Márcia Denser*
Dois documentários geniais circulam pela web: Zeitgeist, the movie, 2007, e Zeitgeist Addendum, 2008. Produzidos e dirigidos por Peter Joseph, expõem as falácias e lorotas apregoadas durante os últimos cinqüenta anos pelos EUA e pela União Européia – os chamados “países centrais” – desvendando os mecanismos ocultos de um sistema monetário voltado exclusivamente para o lucro, totalmente insensível aos custos humanos, vinculado à ideologia neoliberal, suas políticas assassinas promotoras do livre mercado e demolidoras dos programas sociais.
No limite, o mundo globalizado caracteriza-se precisamente como uma “corporatocracia”, ou seja, é dominado pelas corporações. Então me ocorreu que ninguém melhor que Naomi Klein em seu último livro, A Doutrina do Choque – a ascensão do capitalismo de desastre, para dissecar o catastrófico poder corporativo. Segundo ela, o fenômeno ocorre na intersecção entre superlucros e megadesastres: “Estava claro que os desastres facilitadores estavam se tornando maiores e mais chocantes, porém o que estava acontecendo no Iraque e em New Orleans não era uma versão posterior ao 11 de setembro, pelo contrário, esses experimentos audaciosos com a exploração das crises eram o ponto culminante de três décadas de uma adesão rigorosa à doutrina do choque.” Algumas das violações mais infames dos direitos humanos de nossa época, interpretadas erroneamente como atos sádicos perpetrados por regimes antidemocráticos, foram cometidas com a intenção clara de aterrorizar o público a fim de preparar o terreno para a introdução das “reformas” radicais de livre mercado.
Na Argentina da década de 70, o “desaparecimento” de trinta mil pessoas sob o regime da junta militar fez parte da imposição ao país das políticas neoliberais da Escola de Chicago, do mesmo modo que o extermínio foi parceiro da mudança econômica no Chile. Em 1989, o massacre da praça da Paz Celestial na China e as prisões de milhares de manifestantes facilitaram ao Partido a conversão de amplos setores do país a uma imensa zona de exportação, suprida com uma força de trabalho aterrorizada demais para reivindicar seus direitos. Na Rússia, em 1993, foi a decisão de Boris Yeltsin de enviar os tanques para bombardear o Parlamento e prender os líderes da oposição que abriu caminho para a escalada de privatizações, criando os notórios oligarcas do país. Nos anos 80, na América Latina e na África, a crise da dívida forçou os países a “privatizar ou morrer”; na Ásia, a crise financeira de 1997, dobrou os Tigres Asiáticos que por fim abriram seus mercados para “a maior liquidação de negócios falidos do mundo”, segundo o New York Times – eis como as corporações se apropriam dos valores e recursos do mundo inteiro.
Na verdade, as proezas de Bush representaram o ápice monstruoso de uma campanha de mais de cinqüenta anos pela total liberdade das corporações, compreendendo desde o agronegócio até os conglomerados de mídia. Após o 11 de setembro, o governo Bush se apropriou rapidamente do medo gerado pelos ataques, não apenas para deslanchar a “Guerra ao Terror”, como garantir que esta fosse voltada quase completamente para o lucro, uma nova e estimulante indústria que revitalizasse a economia norte-americana já à beira do crash, que efetivamente ocorreu sete anos depois.
Definido como um “complexo do capitalismo de desastre”, esse modelo possui tentáculos de alcance muito maior do que o complexo industrial-militar da era Eisenhower: trata-se de uma guerra global travada em todos os campos pelas empresas privadas, cuja participação é paga com dinheiro público, que se legitima indefinidamente pela necessidade de proteger o território dos Estados Unidos mediante a eliminação de todo o “mal” existente no mundo exterior.
O objetivo central das corporações que operam no centro desse complexo é trazer para o funcionamento regular dos Estados-Nação seu modelo de administração voltado para o lucro, que progride rapidamente sobretudo em circunstâncias excepcionais, reais e/ou fabricadas. Em síntese: trata-se de privatizar os governos. Do comércio de armas aos soldados privados, da reconstrução com fins lucrativos à indústria de segurança nacional, resultou do pós-11 de setembro uma nova economia totalmente articulada. Construída na era Bush, ela agora existe globalmente, independente de quaisquer governos, e vai continuar exercendo seu domínio absurdo e insano até que a ideologia das corporações, que a sustenta, seja identificada, isolada, questionada e colocada em cheque.
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