acaba ajudando também a emergirem pautas como a redução da maioridade penal e outros debates de cunho conservador?
Dunker – Queria voltar na sua observação sobre o Goldstein porque ela tem outro traço que ajuda a entender isso. Uma das maneiras de não fazer o trabalho do luto é suprimir os afetos. Nós não estamos sentindo nada, não aconteceu nada, continua tudo igual. Esse afeto que é suprimido volta na forma de um ódio catártico, vamos bater em alguém porque não dá pra viver num estado como em Alphaville, filme do Godard, de suspensão de afetos. Ele vai aparecer em algum lugar e você controla o lugar onde isso vai vir. Quando se tem esse deslocamento do afeto dominante na política é todo o sistema de ideias, controvérsias e contradições sociais que é passado a limpo. Já havia uma disputa, mas era uma disputa em que supostamente se reconhecia o adversário. Você tem ideias, eu tenho ideias, não concordo com você, mas o reconheço como alguém que preciso convencer, derrotar. Um adversário, não um inimigo.
Quanto temos esse processo de polarização com o ódio, há um processo de desumanização do outro e é muito interessante como a psicopatologia foi convocada nesse momento de uma forma bizarra, gente trazendo psiquiatras americanos falando da mentalidade do esquerdista, da mentalidade do terrorista, porque no fundo a ideia é dizer: esse outro não é um outro, é um louco, um doente mental, não adianta a gente conversar com “petralha”, com o cara da esquerda, porque no fundo ele não vai compartilhar comigo o processo e o fim desse processo que é o Brasil.
Todo esse conjunto de temas indeterminados fica assim: não preciso mais prestar contas e me justificar porque entendo que, como o outro roubou, é uma questão de força, violência. Vou praticar aquilo mesmo que acho que o outro faz, que é passar uma votação sobre redução de maioridade penal com um “truquezinho” – e pelo jeito o Eduardo Cunha é um mestre nisso. É um mágico, um especialista no funcionamento da Câmara, do alto e do baixo clero, a típica pessoa que sabe operar nas duas lógicas, cinicamente, ao mesmo tempo. Mais que isso, tem aquele timing de colocar os projetos obscenos no tempo certo. Um tipo de “corrupção dentro da lei”, de deslealdade, o cara está caído no campo e você pisa no calcanhar, diz que foi sem querer e não se sabe se foi ou não. Emerge uma lógica que não é mais negocial, de reconhecer o outro, que vira alguém que tem que ser excluído. Daí a força que a lógica do condomínio tem nesse momento. Temos que pôr para fora, “limpar”, purificar. Um entendimento da catarse grega, nós, nossa família, nosso Sul, os brancos, heterossexuais; esses outros, pra fora do muro.
Fórum – E existe um desaparecimento total da empatia. O pai de família branco que vê seu filho como potencial vítima de um jovem que comete um crime não consegue se colocar no lugar de um pai que vive na periferia e tem seu filho como vítima constante da violência estatal e não-estatal.
Dunker – Esse processo, diria que é anterior. Já vinha acontecendo, essa distribuição senhorial dos bens simbólicos, justiça, saúde, educação, é algo colonial no Brasil e nunca foi de fato enfrentada, existe esse mal-estar que aparece em pensamentos do tipo “como assim, meu filho vai estudar na faculdade em que a filha da empregada está indo?”. Vou ao aeroporto e não é mais aquela coisa “nossa”, está todo mundo viajando de avião, parece rodoviária, é uma degradação dos símbolos de classe. Isso cria uma animosidade a mais na diferenciação que já existia representada pela lógica do “meu filho sofre bullying, tenho problema, mas o filho do outro pode ser assassinado como um homo sacer”. Não tem punição, não tem justiça para ele.
Esse estado mudou porque de repente o menino pobre, negro, da periferia se aproximou do meu garoto. Como eu faço? Vai virar a mesma lei? Não consigo mais distinguir. Ele tem carro também… É um pouco o que a gente viu num certo veio do cinema da retomada, o Cidade de Deus, por exemplo, Meu nome não é Johnny, uma série de protagonistas de filmes que mostra esse outro que sempre foi muito distante – tão distante que eu podia até acolher ele como agregado, “olha, eu tenho um lá em casa de tanto que eu gosto dele”.
Fórum – “Trato como se fosse da família…”
Dunker – Isso, ótima expressão. Para os amigos, tudo; para os inimigos, a lei. Tem coisas engraçadas acontecendo, como o “drama das babás”. Não sei se você está acompanhando o que acontece com uma certa classe social que contrata e precisa contratar babás. São mulheres que se emanciparam, que estão trabalhando e que precisam, pelo menos durante um tempo. Babás hoje em São Paulo ganham bem, algumas entre 4 e 5 mil reais, e escolhem pra quem vão trabalhar. Isso que é o “mais grave” (risos). Se me tratar mal, não volto aqui. Estou vendendo meus serviços, tenho uma formação e você precisa de mim talvez mais do que eu precise de você. Essa é uma relação que a classe média e a classe alta não estão acostumadas e recebem como uma confrontação. Crio uma população em que escolho quem vou “salvar”’ e esse caso indica uma inversão. São as babás que vão escolher quem de nós vão querer e quem não vão. E isso vale para empregados, funcionários, prestadores de serviços.
Fórum – Nessa questão do pensamento senhorial, pode-se entender que um segmento social pense assim até por uma questão “hereditária”, algo passado de geração a geração. Mas existe uma parte da classe média e até de parcelas que ascenderam recentemente que já pensa dessa forma. Como essa ideologia vai perpassando e irradiando nessas classes?
Dunker – Existem processos que são psicológicos, são formas de ideologia, mas também suportes de identificação. Gosto muito das pesquisas do Jessé de Souza, que analisou a ralé que virou pobreza, os pobres que viraram classe trabalhadora ou classe média, classe C, e existe um conjunto de reformulações muito importantes e pouquíssima gente fala disso. Não é fácil, você nasceu numa classe e agora está em outra, é como mudar de país. Tem que fazer um ajuste de contas com os valores de origem, com seu pai, sua mãe, um ajuste de contas com as pessoas que não conseguiram fazer essa travessia. E você gosta deles, eles gostam de você, mas cria-se um ressentimento dentro da sua família.
