Anistia fiscal permanente: um ato de corrupção. Entrevista especial com Guilherme Delgado
Desde o último dia 17 de julho, Lina Maria Vieira não é mais secretária da Receita Federal. A primeira mulher a ocupar o cargo, no qual permaneceu 11 meses, foi exonerada. Desde então, travou-se no Brasil um debate em torno da postura de Lina no cargo, sobre a questão da tributação e sobre os rumos da Receita Federal no país. A IHU On-Line entrevistou por telefone, sobre o tema, o economista e pesquisador do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA), Guilherme Delgado. Para ele, a demissão é algo “preocupante, porque um servidor público que tem uma postura como ela vinha mantendo, no sentido de uma eficiência na arrecadação, um tratamento especial no sentido de atenção aos grandes monopólios, deveria merecer da parte do governo toda a prioridade”. Delgado entra na discussão sobre a Reforma Tributária da PEC 233, de 2008, e afirma que não vê nela qualquer objetivo de melhoria na equidade da tributação. “É uma reforma neutra do ponto de vista da equidade. Quem fez um projeto dessa natureza, não me surpreende que demita uma secretária que, provavelmente, estaria em uma linha contrária à da sua reforma tributária, que foi o caso”. Em resumo, na visão do economista, “o cerne da questão da tributação e da transferência de renda é mais importante do que o fato específico da demissão da secretária. O elemento estrutural permanece intocável”.
Guilherme Delgado é doutor em Economia, pela Universidade Estadual de Campinas (Unicamp).
Confira a entrevista.
IHU On-Line - O que de mais significativo o senhor destaca no episódio da demissão de Lira Vieira, da Receita Federal?
Guilherme Delgado – Pelo que a própria secretária declarou e a mídia refletiu, aparentemente foram as cobranças sobre a Petrobrás e os grandes contribuintes do setor financeiro e industrial, o foco do problema que houve entre ela e o ministro da Fazenda, que teriam determinado a sua demissão. No entanto, eu não sei de detalhes, até porque isso não faz parte do enredo público da questão. Tudo indica que esse é o foco. O assunto declarado de queda na receita não tem relação com a situação. A queda na receita se deve a fatores gerais do desempenho da economia, da própria política de desoneração de alguns tributos, e não me parece que seja esse o ponto. Vejo que seria mais a questão da atenção voltada aos grandes contribuintes, sejam estatais ou empresas do setor financeiro e industrial.
IHU On-Line – Qual é o significado da afirmação de Lina Vieira de que o foco nos grandes contribuintes, os "tubarões brancos", como ela chama, "incomodou muita gente"?
Guilherme Delgado – Isso é preocupante, porque um servidor público que tem uma postura como ela vinha mantendo, no sentido de uma eficiência na arrecadação, um tratamento especial no sentido de atenção aos grandes monopólios, deveria merecer da parte do governo toda a prioridade. Porque é isso que faz parte de uma democracia: controlar os monopólios e ter um papel político e social de atenção ao interesse geral. Como observador, vejo isso com uma certa dificuldade e ansiedade, porque não me parece ser esse um caminho bom. No entanto, não sei se há outros motivos além desses que estou vendo.
IHU On-Line - O que podemos esperar de um governo que toma essa decisão?
Guilherme Delgado – Esse governo é o mesmo que promoveu o projeto de reforma tributária. Se formos aos fatos, ao invés de interpretar conjecturas, o que temos no Congresso, do ponto de vista da tributação, nos mostra uma reforma tributária extremamente elitista, que faz todo um tipo de simplificação, de exoneração e de busca de eficiência de arrecadação, mas sem nenhuma consideração no ponto de vista da justiça fiscal. Não há na Reforma Tributária, na PEC 233, de 2008, qualquer objetivo de melhoria na equidade da tributação. É uma reforma neutra do ponto de vista da equidade. Quem fez um projeto dessa natureza, não me surpreende que demita uma secretária que, provavelmente, estaria em uma linha contrária à da sua reforma tributária, que foi o caso. A secretária Lina não concordava com a Reforma Tributária, que, aliás, foi preparada pela equipe do senhor Bernard Appy, que foi secretário executivo do ministério da Previdência, ligado ao Antônio Palocci, e que continua tendo influência importante nesse campo da reforma do sistema tributário. E também me parece que há, aí, um choque de concepções e de interesses estratégicos. A secretária, assim como alguns outros setores do governo, não se antenaram à perspectiva de um modelo tributário convencional, como se costuma pensar no Brasil, que é a ideia de exonerar os ricos e onerar os pobres. E esse, aparentemente, é um modelo que está em disputa e em questão. Na grande mídia não se encontra espaço para essa discussão, porque ela não tem o menor interesse nisso. E a secretária entrou na contramão, porque dentro do governo também não conseguiu apoio para isso.
