“No mundo católico as convicções dos crentes estão profundamente abaladas pelo materialismo das sociedades de consumo, pelo péssimo exemplo dado pelos sectores mais conservadores da hierarquia e pelo afastamento, cada vez mais evidente, do pensamento oficial da igreja relativamente às conquistas éticas da ciência e da laicidade do homem moderno e à passividade que revela perante os grandes problemas sociais. A crise traduz-se na falta de vocações sacerdotais, na escassez de voluntariado, na fuga dos católicos às grandes manifestações litúrgicas e no esvaziamento relativo dos templos, procissões e festas rituais como recentemente aconteceu em Fátima e na canonização de Nuno Álvares Pereira.”
Jorge Messias
As notícias que vão chegando dos quatro cantos do mundo convergem no sentido da denúncia da grave crise ideológica e de vocações que a igreja católica atravessa. Não é que à igreja mundial falte dinheiro e poder. A crise revela-se de outra maneira e tem uma gravidade capital. No mundo católico as convicções dos crentes estão profundamente abaladas pelo materialismo das sociedades de consumo, pelo péssimo exemplo dado pelos sectores mais conservadores da hierarquia e pelo afastamento, cada vez mais evidente, do pensamento oficial da igreja relativamente às conquistas éticas da ciência e da laicidade do homem moderno e à passividade que revela perante os grandes problemas sociais. A crise traduz-se na falta de vocações sacerdotais, na escassez de voluntariado, na fuga dos católicos às grandes manifestações litúrgicas e no esvaziamento relativo dos templos, procissões e festas rituais como recentemente aconteceu em Fátima e na canonização de Nuno Álvares Pereira.
O comportamento do alto clero contribui para o agravamento deste estado de coisas. As causas e os efeitos dos gigantescos problemas que alastram por todo o mundo começam a ser claros para qualquer cidadão. O que o homem produz não é integrado na valorização do bem comum mas vai invariavelmente engordar as fortunas privadas. As políticas do Poder são subsidiárias dos grupos económicos e dos paraísos fiscais que crescem em rede e dominam os governos, os centros de decisão e as polícias. Os sistemas político-financeiros estão ao serviço dos multimilionários e não dos povos e das democracias.
A hierarquia católica serve de capa a estes crimes de lesa-humanidade. Papa, cardeais e bispos falam da exploração do homem, da promoção sistemática da miséria e no aproveitamento fraudulento das potencialidades da crise económica e financeira, como tudo se passasse num outro planeta. Usam uma linguagem untuosa ungida de caridade, de justiça e de paz, mas nada tentam fazer que possa vir a travar a cupidez dos poderosos. Porque também o Vaticano participa, investe e comanda negócios milionários. Só um exemplo, como ilustração.
O apagamento do papel institucional do Estado representa para a igreja dominar um ambicionado campo de manobras. Caso o poder político abdique dos seus deveres constitucionais a igreja, através da rede das instituições sociais que controla, lucra materialmente com os subsídios que acumula por serviços prestados e pode dominar “por dentro”, com total à-vontade, os serviços de saúde, do ensino, da segurança social, do emprego, etc., substituindo-se ao Estado e dirigindo, efectivamente, um governo onde a democracia é apenas virtual mas que, até que o povo o mude, continuará a autoproclamar-se independente e democrático.
Estas perspectivas megalómanas e próprias do projecto de um “V Império” de que o papado nunca desistiu têm, todavia, nos países subdesenvolvidos boas possibilidades de realização. Portugal, pequena nação com menos de 90 mil quilómetros de superfície e 10 milhões de habitantes confronta-se com essa situação. O país é pobre em recursos naturais, tem altas taxas de desemprego e sistemas de segurança social desarticulados. Financeiramente, depende das fontes monetárias internacionais. Politicamente, os sucessivos governos têm escolhido serem fortes com os fracos e fracos com os fortes. O fantasma errante do autorismo salazarista e do fascismo continua a pairar sobre a linha do horizonte. É o campo ideal mais desejado para a intervenção da igreja através do “social”. Não para converter mas para consolidar e expandir o seu domínio.
A igreja dirige, no país, uma vasta rede de associações, movimentos e obras laicais. Seria impensável tentar-se aqui uma apresentação exaustiva dessas organizações mas é interessante destacar o facto de o seu número ser da ordem de muitas centenas, de trabalharem em rede e de se apoiarem numa orgânica da igreja portuguesa que tem um enquadramento territorial horizontal (dioceses, paróquias, arciprestados, vigararias) e uma cadeia de direcção vertical cuja base é o pároco e no cume se situam a Conferência Episcopal, os bispos, os cardeais e o Patriarcado. A igreja nacional liga-se às suas congéneres estrangeiras através de uma apertada malha de vasos comunicativos em tudo semelhante àquela que caracteriza o movimento capitalista internacional.