E isso acontece até na classe média, com a pessoa que monta um negócio e é bem sucedida. A gente é muito “verde” nessa questão do sucesso e da felicidade e acha que basta isso, todo mundo tem uma ilusão de que basta isso. Você vai, se mata de trabalhar, compra a sua casa… É terrível do ponto de vista do trabalho subjetivo que isso envolve e mais terrível ainda porque ninguém diz nada a respeito de como se virar com isso. O que você acaba tendo são misérias identificatórias. O que posso comprar agora? Aquela marca, porque ela é um signo de pertencimento. Uma coisa muito empobrecedora nessa identificação que gera um tipo de consumo e de narrativa de crescimento ligada ao consumo. Crescer é consumir. Consumir mais. Até o ponto em que você começa a se perguntar “e daí?” depois que fez aqueles targets que são mais ou menos óbvios.
Acho que uma parte do ódio e do conflito que estamos vivendo deriva do fato de muita gente no Brasil estar nessa situação. Pela primeira vez descobriu, por exemplo, que é um sujeito político. Que pode falar coisas, que uma das características de se estar na classe que se galgou é que tem que ter uma opinião. Isso detona uma pessoa. Tem um grande amigo meu que trabalha com orientação vocacional e diz que não consegue trabalhar com as classes pobres porque essa questão não se coloca pra elas. Não é uma pergunta que se coloca. Mas a nova geração cresce, a pessoa vai para a escola e chega um momento em que pela primeira vez tem que ter uma opinião sobre o que quer fazer como trabalho. É uma decisão difícil, que marca a vida de uma pessoa, e ela não tem recursos, ninguém falando sobre isso, ninguém tematizando esse problema.
O mais importante é o seguinte: existe uma mutação dos símbolos que marcam uma classe. E é uma mutação boa porque, até então, o discurso senhorial vinha com um tipo de apropriação dos signos culturais de classe que faziam com que não fosse necessário contar nenhuma história a respeito. Você vai para a Europa, tem alguém contando que o barão tal, a minha família mora aqui há cem, duzentos anos, ganhou na batalha tal título… São os ricos muito, muito velhos. Os nossos ricos se contentavam em mostrar os signos. Você tem um carro, não precisa saber se comprou à prestação, se roubou, se é fruto de um negócio ilícito, não importa. Os nossos ricos não fizeram nada para diminuir a iniquidade, a diferença social, pelo contrário. Desde o modo de se vestir até onde estuda, o bairro em que mora etc, tudo era sem história, bastava mostrar. Só vale o último capítulo. O que é um problema. Se você perder tudo, nada te garante no tempo. Está sempre dependendo da mostração da última sexta-feira.
A grande mutação positiva que está acontecendo é que a gente não aceita mais isso, se tornou um ridículo social. Não o cara que ostenta, mas o que ostenta sem poder dizer como chegou ali. Esse é o lado bom da controvérsia sobre a corrupção, tem uma parte desse discurso rançoso que está dizendo uma coisa positiva, não aceitamos mais ostentação de símbolos culturais de riqueza sem uma história.
Fórum – Tem que explicar de onde veio.
Dunker – Tem que explicar de onde veio não só juridicamente, a nossa nova lógica de reconhecimento é essa. Com essas transformações todas, o que o sujeito tem que fazer é contar sua história: comecei lá no Brás, minha família fez a confecção, eu ia, buscava mercadoria…
Fórum – Mas é a justificativa pelo trabalho. Se for por herança, pensando, por exemplo, no filho do Eike Batista.
Dunker – É uma história curta, eu nasci, né (risos). Não é que é errado, tem cara que nasceu rico mesmo e não vai ser punido por isso, mas a história não é bacana.
Fórum – Quando você falou a respeito da necessidade de se ter uma opinião, isso remete à questão das redes sociais, onde a pessoa tem que ter uma opinião a respeito de toda e qualquer coisa. E que também existe a exposição dos signos de felicidade…
Dunker – É esse ponto de encontro entre esse velho sistema conspícuo, de felicidade à base da inveja, o antigo, com o novo, que diz que história você vai contar. É um acontecimento do Brasil, de tantas pessoas entrarem e se dedicarem às redes. Em outros países para os quais viajo as pessoas falam “eu tenho Facebook” e isso é algo menor na vida das pessoas. Aqui não. Tem os fanáticos, é um espaço de altíssima sociabilidade, lugar de conhecer pessoas, de ser reconhecido. Mas na lógica antiga era assim: você põe sua Mercedes e lá vem 418 mil curtidas, posta uma foto nas pirâmides do Egito… Mas isso é no começo, depois de ver dez vezes esse tipo de postagem, percebe-se que é tudo igual. Isso significa que o “passe” dessa pessoa desvalorizou.
Juntei dinheiro a vida toda para ter uma Mercedes e dizer que sou o único que tenho e aparecem 214 Mercedes no Facebook iguaizinhas… E a pessoa sente essa coisa que os caras que curtem jazz avançado pensam quando a música começa a tocar no rádio: “Ah, acabou com meu prazer!”. Não tenho mais aquele sentimento de superioridade, de exclusividade, de que sou diferente. O que vai te diferenciar? A sua postagem, a sua história, o seu meme, a sua opinião. E existe um problema. É muito difícil, nesse estado de coisas, você simplesmente concordar. Um concorda, outro também, chega alguém que concorda, mas observa que tem um ponto que ficou de fora… Vem mais um e diz: “concordo com esse, concordo com o ‘mas’, só que tenho que fazer alguma coisa aqui…”. E aumenta uma oitava. Daí chega outro e aumenta duas, outro aumenta três e vêm as comunidades de ódio. Criam-se Revoltados Online, comunidades orientadas para quem é que vai gritar mais alto. Depois de algum tempo está todo mundo rouco, surdo, e querendo fazer alguma coisa fora da rede social.
Fórum – E não existe um diálogo real, é cada um sustentando sua posição de surdo em relação ao outro. Em geral não existe um método hegeliano de uma síntese integradora…
Dunker – Porque é choque. Nós, no Brasil, estamos nessa situação. A rede só dá musculatura a essa oposição sem síntese, acredito que isso não vá ficar assim indefinidamente, mas é nosso corte no momento. Agora, tem um outro lado. No começo desse tipo de conversa é exibição, mas no meio dela vem um negócio interessante, essa percepção de se ter uma opinião e que os outros também têm, e penso como a minha vai ser diferente. Isso leva as pessoas a ler, estudar, procurar outros sites, é uma outra revolução que está acontecendo que não estamos vendo. A quantidade de pessoas que está se interessando por um site como a Fórum, que fizeram fila para ver uma exposição chinesa ou do Dalí, os dispositivos de cultura ficaram pequenos, as pessoas estão lendo mais, estudando mais, há uma coisa que a gente nunca teve, uma concorrência de opiniões. Vai ler porque você pode encaixar uma boa opinião.
Mas daí tem um terceiro momento, que é a percepção de que isso vai dar trabalho. Se eu der um gritão aqui, fizer uma micagem, inventar uma loucura, é capaz de não ter que ficar lendo para tentar entender o que está acontecendo, faço minha presença no clube de algum jeito.
