quarta-feira, 13 de maio de 2009

IGREJA - O eterno retorno da "Teologia da Libertação".

“No mundo católico as convicções dos crentes estão profundamente abaladas pelo materialismo das sociedades de consumo, pelo péssimo exemplo dado pelos sectores mais conservadores da hierarquia e pelo afastamento, cada vez mais evidente, do pensamento oficial da igreja relativamente às conquistas éticas da ciência e da laicidade do homem moderno e à passividade que revela perante os grandes problemas sociais. A crise traduz-se na falta de vocações sacerdotais, na escassez de voluntariado, na fuga dos católicos às grandes manifestações litúrgicas e no esvaziamento relativo dos templos, procissões e festas rituais como recentemente aconteceu em Fátima e na canonização de Nuno Álvares Pereira.”

Jorge Messias

As notícias que vão chegando dos quatro cantos do mundo convergem no sentido da denúncia da grave crise ideológica e de vocações que a igreja católica atravessa. Não é que à igreja mundial falte dinheiro e poder. A crise revela-se de outra maneira e tem uma gravidade capital. No mundo católico as convicções dos crentes estão profundamente abaladas pelo materialismo das sociedades de consumo, pelo péssimo exemplo dado pelos sectores mais conservadores da hierarquia e pelo afastamento, cada vez mais evidente, do pensamento oficial da igreja relativamente às conquistas éticas da ciência e da laicidade do homem moderno e à passividade que revela perante os grandes problemas sociais. A crise traduz-se na falta de vocações sacerdotais, na escassez de voluntariado, na fuga dos católicos às grandes manifestações litúrgicas e no esvaziamento relativo dos templos, procissões e festas rituais como recentemente aconteceu em Fátima e na canonização de Nuno Álvares Pereira.

O comportamento do alto clero contribui para o agravamento deste estado de coisas. As causas e os efeitos dos gigantescos problemas que alastram por todo o mundo começam a ser claros para qualquer cidadão. O que o homem produz não é integrado na valorização do bem comum mas vai invariavelmente engordar as fortunas privadas. As políticas do Poder são subsidiárias dos grupos económicos e dos paraísos fiscais que crescem em rede e dominam os governos, os centros de decisão e as polícias. Os sistemas político-financeiros estão ao serviço dos multimilionários e não dos povos e das democracias.

A hierarquia católica serve de capa a estes crimes de lesa-humanidade. Papa, cardeais e bispos falam da exploração do homem, da promoção sistemática da miséria e no aproveitamento fraudulento das potencialidades da crise económica e financeira, como tudo se passasse num outro planeta. Usam uma linguagem untuosa ungida de caridade, de justiça e de paz, mas nada tentam fazer que possa vir a travar a cupidez dos poderosos. Porque também o Vaticano participa, investe e comanda negócios milionários. Só um exemplo, como ilustração.

O apagamento do papel institucional do Estado representa para a igreja dominar um ambicionado campo de manobras. Caso o poder político abdique dos seus deveres constitucionais a igreja, através da rede das instituições sociais que controla, lucra materialmente com os subsídios que acumula por serviços prestados e pode dominar “por dentro”, com total à-vontade, os serviços de saúde, do ensino, da segurança social, do emprego, etc., substituindo-se ao Estado e dirigindo, efectivamente, um governo onde a democracia é apenas virtual mas que, até que o povo o mude, continuará a autoproclamar-se independente e democrático.

Estas perspectivas megalómanas e próprias do projecto de um “V Império” de que o papado nunca desistiu têm, todavia, nos países subdesenvolvidos boas possibilidades de realização. Portugal, pequena nação com menos de 90 mil quilómetros de superfície e 10 milhões de habitantes confronta-se com essa situação. O país é pobre em recursos naturais, tem altas taxas de desemprego e sistemas de segurança social desarticulados. Financeiramente, depende das fontes monetárias internacionais. Politicamente, os sucessivos governos têm escolhido serem fortes com os fracos e fracos com os fortes. O fantasma errante do autorismo salazarista e do fascismo continua a pairar sobre a linha do horizonte. É o campo ideal mais desejado para a intervenção da igreja através do “social”. Não para converter mas para consolidar e expandir o seu domínio.