IHU On-Line - O senhor acredita em corrupção na Receita Federal?
Guilherme Delgado – Aí já estamos em um assunto sobre o qual não tenho domínio para avaliar. O que sabemos é que temos um sistema de conceder anistias fiscais, para as quais há pressões de toda a natureza para que se realizem repetidamente e da forma mais generosa possível. A anistia fiscal, embora não pareça, é um ato de apropriação indevida do tributo público, porque quem pagou normalmente não vai receber nada de volta. E quem sonegou tem um tratamento privilegiado. A cultura e a expectativa da anistia permanente é um ato de corrupção, não no sentido convencional, de roubo, mas no sentido de lesar o interesse público. Nessa perspectiva, me parece que essa cultura do perdão da dívida de sonegadores de forma sistemática, que esse governo vem executando continuamente, na tradição do governo anterior, é uma coisa ruim para a justiça fiscal. Assim como é ruim o projeto de reforma tributária que está no Congresso atual.
IHU On-Line - Em que sentido as situações apontadas pela ex-secretária Lina Veira denunciam a disparidade social em relação aos impostos no Brasil?
Guilherme Delgado – A secretária, em várias entrevistas que concedeu, mostra a tremenda disparidade da tributação no sentido da carga fiscal líquida. Isso continua completamente intocável. No Brasil ainda temos, basicamente, uma tributação sobre impostos indiretos, que incidem sobre o consumo, e este, por sua vez, tem uma concentração sobre as pessoas mais pobres muito maior do que sobre as pessoas mais ricas, que hoje são a minoria da população. Essa estrutura regressiva de tributação, que é a base tributária no Brasil, é caracterizada pelo fato de que os impostos do consumo são extremamente mais elevados do que os impostos sobre a renda e o patrimônio. E isso caracteriza uma situação de desigualdade na tributação. Essa situação, que acho que a secretária não concordava, e com a qual não concordam muitos outros que combatem o projeto de reforma tributária do governo federal, é o cerne da questão: quem vai arcar com o ônus de transferir ou deixar de transferir recursos para os pobres ou para os ricos? Um sistema tributário progressivo vai basicamente tributar rendimentos altos e valor de patrimônios altos, transferindo os recursos para as políticas públicas, principalmente as sociais. Um sistema tributário regressivo, como é o nosso, vai tributar os consumidores, que em sua maioria são pobres, ou de classe média, transferindo os recursos para diferentes destinações, tanto para as políticas sociais, quanto para as políticas econômicas, financeiras, etc. O cerne da questão da tributação e da transferência de renda é mais importante do que o fato específico da demissão da secretária. O elemento estrutural permanece intocável.
IHU On-Line - Como entender a revolta dos superintendentes da Receita Federal com a demissão de Lina Vieira? Qual a importância do fato de que mais de 90% deles são sindicalizados e têm atuação efetiva? Trata-se de atuação sindical ideológica dentro da Receita Federal?
Guilherme Delgado – Não me parece que as reações havidas dentro do sistema sindical, da Unafisco, em relação à demissão da secretária, se devam a motivos corporativos. Parece que se devem mais a motivos políticos, porque não foram razões corporativas que determinaram a sua demissão. Como vimos no começo da entrevista, o foco de ataque aos grandes monopólios, que é, me parece, o motivo, senão o único, o mais importante, que apontamos na condição de observadores públicos. Certamente, o não apoio que ela dá à reforma tributária oficial, que já era conhecido, deve ter pesado. O fato de ela prestigiar sindicalistas nas nomeações internas é um detalhe sobre o qual não tenho conhecimento para dizer se isso era bom ou mau. Mas se os sindicalistas estão cumprindo uma política boa, não há nada de errado nisso.