Fórum – E é aí nesse terceiro momento que aparecem estes “gurus” como Rodrigo Constantino, Olavo de Carvalho…
Dunker – São usinas de captação de descontentamento e a ampliação disso em uma espécie de gritaria geral, repetitiva. Não dá mais pra botar a jaqueta do entendido, do ricaço, a pessoa não sabe direito ter opiniões e vem o cara que “sabe” ter opiniões. Que inclusive se parece comigo, que nunca li nada. Olha só que lindo. Eu me encaixo com ele, reproduzo, copio. A gente tem essa tendência mimética no Brasil, tem alguém falando uma coisa que não sei se concordo direito com ele, mas está bonito, está fácil, acessível, consigo ler uma revista toda semana… Essas pessoas só se tornaram rotweillers e pitbulls porque tem gente lendo. São leitores que não querem fazer o trabalho duro e compram no supermercado. Ou na loja de 1,99.
Fórum – Essa necessidade de posicionamento nas redes tem relação com o que o senhor chama de importância excessiva que damos para a nossa identidade? Como a sociedade contemporânea corrobora com isso?
Dunker – Vou reduzir esse problema a três tópicos. Uma ideia primeira vem da antropologia do Viveiros de Castro, que tem estudado uma população diferente de indígenas e trazido o que poderíamos chamar de filosofia indígena, com adaptações, mas que entra no páreo das coisas que têm sido ditas mais nobremente no cenário de ideias. Ele, reconstruindo a lógica discursiva e experiencial dessas comunidades, percebe que os indígenas brasileiros – não todos, mas alguns – tinham uma espécie de crise permanente de identidade, eram sequiosos por comer, antropófagos, mas não só pedaços de carne do outro e sim comer palavras, almas. Isso é uma tese antiga que aparece nos modernistas, somos uma cultura que come outras culturas, antropófagos, mas a novidade do Viveiros de Castro é que nosso canibalismo é diferente de outros, não é totemista em que se come aquilo que se sabe e se respeita que o outro tem. Você come porque está em uma espécie de déficit em relação à constância da sua própria alma, daí o título do livro se chamar “A inconstância da alma selvagem”.
Isso seria lá, longinquamente, se é que queremos acreditar em alguma origem antropológica, algo complicado, mas meio alegoricamente poderíamos dizer isso. Nosso gosto pelo estrangeiro, nossa superficialidade, nosso sentimento de que o brasileiro tem um problema, um defeito de origem, um complexo de vira-latas, uma expressão de que não estamos muito certos de quem somos. Isso se articulou com duas matrizes, uma mais cultural e outra social, de Juscelino pra cá, que é a interpretação que temos sobre o Brasil: por que deu errado?
Fórum – Já se parte do princípio de que deu errado…
Dunker – Nós somos fanáticos por diagnósticos, estamos sempre fazendo novos. Tem um grande diagnóstico que diz o seguinte: no fundo, o Brasil nunca conseguiu implantar um tipo de individualismo e o tipo de instituição que esse individualismo exprime, que as tradições liberais anglo-saxônicas conseguiram. Isso é ibérico em parte, mas o individualismo ibérico é mais bem concluído enquanto projeto liberal do que o individualismo à brasileira.
Um dos motivos é que ser indivíduo no Brasil é mais problemático, frustrâneo, do que em outros países, menos desenvolvidos inclusive. Não é uma questão de pujança econômica, social, como pensavam os desenvolvimentistas dos anos 70, que quando o país desenvolve isso vai junto. Não vai junto. Existe um descontentamento de base com ser apenas um indivíduo. Estávamos falando das redes sociais e é um caso exemplar. Não consigo ser só mais um em uma curtida que tem 15, 20 pessoas, tenho um problema em ser só mais um. Tem um tipo de diferença baseado na pessoa, um fetiche na celebridade, naquele que se diferencia não por ser um como qualquer outro que trabalhou mais, que tem dotes melhores, mas se diferencia por um “xis” a mais, um truque, uma mágica, que fico procurando para descobrir qual é. Isso vai levar ao fato de que na minha relação com as instituições nunca vou largar a ilusão de ser uma exceção, quero a porta social, não a dos funcionários.
A outra matriz é de que somos uma cultura sincrética, uma democracia racial, o país que nunca entrou numa guerra pra valer, em que nossos generais usavam terno, não farda, um país em que há uma acomodação, uma complacência, que durante muito tempo era uma forma de mitigar a barbárie e a opressão. É o senhor que é tão poderoso que ele pode te proteger também. Então, é melhor a gente chegar num acordo aqui, você não exerce seu poder sobre mim e não me rebelo muito contra você. Isso está subsidiado em um tipo de interpretação cultural de que há uma mistura criativa, uma ginga, uma síncope – e é possível que isso seja verdade, olhando para a nossa cultura vamos encontrar esse traço. O problema é a derivação ideológica desse traço. Já que estamos em uma cultura assim, e a cultura é nossa terapia espontânea, vamos acomodando as coisas.
De repente, o passivo acumulado em torno disso veio à tona. Não quero mais isso para a questão da negritude, para a questão gay, de acesso privilegiado à universidade… Precisa mudar a chave. Não quero mais sincretismo, o “eu e o meu amigo temos um conhecido no Detran que resolve o problema pra gente”. Agora, novo capítulo. Essas duas matrizes, o déficit do individualismo liberal e a hipótese sincrética se esgotaram. Tem que se inventar outra coisa. Enquanto não se inventa, é Hobbes, todos contra todos.
Fórum – Em uma palestra sua, o senhor traça um histórico de neuroses que se relacionam com o contexto de cada época, e no fim do século 19 já havia neuroses associadas ao trabalho. No capitalismo atual, temos o desenvolvimento de um trabalho mais intensificado e também mais extenso. Que tipo de sofrimento psíquico essa forma de trabalhar acaba proporcionando?
Dunker – Tem uma resposta mais ou menos consensual. Sua pergunta remete ao fato de que transformações nas nossas formas de vida, quer dizer, trabalho, linguagem e desejo, transformam as formas de sofrer. Um tipo de neurose pra um tipo de laço social que foi se sucedendo.
Há um consenso de que a nossa forma neoliberal, formada de 1970 pra cá, com Reagan e Thatcher, se associa com a emergência da depressão como forma de sofrimento compulsório. Hoje, a depressão é a segunda maior causa de afastamento de trabalho do mundo e estima-se que em dez anos seja a primeira, fácil. A depressão e quadros que estão mais ou menos ligados a ela como pânico, ansiedades, fibromialgia, problemas de sono, anoréxico-bulímicos. Tem uma constelação de formas de sofrer em torno da depressão, que está ligada ao eixo potência-impotência.