É muito provável que este pesado aparelho não esteja ainda a funcionar em pleno. Mas não se subestimem os perigos que ele representa caso a igreja venha a conseguir sobrepor-se às funções do Estado. Na realidade, essa meta é cada vez mais possível de atingir. Num país desordenado e com enormes atrasos, como é Portugal, a igreja representa efectivamente um “Estado dentro do Estado”. Um Estado com três pés para andar: o da capa democrática, o do capitalismo monopolista e o confessional.
O “eterno retorno”
É evidente que tudo tem o seu preço. E os custos que a igreja portuguesa tem de pagar são elevados. A igreja é fabulosamente rica, joga na bolsa, dirige grupos financeiros, detém carteiras de acções e obrigações, mas o seu percurso actual é paralelo aos caminhos que o Estado português “laico e institucional” vai trilhando: quanto mais rico é mais fraco politicamente se torna. No caso da igreja, os bispos aprendem a custo (mas virão um dia a entender) que uma igreja não se dirige como um grupo financeiro orientado, exclusivamente, para a noção do lucro. Seria acto de puro suicídio. Porque, se assim for, o preço a pagar será o do total afastamento das classes médias e das classes trabalhadoras, esmagadas pela especulação financeira e inteiradas da natureza da religião. Ora, o poder efectivo de uma religião organizada mede-se pelo prestígio de que ela dispuser entre os homens. Índice que cada vez mais aponta para a fragilização da influência religiosa entre o nosso povo.
Há agora sinais de que católicos se começam a rebelar contra o mercantilismo autoritário das igrejas. Temos em nosso poder cópia de uma carta-aberta recentemente dirigida a Bento XVI por um padre-missionário, canadiano ou franco-canadiano, chamado Claude Lacaille. Durante 45 anos, este padre trabalhou entre os míseros indígenas do Haiti e do Equador, com o aterrorizado povo do Chile de Pinochet e nas piores “favelas” do Brasil dos generais. Tem sido conduzido, ao longo da vida, pela imagem que a igreja católica projectou no mundo quando da efémera fase do Concílio Vaticano II e da Teologia da Libertação morta às mãos do cardeal Ratzinger, hoje papa Bento XVI.
Diz o p. Lacaille ao papa, sabendo que vai ser lido por uma plateia universal:
“Dirijo-te esta carta porque preciso de comunicar com o pastor da Igreja Católica e não existe qualquer canal de comunicação que permita comunicar directamente contigo... (Dizes) que a Teologia da Libertação é uma mistura errada da fé com a política!... No avião que te levou ao Brasil, condenaste uma vez mais a TL como um falso milenarismo representado por uma verdadeira “salada” entre igreja e política. Fiquei profundamente ferido com as tuas palavras... Já tinha lido e relido as duas “instruções” que o ex-cardeal Ratzinger tinha feito publicar sobre a TL; nelas se descreve a teologia da libertação como um espantalho e com palavras que para mim nada representam, nem como expressão de vida, nem no plano das convicções. Não é necessário ler-se Karl Marx para se descobrir a “opção pelos pobres”. A TL não é uma doutrina ou uma teoria; é uma forma de viver os Evangelhos na proximidade e na solidariedade para com os excluídos e as vítimas dos ricos... É indecente condenarem-se assim, publicamente, os crentes que consagraram as suas vidas – e somos dezenas de milhares de leigos e de leigas, religiosos e religiosas e sacerdotes em todo o mundo – e mantiveram sem desfalecimentos esse rumo. Ser discípulo de Jesus é imitá-lo, segui-lo, actuar como Ele. É incompreensível essa animosidade que tens para connosco...”.
A carta prossegue, depois, no espírito conciliar “da denúncia e do anúncio”. Embora termine com a expressão de um desejo piedoso, ingénuo e totalmente deslocado: “Querido Bento, peço-te que mudes as tuas posições ...”. O que, com toda a evidência é pedir o impossível. Mas uma voz nunca clama sozinha no deserto. Talvez que ecoe muito mais ao longe. É, pelo menos, uma esperança. Uma frestazinha muito estreita mas por onde o Futuro pode passar.
* Jorge Messias
Fonte:O Diário.info
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