A igreja dirige, no país, uma vasta rede de associações, movimentos e obras laicais. Seria impensável tentar-se aqui uma apresentação exaustiva dessas organizações mas é interessante destacar o facto de o seu número ser da ordem de muitas centenas, de trabalharem em rede e de se apoiarem numa orgânica da igreja portuguesa que tem um enquadramento territorial horizontal (dioceses, paróquias, arciprestados, vigararias) e uma cadeia de direcção vertical cuja base é o pároco e no cume se situam a Conferência Episcopal, os bispos, os cardeais e o Patriarcado. A igreja nacional liga-se às suas congéneres estrangeiras através de uma apertada malha de vasos comunicativos em tudo semelhante àquela que caracteriza o movimento capitalista internacional.

É muito provável que este pesado aparelho não esteja ainda a funcionar em pleno. Mas não se subestimem os perigos que ele representa caso a igreja venha a conseguir sobrepor-se às funções do Estado. Na realidade, essa meta é cada vez mais possível de atingir. Num país desordenado e com enormes atrasos, como é Portugal, a igreja representa efectivamente um “Estado dentro do Estado”. Um Estado com três pés para andar: o da capa democrática, o do capitalismo monopolista e o confessional.

O “eterno retorno”

É evidente que tudo tem o seu preço. E os custos que a igreja portuguesa tem de pagar são elevados. A igreja é fabulosamente rica, joga na bolsa, dirige grupos financeiros, detém carteiras de acções e obrigações, mas o seu percurso actual é paralelo aos caminhos que o Estado português “laico e institucional” vai trilhando: quanto mais rico é mais fraco politicamente se torna. No caso da igreja, os bispos aprendem a custo (mas virão um dia a entender) que uma igreja não se dirige como um grupo financeiro orientado, exclusivamente, para a noção do lucro. Seria acto de puro suicídio. Porque, se assim for, o preço a pagar será o do total afastamento das classes médias e das classes trabalhadoras, esmagadas pela especulação financeira e inteiradas da natureza da religião. Ora, o poder efectivo de uma religião organizada mede-se pelo prestígio de que ela dispuser entre os homens. Índice que cada vez mais aponta para a fragilização da influência religiosa entre o nosso povo.

Há agora sinais de que católicos se começam a rebelar contra o mercantilismo autoritário das igrejas. Temos em nosso poder cópia de uma carta-aberta recentemente dirigida a Bento XVI por um padre-missionário, canadiano ou franco-canadiano, chamado Claude Lacaille. Durante 45 anos, este padre trabalhou entre os míseros indígenas do Haiti e do Equador, com o aterrorizado povo do Chile de Pinochet e nas piores “favelas” do Brasil dos generais. Tem sido conduzido, ao longo da vida, pela imagem que a igreja católica projectou no mundo quando da efémera fase do Concílio Vaticano II e da Teologia da Libertação morta às mãos do cardeal Ratzinger, hoje papa Bento XVI.

Diz o p. Lacaille ao papa, sabendo que vai ser lido por uma plateia universal:
“Dirijo-te esta carta porque preciso de comunicar com o pastor da Igreja Católica e não existe qualquer canal de comunicação que permita comunicar directamente contigo... (Dizes) que a Teologia da Libertação é uma mistura errada da fé com a política!... No avião que te levou ao Brasil, condenaste uma vez mais a TL como um falso milenarismo representado por uma verdadeira “salada” entre igreja e política. Fiquei profundamente ferido com as tuas palavras... Já tinha lido e relido as duas “instruções” que o ex-cardeal Ratzinger tinha feito publicar sobre a TL; nelas se descreve a teologia da libertação como um espantalho e com palavras que para mim nada representam, nem como expressão de vida, nem no plano das convicções. Não é necessário ler-se Karl Marx para se descobrir a “opção pelos pobres”. A TL não é uma doutrina ou uma teoria; é uma forma de viver os Evangelhos na proximidade e na solidariedade para com os excluídos e as vítimas dos ricos... É indecente condenarem-se assim, publicamente, os crentes que consagraram as suas vidas – e somos dezenas de milhares de leigos e de leigas, religiosos e religiosas e sacerdotes em todo o mundo – e mantiveram sem desfalecimentos esse rumo. Ser discípulo de Jesus é imitá-lo, segui-lo, actuar como Ele. É incompreensível essa animosidade que tens para connosco...”.

A carta prossegue, depois, no espírito conciliar “da denúncia e do anúncio”. Embora termine com a expressão de um desejo piedoso, ingénuo e totalmente deslocado: “Querido Bento, peço-te que mudes as tuas posições ...”. O que, com toda a evidência é pedir o impossível. Mas uma voz nunca clama sozinha no deserto. Talvez que ecoe muito mais ao longe. É, pelo menos, uma esperança. Uma frestazinha muito estreita mas por onde o Futuro pode passar.

* Jorge Messias
Fonte:O Diário.info

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