“Seus talentos, sua potencialidade, tire isso para fora” é algo que está ligado ao discurso mais chinfrim de recursos humanos, que é todo ele voltado para isso, saia da impotência e vá para a potência. Um negócio sem fim, um infinito ruim, como diria Hegel. Você sempre pode mais, até desfalecer. Potência e impotência substituem o eixo do proibido-permitido, que era a chave onde Freud descobriu a psicanálise, a partir de um certo tipo de posição do pai-chefe na cultura que estabelecia essa gramática para o desejo. O que é permitido e o que não é. A gente saiu disso e partiu para “o que não é mais permitido no trabalho?”. Você pode fazer qualquer coisa, inclusive o prescrito se reduziu a entregar mais, mais rápido e melhor.
Daí tem as depressões e um grupo de sintomas que é meio secundário a essa chave. Como faço se não sou um super-herói? Vou me dopar. Tem vários tipos de doping. O oficial, como dar ritalina para uma criança – tem os casos, sim, em que é indicado, mas não justifica o fato de em um ano para outro ter um aumento de 75% no consumo dessa substância, uma epidemia. Tem o doping antigo que é tomar o álcool, você resiste, vai em frente, se quebrando por dentro. O irregular, cocaína, estimulantes, e os psicológicos, “fitoterápicos” digamos assim, e o ódio é um deles. É muito comum você entrar em uma redação de um grande jornal e existir o cara com chicote. Quanto mais ódio estimula nele, mais entrega; quanto mais ódio do sistema, mais se liga. É um tipo de doping que vai se criando por um discurso gerencial.
Um dos fatores indutores da depressão, e volto a esse ponto, é que ela também é algo que se alimenta da lógica do último capítulo. O depressivo está sempre julgando sua vida naquela semana, senão naquele dia. Se só importa o que você conseguiu fechar naquele trimestre como meta, não consegue mais se contar uma história. Sua vida ficou resumida a esses meses. Vida que não consegue criar uma história, não consegue ser compartilhada e ser reconhecida, nem se reconhecer. É uma vida que vai matando o desejo, ninguém consegue desejar desse jeito, com a potência ilimitada e indefinida.
Fórum – O que lembra um trecho do seu livro, no qual se conta o pesadelo do soldado que volta da guerra, está sentando à mesa, mas ninguém ali o escuta contar o que passou.
Dunkler – Era um soldado, um caso avançado, como o exemplo do Primo Levy voltando de Auschwitz. Hoje é todo mundo voltando da guerra todo dia, pensando “ah, mas vem a sexta-feira e o feriado”. Sua boa história é conseguir dar um jeito e sobreviver mais uns meses. Na lógica amorosa, a mesma coisa. Não é como se cria um laço, como gera intimidade, como se consegue reconhecer… Não, é está rendendo ou não está rendendo.
A gente não estabelece formas de vida que são ostensivamente percebidas como equivocadas sem pagar um preço. Já vivemos épocas em que as pessoas eram comidas por leões, mas aquilo era minimamente um consenso de que deveria ser assim. Não há um consenso hoje. As pessoas percebem que isso não é vida. As novas gerações não querem isso, escolhem outras formas de trabalho. Vai ter um deserto antes de vir o oásis.
Por Glauco Faria
“Emerge uma lógica que não é mais negocial, de reconhecer o outro, que vira alguém que tem que ser excluído. Daí a força que a lógica do condomínio tem nesse momento. Temos que por para fora, ‘limpar’, purificar.” É assim que o psicanalista e professor da Universidade de São Paulo (USP) Christian Dunker analisa o momento em que a cultura do ódio se tornou mais explícita no Brasil, o cenário pós-eleitoral vivido em 2014. Para ele, a falta de um “período de luto”, no qual os derrotados avaliam as razões da perda e chegam mesmo a se reinventar, foi substituído pela criação de um inimigo.
Autor do recém-lançado Mal-estar, Sofrimento e Sintoma – A Psicopatologia do Brasil Entre Muros (Boitempo), Dunker avalia que o contexto atual, que traz a necessidade de as pessoas terem pontos de vista definidos como sujeitos políticos, faz com que algumas procurem conhecer mais determinados temas, mas também facilita a emergência de “gurus” de opinião fácil, como colunistas que pregam o desrespeito à diferença. “São usinas de captação de descontentamento e a ampliação disso em uma espécie de gritaria geral”, pontua.
Por outro lado, com as recentes transformações na pirâmide social brasileira, Dunker também avalia existir no país uma transformação dos símbolos de classe, com uma contestação do discurso senhorial. “A grande mutação positiva que está acontecendo é que a gente não aceita mais isso, se tornou um ridículo social. Não o cara que ostenta, mas o que ostenta sem poder dizer como chegou ali. Esse é o lado bom da controvérsia sobre a corrupção, tem uma parte desse discurso rançoso que está dizendo uma coisa positiva, não aceitamos mais ostentação de símbolos culturais de riqueza sem uma história.”
Confira os principais trechos da entrevista abaixo.
Fórum – Hoje, na discussão política, mas não só nela, percebemos uma cultura de ódio, consolidada especialmente nas últimas eleições. É possível identificar a origem disso?
Christian Dunker – Tem várias coisas concorrendo, mas começaria dizendo que talvez estejamos no fim de um ciclo de um tipo de Brasil, país que foi marcado pela redemocratização, pela reinvenção econômica e no qual se colocam tanto o projeto do PSDB como o de Lula/Dilma. Um momento mais à direita, outro mais à esquerda, mas que tínhamos uma interpretação consensual a partir da qual as tensões, oposições e divergências podiam se colocar, e que no fundo o poder continuava nas mãos daqueles com os quais sempre esteve, dentro de uma estrutura que chamo nesse livro de “condomínio”, onde um certo grupo de pessoas se reveza e existe um síndico. Pode até ter a emergência de um governo de esquerda, como de fato teve e operou uma série de transformações, mas não se mexeu nisso, tornou o projeto da esquerda muito mais ligado ao campo do social, o que é uma grande coisa, mas não se alterou a relação, digamos, mais profunda do ponto de vista econômico. Ou seja, não alterou o sentimento de propriedade. Essa ideia produz certos efeitos psicológicos de que no fundo existe um grupo que, quando quiser de volta o poder, ele vai vir. Claro que isso é uma espécie de ideologia de certos segmentos que estão acostumados a uma distribuição não equitativa, essencialista, do poder.