IHU On-Line - Em que sentido a Unafisco pode ser apontada como exemplo de sindicalismo no Brasil hoje?
Guilherme Delgado – A Unafisco é uma entidade, como outras do setor público, que representa servidores públicos. Essas entidades têm um caráter de relação com o trabalhador do serviço público dentro de um determinado extrato, que eu diria ser “de ponta”. Mas não representa o serviço público, em termos gerais. Este tem categorias do tipo A, B e C. A Unafisco está no tipo A. Acredito que ela seja um sindicato que cumpre um papel importante de representação na área de auditores, de arrecadação, e não me parece que o fato de apoiar a secretária, ou vice-versa, tenha algum viés negativo nessa história. Os problemas de corporativismo devem ser colocados em outro contexto, e não neste.
IHU On-Line - Que outros problemas aparecem neste episódio? Como fica a situação de Guido Mantega, por exemplo?
Guilherme Delgado – O ministro Mantega tem se caracterizado, desde o início, como uma pessoa que cumpre um papel sem muita autonomia. Ele veio para substituir Antônio Palocci, para executar uma outra política, mas como ele é uma pessoa da cota do presidente e a política do Palocci não era própria, mas do presidente, ele precisou fazer um trâmite permanente com o que há de mais atrasado no sistema de poder econômico do Brasil, que é um pouco a política do Banco Central. Esse é o dilema. Temos dois paradigmas de política econômica. Um, do BC, que é da estabilização pura, das metas de inflação e o crescimento como um detalhe, e outro que é a política de modernização, crescimento econômico e avanço do sistema como ele está, que é mais a linha do ministro Mantega. Esse compromisso, muitas vezes, tem que “conversar” com interesses muito atrasados no Brasil, inclusive com o interesse de sonegadores. Há outros setores que são muito atrasados e estão no bloco do poder, como os latifundiários, cujos interesses financeiros nem sempre são muito respeitadores da ordem fiscal. Então o governo, como um pacto de poder, navega nesse espaço e provavelmente é nele que a secretária não cumpriu ou não atendeu a certos interesses ou reclames da base aliada. Interpreto a situação assim.
Independente da secretária Lina, acho que o assunto importante sobre o qual o Congresso deve se manifestar no segundo semestre é a PEC 233 da Reforma Tributária, que, ao que tudo indica, o atual governo deve submeter à votação, ou, então, por razões políticas e de conveniência, abandonar. Aparentemente, o que vejo pelas iniciativas oficiais de conduzir os assuntos da reforma tributária independentemente, com a exoneração da folha do INSS, a questão da volta da CPMF com projetos específicos, a reforma tributária teria sido vencida e adiada para 2011, porque 2010 é ano eleitoral. Isso tudo tem uma leitura: o projeto que foi apresentado em 2008 é muito ruim do ponto de vista da distribuição de renda e da sua incidência sobre a seguridade social. Esse é um assunto que, talvez, incomodasse e tenha incomodado mais o governo durante o primeiro semestre do que propriamente a gestão da secretária Lina, que, por outras razões, bateu de frente com outras estratégias do governo e, portanto, provavelmente caiu por isso.
IHU On-Line – O senhor acredita que essa proposta de retorno da CPMF enfatiza a necessidade do governo de exercer um certo controle sobre os gastos?
Guilherme Delgado – A CPMF extinta é um tributo vinculado à movimentação financeira estritamente ligada à seguridade social. Quando se extinguiu o tributo, ele estava ligado à saúde e à previdência. Acontece que é preciso buscar recursos tributários de outras fontes para suprir os gastos, porque a despesa da saúde e da previdência social continua e continuará a ter a mesma velocidade e tamanho que tinha antes. A CMPF, em si, é uma contribuição vinculada a um sistema de direitos sociais, no qual, se extinguir a contribuição e não se extinguir os direitos é preciso buscar recursos de outras formas. A grande inovação negativa da reforma tributária é que ela iria limitar o tamanho do recurso da seguridade social, e aquilo que não coubesse no seu limite, não seria garantido. Era um investimento negativo. A CPMF, ou outro tributo que venha em sua substituição, acode a um determinado princípio ou demanda existentes.
Fonte:IHU
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