Mauro Santayana
Quando se insiste na adoção do sistema de listas fechadas nas eleições parlamentares, em uma realidade em que os partidos não passam de grupos de interesses, dominados por poucos, e sem democracia interna, é necessário repensar o que são e para que servem as instituições políticas. A instituição parlamentar, mais no Brasil do que em outros países, se encontra à deriva, porque perdeu a memória de sua razão de ser. O Parlamento é o supremo poder do Estado, porque representa diretamente a vontade do povo – quando a representa. Todo o poder político pertence ao povo, e o ato eleitoral é a transferência de parcela do livre arbítrio de cada um, aos seus representantes, em favor de todos, conforme os pensadores clássicos.
Ninguém melhor do que John Locke, que, mediante Montesquieu e Jefferson, influiu com suas ideias na formação do Estado moderno, para resumir a natureza do Parlamento. "O Poder Legislativo é aquele que tem o direito de fixar as diretrizes de como a força da sociedade política será empregada para preservá-la e a seus membros", resume no livro II, de seus Dois tratados sobre o governo. Mais adiante, esclarece que, embora nas sociedades políticas só um poder – o Legislativo – seja supremo, há poder ainda maior, o do próprio povo. Sendo assim, cabe ao povo o direito de dissolver o Parlamento, quando ele não cumpre o seu mandato, quando se dissocia da vontade que o instituiu, e, assim, perde a legitimidade.
"Portanto – diz – a sociedade política conserva perpetuamente o poder supremo de salvaguardar-se das tentativas e propósitos de qualquer pessoa, mesmo de seus próprios legisladores, sempre que estes sejam tolos ou perversos o bastante para conceber e levar a cabo planos contrários às liberdades e propriedades dos súditos".
Esse trecho parece ter sido redigido com a antevisão do que seria o Congresso brasileiro de nossos dias. Aqui não sabemos se são mais numerosos os perversos ou os néscios. Talvez tenha faltado a Locke uma terceira categoria, a dos não tão perversos quanto o deputado Hildebrando Pascoal – do PFL, que serrava seus inimigos, condenado a 65 anos de prisão – nem tão tolos: a categoria dos corruptos e espertos, que fazem da representação um meio de enriquecimento rápido ou rendoso emprego permanente. Os fatos demonstram que o interesse público está, a cada legislatura, sempre mais ausente dos trabalhos do Parlamento.
Nossa República não soube preservar a autonomia dos dois poderes. Quando se permitiu que parlamentares ocupassem cargos no Poder Executivo, instituiu-se promiscuidade que compromete irremediavelmente a independência entre os dois poderes. O parlamentarismo imperial enfiou-se, clandestino, no Congresso Constituinte de 1891, a fim de impedir essa separação necessária ao sistema presidencialista, de modelo americano, como o nosso. Esse prejuízo à democracia não se corrigiu nas várias constituições que se seguiram, porque a anomalia é de interesse dos próprios parlamentares.
Para que se recupere o contrato republicano é necessário conferir legitimidade à formação do Poder Legislativo. As pesquisas de opinião mostram que o Congresso atual é o pior que já tivemos na História, mesmo se contarmos com os que conviveram com a ditadura militar. Duas coisas ocorreram, entre outras, para a erosão da qualidade do Parlamento, em que as exceções são tanto mais notáveis quanto mais escassas. Uma delas foi a perversão das campanhas eleitorais, mediante a ação do marketing político, o que resulta na eleição daqueles que comprometem seu voto com seus poderosos patrocinadores. Assim conseguem esconder do eleitor sua face real. Os parlamentares, em sua maioria, não representam o povo e, sim, os banqueiros, latifundiários, gerentes de grandes empresas multinacionais. Apesar disso, alguns empresários ricos e grandes fazendeiros, para garantir seus privilégios, decidiram, eles mesmos, candidatar-se e ocupar cadeiras no Parlamento.
Para mascarar o problema da legitimidade da representação, surgem os projetos de reforma político-eleitoral. Todos eles, no entanto, não atingem o âmago da questão, porque todos visam à defesa dos detentores do mandato. O que pretendem com as reformas, sobretudo mediante as listas fechadas, é legitimar o ilegítimo, é obter escritura pública sobre o espaço roubado da soberania popular. Esse é assunto para séria e urgente discussão da cidadania.
Fonte:JB
Nenhum comentário:
Postar um comentário