A segunda eleição da Dilma colocou isso em cheque porque o antigo poder, o antigo dinheiro, o quis de volta, e isso não aconteceu. Não se gerou um processo tradicional que existe depois de um pleito, que é o de luto, já que alguém perdeu, que ocorreu após a eleição do Collor, do FHC, Lula, Dilma… E o luto, para a psicanálise, é um trabalho muito importante, porque permite que as pessoas se reformulem, que se separem de uma forma de vida e criem outra. O luto não é só saber perder, é um processo de inventar coisas novas, de ressignificação, muitos inventores fizeram suas coisas em uma situação de luto, que pode ser pela perda de um ideal, perda de uma pessoa, de um estado, não é só aquela experiência psicológica em um sentido individualista. E nós não vimos esse luto, os derrotados disseram: “tem algum problema na regra do jogo, vou pôr em questão o processo, há uma imbecilização do eleitorado, alguém roubou nos números…”.
O embrião veio a partir do discurso da corrupção, que é endêmica, tem sua lógica própria. E por que ela se tornou um grande mote? Porque é a situação daquele sujeito que diz “não é que eu perdi, o juiz roubou”. Então, existe um conjunto de afetos que são de outra natureza, você poderia ter classicamente um ressentimento, um tipo de ódio que chamamos de alternante no processo de luto. Tenho ódio de mim porque se tivesse feito mais essa pessoa não teria me deixado, se tivesse trabalhado mais, se tivesse sido mais amável… Enfim, não teria perdido. Mas em seguida há uma avaliação de que ele me odeia, quis me deixar, é um sacana, não fez o que foi prometido. E entre essas duas fases a gente vai elaborando a perda e inventando uma nova identidade, uma nova forma de vida.
O que aconteceu é que, com o bloqueio do luto, não há esse ódio alternante, a reflexão de que “a gente também pisou na bola porque escolheu um candidato…”. Não tem um movimento de partilha dos culpados, um pouco fui eu quem pisou na bola, um pouco foi o outro. Não. Foi o outro que pisou. E quando isso se polariza no outro é que o ódio vai se acumulando e assumindo uma outra função não muito característica que é de produzir massa, produzir multidão, produzir laços. Sou muito diferente de você, não temos muita coisa em comum, mas nós temos um inimigo comum. E esse tipo de vinculação que é considerado mais simples, mais pobre, menos elaborada do ponto de vista subjetivo, grassa numa situação em que você consegue criar o inimigo, estabelecendo esse consenso relativo de que não fui eu que perdi, foi o juiz que roubou.
Fórum – Como o personagem do Goldstein, do livro 1984, para o qual se dedicavam até os “dois minutos de ódio” durante o dia…
Dunker – Que era um cara que pensava diferente… Massacrar a diferença é uma tendência das grandes massas, como foram chamadas, “regredidas”, qualquer forma de diferença é um ataque ao laço que a gente tem. É a raiz da homofobia, do familiarismo, temos um tipo de laço que sobrevive porque estamos negando outros que não são como nós. No fundo, são estratégias mais simples que denunciam que temos um problema do tipo, “bom, o cara arranjou uma amante, está traindo a gente, mas será que não tem algo que não está funcionando no casamento?”. Para tratar esse mal-estar surgem essas estratégias, a criação de um inimigo, o laço baseado no ódio, substituição do luto pelo acting out, as ações, atos e discurso feitos para que não pensemos.
Fórum – E, do seu ponto de vista, como esse clima acaba ajudando também a emergirem pautas como a redução da maioridade penal e outros debates de cunho conservador?
Dunker – Queria voltar na sua observação sobre o Goldstein porque ela tem outro traço que ajuda a entender isso. Uma das maneiras de não fazer o trabalho do luto é suprimir os afetos. Nós não estamos sentindo nada, não aconteceu nada, continua tudo igual. Esse afeto que é suprimido volta na forma de um ódio catártico, vamos bater em alguém porque não dá pra viver num estado como em Alphaville, filme do Godard, de suspensão de afetos. Ele vai aparecer em algum lugar e você controla o lugar onde isso vai vir. Quando se tem esse deslocamento do afeto dominante na política é todo o sistema de ideias, controvérsias e contradições sociais que é passado a limpo. Já havia uma disputa, mas era uma disputa em que supostamente se reconhecia o adversário. Você tem ideias, eu tenho ideias, não concordo com você, mas o reconheço como alguém que preciso convencer, derrotar. Um adversário, não um inimigo.
Quanto temos esse processo de polarização com o ódio, há um processo de desumanização do outro e é muito interessante como a psicopatologia foi convocada nesse momento de uma forma bizarra, gente trazendo psiquiatras americanos falando da mentalidade do esquerdista, da mentalidade do terrorista, porque no fundo a ideia é dizer: esse outro não é um outro, é um louco, um doente mental, não adianta a gente conversar com “petralha”, com o cara da esquerda, porque no fundo ele não vai compartilhar comigo o processo e o fim desse processo que é o Brasil.
Todo esse conjunto de temas indeterminados fica assim: não preciso mais prestar contas e me justificar porque entendo que, como o outro roubou, é uma questão de força, violência. Vou praticar aquilo mesmo que acho que o outro faz, que é passar uma votação sobre redução de maioridade penal com um “truquezinho” – e pelo jeito o Eduardo Cunha é um mestre nisso. É um mágico, um especialista no funcionamento da Câmara, do alto e do baixo clero, a típica pessoa que sabe operar nas duas lógicas, cinicamente, ao mesmo tempo. Mais que isso, tem aquele timing de colocar os projetos obscenos no tempo certo. Um tipo de “corrupção dentro da lei”, de deslealdade, o cara está caído no campo e você pisa no calcanhar, diz que foi sem querer e não se sabe se foi ou não. Emerge uma lógica que não é mais negocial, de reconhecer o outro, que vira alguém que tem que ser excluído. Daí a força que a lógica do condomínio tem nesse momento. Temos que pôr para fora, “limpar”, purificar. Um entendimento da catarse grega, nós, nossa família, nosso Sul, os brancos, heterossexuais; esses outros, pra fora do muro.
Fórum – E existe um desaparecimento total da empatia. O pai de família branco que vê seu filho como potencial vítima de um jovem que comete um crime não consegue se colocar no lugar de um pai que vive na periferia e tem seu filho como vítima constante da violência estatal e não-estatal.
Dunker – Esse processo, diria que é anterior. Já vinha acontecendo, essa distribuição senhorial dos bens simbólicos, justiça, saúde, educação, é algo colonial no Brasil e nunca foi de fato enfrentada, existe esse mal-estar que aparece em pensamentos do tipo “como assim, meu filho vai estudar na faculdade em que a filha da empregada está indo?”. Vou ao aeroporto e não é mais aquela coisa “nossa”, está todo mundo viajando de avião, parece rodoviária, é uma degradação dos símbolos de classe. Isso cria uma animosidade a mais na diferenciação que já existia representada pela lógica do “meu filho sofre bullying, tenho problema, mas o filho do outro pode ser assassinado como um homo sacer”. Não tem punição, não tem justiça para ele.
