quinta-feira, 30 de julho de 2009

MÍDIA - Gilmar Mendes acabou com o jornalismo.

Celso Lungaretti

GILMAR MENDES ACABOU COM O
JORNALISMO, DIZ ALBERTO DINES

Alberto Dines, um dos maiores nomes da resistência jornalística à ditadura de 1964/85, é uma lenda viva da nossa (ex?) profissão.

Aos 77 anos de idade e mais de 50 de carreira, continua defendendo exemplarmente os valores humanísticos e os direitos dos cidadãos face à atuação cada vez mais crapulosa da indústria cultural.

É um privilégio continuarmos aprendendo com o mestre e seus artigos que simplesmente esgotam os temas abordados.

Caso de O tamanho do estrago, que está no ar no site do Observatório da Imprensa, sobre a lambança a que o Supremo Tribunal Federal foi compelido pelo reacionarismo e vedetismo do seu presidente Gilmar Mendes, ao decidir sobre o diploma de jornalismo.

Recomendando enfaticamente a leitura do artigo inteiro (acessar aqui), transcrevo os principais trechos:

No lugar de tornar o processo jornalístico mais claro, mais compreensível e mais eficaz, as duas decisões [do STF] – fim da Lei de Imprensa e da obrigatoriedade do diploma de jornalismo para o exercício da profissão – estabeleceram uma tremenda confusão.

A pretexto de restabelecer a normalidade democrática foram criados dois vácuos legais, rigorosamente injustificados, com enorme prejuízo para a magistratura que fica sem referências para a tomada de decisões e, principalmente, para a sociedade empurrada a um perigoso ceticismo no tocante à racionalidade da nossa Suprema Corte.

No caso do fim da obrigatoriedade do diploma para o exercício do jornalismo, a indústria jornalística foi parte, atuou direta e ostensivamente através de uma de suas entidades corporativas.

Agora, quando começa a ficar visível o tamanho do estrago produzido pela afoiteza da maioria dos ministros do STF, as empresas de comunicação engavetam qualquer tipo de reflexão sobre o ocorrido.

O voto do relator da matéria, ministro Gilmar Mendes, atual presidente do STF, deveria ser exposto, traduzido e discutido em detalhes.

O Meritíssimo partiu de uma premissa errada ao endossar a tese de que a exigência do diploma para o exercício do jornalismo constitui um entrave à liberdade de expressão. Entusiasmado com a sua cruzada libertária, acabou com a profissão de jornalista no Brasil.

Passou ao largo de diversos estatutos que sequer estavam mencionados na questão e passou uma borracha num pedaço da história política do país. (...) Agora, somos meros mestres cucas: quando nos for exigida uma qualificação profissional, basta escrever 'sem ofício conhecido'.

O enorme saber jurídico do relator-presidente do STF não o animou a estudar os antecedentes históricos do caso que o Estado colocara em suas mãos: ignorou que no Senado romano já existiam jornalistas (diurnarii ou actuarii, redatores das Actae Diurnae), ignorou a designação de "redatores das folhas públicas" consignada por Hipólito da Costa em junho de 1808 e, como grande apreciador da cultura alemã, ignorou que em Leipzig, 1690, um teólogo de nome Tobias Paucer apresentou uma tese de doutoramento, De relationibus novellis – O Relato Jornalístico – comprovando a sua especificidade e suas diferenças com outros gêneros narrativos. Segundo Paucer, a publicação de notícias (novellae) tem uma técnica e uma ética próprias.

Antes de determinar a extinção da profissão de jornalista confundindo-a simplisticamente com a questão do diploma, o ministro Gilmar Mendes deveria ter estudado a questão com mais cuidado e profundidade.

De nada adianta aquela formidável exibição de malabarismo jurídico nas 91 páginas do seu parecer, se o ministro Mendes não conseguiu compreender duas questões comezinhas e cruciais:

1. O fim da obrigatoriedade do diploma de jornalista para o exercício profissional é apenas um aspecto da questão. A especificidade da profissão de jornalista é outra. O ministro Gilmar Mendes sabe que as grandes empresas jornalísticas mantêm há décadas cursos de aperfeiçoamento para formandos de jornalismo. Viu neles apenas uma prova da deficiência acadêmica, não conseguiu enxergar neste mesmo fato a demonstração cabal de que a própria indústria reconhece a especificidade do conhecimento para o exercício do jornalismo.

2. Ao aceitar a ação proposta pelo Ministério Público Federal e o Sertesp, o ministro Mendes caiu na armadilha armada pelo seu vasto arsenal de conhecimentos. No final da argumentação, faz pesada carga contra as empresas de comunicação:

"No Estado democrático de Direito, a proteção da liberdade de imprensa também leva em conta a proteção contra a própria imprensa".

Ora, se a imprensa está envolta em suspeições por que razão Sua Excelência endossa as teses de uma corporação empresarial ainda mais suspeita?

"...hoje não são tanto os media que têm de defender a sua posição contra o Estado, mas, inversamente, é o Estado que tem de acautelar-se para não ser cercado, isto é, manipulado pelos media..."

"...os meios de comunicação de massa já não são expressão da liberdade e autonomia individual dos cidadãos, antes relevam dos interesses comerciais ou ideológicos de grandes organizações empresariais, institucionais ou de grupos de interesse."

"...o exercício da atividade jornalística está invariavelmente associado à mobilização de recursos e investimentos de peso considerável. O que, se por um lado resulta em ganhos indisfarçáveis de poder, redunda ao mesmo tempo na submissão a uma lógica orientada para valores de racionalidade econômica."

Como explicar tamanha contradição? Como conciliar este arrasador ataque aos grandes grupos de comunicação com o generoso acolhimento dos argumentos propostos por um sindicato de empresas do ramo beneficiadas por concessões públicas e notoriamente desatentas aos seus compromissos sociais?

Esquizofrenia ideológica, exercício de retórica jurídica ou a certeza de que este relatório jamais seria publicado na íntegra em veículos de grande tiragem? Qualquer que seja a explicação – certamente haverá outras menos drásticas – flagrou-se a precariedade do processo decisório vigente nesta República.

O fim da exigência do diploma era uma fixação do empresariado jornalístico, obsessão alimentada pela má consciência do patronato durante os 21 anos de regime militar. Em 1985, ao invés da purgação saneadora, a exacerbação dos piores instintos acaba por extinguir a própria profissão de jornalista.

A indústria e os industriais do jornalismo finalmente desfizeram-se dos industriários. Com o twitter são perfeitamente dispensáveis. Como diz José Saramago, com o twitter nos encaminhamos decisivamente para o grunhido. E o STF oferece o suporte legal.

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