Esse estado mudou porque de repente o menino pobre, negro, da periferia se aproximou do meu garoto. Como eu faço? Vai virar a mesma lei? Não consigo mais distinguir. Ele tem carro também… É um pouco o que a gente viu num certo veio do cinema da retomada, o Cidade de Deus, por exemplo, Meu nome não é Johnny, uma série de protagonistas de filmes que mostra esse outro que sempre foi muito distante – tão distante que eu podia até acolher ele como agregado, “olha, eu tenho um lá em casa de tanto que eu gosto dele”.
Fórum – “Trato como se fosse da família…”
Dunker – Isso, ótima expressão. Para os amigos, tudo; para os inimigos, a lei. Tem coisas engraçadas acontecendo, como o “drama das babás”. Não sei se você está acompanhando o que acontece com uma certa classe social que contrata e precisa contratar babás. São mulheres que se emanciparam, que estão trabalhando e que precisam, pelo menos durante um tempo. Babás hoje em São Paulo ganham bem, algumas entre 4 e 5 mil reais, e escolhem pra quem vão trabalhar. Isso que é o “mais grave” (risos). Se me tratar mal, não volto aqui. Estou vendendo meus serviços, tenho uma formação e você precisa de mim talvez mais do que eu precise de você. Essa é uma relação que a classe média e a classe alta não estão acostumadas e recebem como uma confrontação. Crio uma população em que escolho quem vou “salvar”’ e esse caso indica uma inversão. São as babás que vão escolher quem de nós vão querer e quem não vão. E isso vale para empregados, funcionários, prestadores de serviços.
Fórum – Nessa questão do pensamento senhorial, pode-se entender que um segmento social pense assim até por uma questão “hereditária”, algo passado de geração a geração. Mas existe uma parte da classe média e até de parcelas que ascenderam recentemente que já pensa dessa forma. Como essa ideologia vai perpassando e irradiando nessas classes?
Dunker – Existem processos que são psicológicos, são formas de ideologia, mas também suportes de identificação. Gosto muito das pesquisas do Jessé de Souza, que analisou a ralé que virou pobreza, os pobres que viraram classe trabalhadora ou classe média, classe C, e existe um conjunto de reformulações muito importantes e pouquíssima gente fala disso. Não é fácil, você nasceu numa classe e agora está em outra, é como mudar de país. Tem que fazer um ajuste de contas com os valores de origem, com seu pai, sua mãe, um ajuste de contas com as pessoas que não conseguiram fazer essa travessia. E você gosta deles, eles gostam de você, mas cria-se um ressentimento dentro da sua família.
E isso acontece até na classe média, com a pessoa que monta um negócio e é bem sucedida. A gente é muito “verde” nessa questão do sucesso e da felicidade e acha que basta isso, todo mundo tem uma ilusão de que basta isso. Você vai, se mata de trabalhar, compra a sua casa… É terrível do ponto de vista do trabalho subjetivo que isso envolve e mais terrível ainda porque ninguém diz nada a respeito de como se virar com isso. O que você acaba tendo são misérias identificatórias. O que posso comprar agora? Aquela marca, porque ela é um signo de pertencimento. Uma coisa muito empobrecedora nessa identificação que gera um tipo de consumo e de narrativa de crescimento ligada ao consumo. Crescer é consumir. Consumir mais. Até o ponto em que você começa a se perguntar “e daí?” depois que fez aqueles targets que são mais ou menos óbvios.
Acho que uma parte do ódio e do conflito que estamos vivendo deriva do fato de muita gente no Brasil estar nessa situação. Pela primeira vez descobriu, por exemplo, que é um sujeito político. Que pode falar coisas, que uma das características de se estar na classe que se galgou é que tem que ter uma opinião. Isso detona uma pessoa. Tem um grande amigo meu que trabalha com orientação vocacional e diz que não consegue trabalhar com as classes pobres porque essa questão não se coloca pra elas. Não é uma pergunta que se coloca. Mas a nova geração cresce, a pessoa vai para a escola e chega um momento em que pela primeira vez tem que ter uma opinião sobre o que quer fazer como trabalho. É uma decisão difícil, que marca a vida de uma pessoa, e ela não tem recursos, ninguém falando sobre isso, ninguém tematizando esse problema.
O mais importante é o seguinte: existe uma mutação dos símbolos que marcam uma classe. E é uma mutação boa porque, até então, o discurso senhorial vinha com um tipo de apropriação dos signos culturais de classe que faziam com que não fosse necessário contar nenhuma história a respeito. Você vai para a Europa, tem alguém contando que o barão tal, a minha família mora aqui há cem, duzentos anos, ganhou na batalha tal título… São os ricos muito, muito velhos. Os nossos ricos se contentavam em mostrar os signos. Você tem um carro, não precisa saber se comprou à prestação, se roubou, se é fruto de um negócio ilícito, não importa. Os nossos ricos não fizeram nada para diminuir a iniquidade, a diferença social, pelo contrário. Desde o modo de se vestir até onde estuda, o bairro em que mora etc, tudo era sem história, bastava mostrar. Só vale o último capítulo. O que é um problema. Se você perder tudo, nada te garante no tempo. Está sempre dependendo da mostração da última sexta-feira.
A grande mutação positiva que está acontecendo é que a gente não aceita mais isso, se tornou um ridículo social. Não o cara que ostenta, mas o que ostenta sem poder dizer como chegou ali. Esse é o lado bom da controvérsia sobre a corrupção, tem uma parte desse discurso rançoso que está dizendo uma coisa positiva, não aceitamos mais ostentação de símbolos culturais de riqueza sem uma história.
Fórum – Tem que explicar de onde veio.
Dunker – Tem que explicar de onde veio não só juridicamente, a nossa nova lógica de reconhecimento é essa. Com essas transformações todas, o que o sujeito tem que fazer é contar sua história: comecei lá no Brás, minha família fez a confecção, eu ia, buscava mercadoria…
Fórum – Mas é a justificativa pelo trabalho. Se for por herança, pensando, por exemplo, no filho do Eike Batista.
Dunker – É uma história curta, eu nasci, né (risos). Não é que é errado, tem cara que nasceu rico mesmo e não vai ser punido por isso, mas a história não é bacana.
Fórum – Quando você falou a respeito da necessidade de se ter uma opinião, isso remete à questão das redes sociais, onde a pessoa tem que ter uma opinião a respeito de toda e qualquer coisa. E que também existe a exposição dos signos de felicidade…
Dunker – É esse ponto de encontro entre esse velho sistema conspícuo, de felicidade à base da inveja, o antigo, com o novo, que diz que história você vai contar. É um acontecimento do Brasil, de tantas pessoas entrarem e se dedicarem às redes. Em outros países para os quais viajo as pessoas falam “eu tenho Facebook” e isso é algo menor na vida das pessoas. Aqui não. Tem os fanáticos, é um espaço de altíssima sociabilidade, lugar de conhecer pessoas, de ser reconhecido. Mas na lógica antiga era assim: você põe sua Mercedes e lá vem 418 mil curtidas, posta uma foto nas pirâmides do Egito… Mas isso é no começo, depois de ver dez vezes esse tipo de postagem, percebe-se que é tudo igual. Isso significa que o “passe” dessa pessoa desvalorizou.
Juntei dinheiro a vida toda para ter uma Mercedes e dizer que sou o único que tenho e aparecem 214 Mercedes no Facebook iguaizinhas… E a pessoa sente essa coisa que os caras que curtem jazz avançado pensam quando a música começa a tocar no rádio: “Ah, acabou com meu prazer!”. Não tenho mais aquele sentimento de superioridade, de exclusividade, de que sou diferente. O que vai te diferenciar? A sua postagem, a sua história, o seu meme, a sua opinião. E existe um problema. É muito difícil, nesse estado de coisas, você simplesmente concordar. Um concorda, outro também, chega alguém que concorda, mas observa que tem um ponto que ficou de fora… Vem mais um e diz: “concordo com esse, concordo com o ‘mas’, só que tenho que fazer alguma coisa aqui…”. E aumenta uma oitava. Daí chega outro e aumenta duas, outro aumenta três e vêm as comunidades de ódio. Criam-se Revoltados Online, comunidades orientadas para quem é que vai gritar mais alto. Depois de algum tempo está todo mundo rouco, surdo, e querendo fazer alguma coisa fora da rede social.
Fórum – E não existe um diálogo real, é cada um sustentando sua posição de surdo em relação ao outro. Em geral não existe um método hegeliano de uma síntese integradora…
Dunker – Porque é choque. Nós, no Brasil, estamos nessa situação. A rede só dá musculatura a essa oposição sem síntese, acredito que isso não vá ficar assim indefinidamente, mas é nosso corte no momento. Agora, tem um outro lado. No começo desse tipo de conversa é exibição, mas no meio dela vem um negócio interessante, essa percepção de se ter uma opinião e que os outros também têm, e penso como a minha vai ser diferente. Isso leva as pessoas a ler, estudar, procurar outros sites, é uma outra revolução que está acontecendo que não estamos vendo. A quantidade de pessoas que está se interessando por um site como a Fórum, que fizeram fila para ver uma exposição chinesa ou do Dalí, os dispositivos de cultura ficaram pequenos, as pessoas estão lendo mais, estudando mais, há uma coisa que a gente nunca teve, uma concorrência de opiniões. Vai ler porque você pode encaixar uma boa opinião.
Mas daí tem um terceiro momento, que é a percepção de que isso vai dar trabalho. Se eu der um gritão aqui, fizer uma micagem, inventar uma loucura, é capaz de não ter que ficar lendo para tentar entender o que está acontecendo, faço minha presença no clube de algum jeito.
Fórum – E é aí nesse terceiro momento que aparecem estes “gurus” como Rodrigo Constantino, Olavo de Carvalho…
Dunker – São usinas de captação de descontentamento e a ampliação disso em uma espécie de gritaria geral, repetitiva. Não dá mais pra botar a jaqueta do entendido, do ricaço, a pessoa não sabe direito ter opiniões e vem o cara que “sabe” ter opiniões. Que inclusive se parece comigo, que nunca li nada. Olha só que lindo. Eu me encaixo com ele, reproduzo, copio. A gente tem essa tendência mimética no Brasil, tem alguém falando uma coisa que não sei se concordo direito com ele, mas está bonito, está fácil, acessível, consigo ler uma revista toda semana… Essas pessoas só se tornaram rotweillers e pitbulls porque tem gente lendo. São leitores que não querem fazer o trabalho duro e compram no supermercado. Ou na loja de 1,99.
Fórum – Essa necessidade de posicionamento nas redes tem relação com o que o senhor chama de importância excessiva que damos para a nossa identidade? Como a sociedade contemporânea corrobora com isso?
Dunker – Vou reduzir esse problema a três tópicos. Uma ideia primeira vem da antropologia do Viveiros de Castro, que tem estudado uma população diferente de indígenas e trazido o que poderíamos chamar de filosofia indígena, com adaptações, mas que entra no páreo das coisas que têm sido ditas mais nobremente no cenário de ideias. Ele, reconstruindo a lógica discursiva e experiencial dessas comunidades, percebe que os indígenas brasileiros – não todos, mas alguns – tinham uma espécie de crise permanente de identidade, eram sequiosos por comer, antropófagos, mas não só pedaços de carne do outro e sim comer palavras, almas. Isso é uma tese antiga que aparece nos modernistas, somos uma cultura que come outras culturas, antropófagos, mas a novidade do Viveiros de Castro é que nosso canibalismo é diferente de outros, não é totemista em que se come aquilo que se sabe e se respeita que o outro tem. Você come porque está em uma espécie de déficit em relação à constância da sua própria alma, daí o título do livro se chamar “A inconstância da alma selvagem”.
Isso seria lá, longinquamente, se é que queremos acreditar em alguma origem antropológica, algo complicado, mas meio alegoricamente poderíamos dizer isso. Nosso gosto pelo estrangeiro, nossa superficialidade, nosso sentimento de que o brasileiro tem um problema, um defeito de origem, um complexo de vira-latas, uma expressão de que não estamos muito certos de quem somos. Isso se articulou com duas matrizes, uma mais cultural e outra social, de Juscelino pra cá, que é a interpretação que temos sobre o Brasil: por que deu errado?
Fórum – Já se parte do princípio de que deu errado…
Dunker – Nós somos fanáticos por diagnósticos, estamos sempre fazendo novos. Tem um grande diagnóstico que diz o seguinte: no fundo, o Brasil nunca conseguiu implantar um tipo de individualismo e o tipo de instituição que esse individualismo exprime, que as tradições liberais anglo-saxônicas conseguiram. Isso é ibérico em parte, mas o individualismo ibérico é mais bem concluído enquanto projeto liberal do que o individualismo à brasileira.
Um dos motivos é que ser indivíduo no Brasil é mais problemático, frustrâneo, do que em outros países, menos desenvolvidos inclusive. Não é uma questão de pujança econômica, social, como pensavam os desenvolvimentistas dos anos 70, que quando o país desenvolve isso vai junto. Não vai junto. Existe um descontentamento de base com ser apenas um indivíduo. Estávamos falando das redes sociais e é um caso exemplar. Não consigo ser só mais um em uma curtida que tem 15, 20 pessoas, tenho um problema em ser só mais um. Tem um tipo de diferença baseado na pessoa, um fetiche na celebridade, naquele que se diferencia não por ser um como qualquer outro que trabalhou mais, que tem dotes melhores, mas se diferencia por um “xis” a mais, um truque, uma mágica, que fico procurando para descobrir qual é. Isso vai levar ao fato de que na minha relação com as instituições nunca vou largar a ilusão de ser uma exceção, quero a porta social, não a dos funcionários.
A outra matriz é de que somos uma cultura sincrética, uma democracia racial, o país que nunca entrou numa guerra pra valer, em que nossos generais usavam terno, não farda, um país em que há uma acomodação, uma complacência, que durante muito tempo era uma forma de mitigar a barbárie e a opressão. É o senhor que é tão poderoso que ele pode te proteger também. Então, é melhor a gente chegar num acordo aqui, você não exerce seu poder sobre mim e não me rebelo muito contra você. Isso está subsidiado em um tipo de interpretação cultural de que há uma mistura criativa, uma ginga, uma síncope – e é possível que isso seja verdade, olhando para a nossa cultura vamos encontrar esse traço. O problema é a derivação ideológica desse traço. Já que estamos em uma cultura assim, e a cultura é nossa terapia espontânea, vamos acomodando as coisas.
De repente, o passivo acumulado em torno disso veio à tona. Não quero mais isso para a questão da negritude, para a questão gay, de acesso privilegiado à universidade… Precisa mudar a chave. Não quero mais sincretismo, o “eu e o meu amigo temos um conhecido no Detran que resolve o problema pra gente”. Agora, novo capítulo. Essas duas matrizes, o déficit do individualismo liberal e a hipótese sincrética se esgotaram. Tem que se inventar outra coisa. Enquanto não se inventa, é Hobbes, todos contra todos.
Fórum – Em uma palestra sua, o senhor traça um histórico de neuroses que se relacionam com o contexto de cada época, e no fim do século 19 já havia neuroses associadas ao trabalho. No capitalismo atual, temos o desenvolvimento de um trabalho mais intensificado e também mais extenso. Que tipo de sofrimento psíquico essa forma de trabalhar acaba proporcionando?
Dunker – Tem uma resposta mais ou menos consensual. Sua pergunta remete ao fato de que transformações nas nossas formas de vida, quer dizer, trabalho, linguagem e desejo, transformam as formas de sofrer. Um tipo de neurose pra um tipo de laço social que foi se sucedendo.
Há um consenso de que a nossa forma neoliberal, formada de 1970 pra cá, com Reagan e Thatcher, se associa com a emergência da depressão como forma de sofrimento compulsório. Hoje, a depressão é a segunda maior causa de afastamento de trabalho do mundo e estima-se que em dez anos seja a primeira, fácil. A depressão e quadros que estão mais ou menos ligados a ela como pânico, ansiedades, fibromialgia, problemas de sono, anoréxico-bulímicos. Tem uma constelação de formas de sofrer em torno da depressão, que está ligada ao eixo potência-impotência.
“Seus talentos, sua potencialidade, tire isso para fora” é algo que está ligado ao discurso mais chinfrim de recursos humanos, que é todo ele voltado para isso, saia da impotência e vá para a potência. Um negócio sem fim, um infinito ruim, como diria Hegel. Você sempre pode mais, até desfalecer. Potência e impotência substituem o eixo do proibido-permitido, que era a chave onde Freud descobriu a psicanálise, a partir de um certo tipo de posição do pai-chefe na cultura que estabelecia essa gramática para o desejo. O que é permitido e o que não é. A gente saiu disso e partiu para “o que não é mais permitido no trabalho?”. Você pode fazer qualquer coisa, inclusive o prescrito se reduziu a entregar mais, mais rápido e melhor.
Daí tem as depressões e um grupo de sintomas que é meio secundário a essa chave. Como faço se não sou um super-herói? Vou me dopar. Tem vários tipos de doping. O oficial, como dar ritalina para uma criança – tem os casos, sim, em que é indicado, mas não justifica o fato de em um ano para outro ter um aumento de 75% no consumo dessa substância, uma epidemia. Tem o doping antigo que é tomar o álcool, você resiste, vai em frente, se quebrando por dentro. O irregular, cocaína, estimulantes, e os psicológicos, “fitoterápicos” digamos assim, e o ódio é um deles. É muito comum você entrar em uma redação de um grande jornal e existir o cara com chicote. Quanto mais ódio estimula nele, mais entrega; quanto mais ódio do sistema, mais se liga. É um tipo de doping que vai se criando por um discurso gerencial.
Um dos fatores indutores da depressão, e volto a esse ponto, é que ela também é algo que se alimenta da lógica do último capítulo. O depressivo está sempre julgando sua vida naquela semana, senão naquele dia. Se só importa o que você conseguiu fechar naquele trimestre como meta, não consegue mais se contar uma história. Sua vida ficou resumida a esses meses. Vida que não consegue criar uma história, não consegue ser compartilhada e ser reconhecida, nem se reconhecer. É uma vida que vai matando o desejo, ninguém consegue desejar desse jeito, com a potência ilimitada e indefinida.
Fórum – O que lembra um trecho do seu livro, no qual se conta o pesadelo do soldado que volta da guerra, está sentando à mesa, mas ninguém ali o escuta contar o que passou.
Dunkler – Era um soldado, um caso avançado, como o exemplo do Primo Levy voltando de Auschwitz. Hoje é todo mundo voltando da guerra todo dia, pensando “ah, mas vem a sexta-feira e o feriado”. Sua boa história é conseguir dar um jeito e sobreviver mais uns meses. Na lógica amorosa, a mesma coisa. Não é como se cria um laço, como gera intimidade, como se consegue reconhecer… Não, é está rendendo ou não está rendendo.
A gente não estabelece formas de vida que são ostensivamente percebidas como equivocadas sem pagar um preço. Já vivemos épocas em que as pessoas eram comidas por leões, mas aquilo era minimamente um consenso de que deveria ser assim. Não há um consenso hoje. As pessoas percebem que isso não é vida. As novas gerações não querem isso, escolhem outras formas de trabalho. Vai ter um deserto antes de vir o oásis.
Nenhum comentário:
Postar um comentário