quinta-feira, 23 de julho de 2009

DEMOCRATIZAÇÃO CULTURAL X DEMOCRATIZAÇÃO DA CULTURA.

Lima: "A capoeira pode dialogar com a formação de atores? Claro que sim"
Paulo Costa Lima
De Salvador (BA)

cultura + democracia = educação
educação + democracia = cultura
cultura + educação = democracia

O que vai acontecer com a gente brasileira? Sempre me faço essa intrigante questão andando pelas ruas da cidade. Lembro de Jabor dizendo que quando era criança imaginava a reversão das favelas. E constato o quanto está posto para ser resolvido (ou não) pela democracia.

Mastigo resignadamente as palavras de Cazuza sobre essa droga que já vem malhada... Mostra tua cara. Quem é que paga pra gente ficar assim?

Aparentemente, e só aparentemente, sabemos o que é democracia. Na época da ditadura parecia mais fácil, e até hoje enfrentamos problemas com a clareza do que seja "coisa pública", e da ética inviolável a ela associada. Pra início de conversa não tem fórmula. Precisa ser inventada junto com o caminho.

Por exemplo: o que seria democracia na cultura? Que coisas precisariam acontecer para que tal conjugação fosse possível? Mas veja como a linguagem engana. Não poderia ser "conjugação" - porque essa palavra se refere a duas coisas distintas. Se a cultura fosse uma coisa, e a democracia outra, uma das duas seria caolha, aliás, ambas .

É também por isso que a expressão "cultura popular" deixou de fazer sentido (idem para cultura erudita). Ambas veiculam uma idéia de cultura menor do que o todo.

Não se trata, portanto, de defender a estranha figura da "democratização da cultura" - pois ela supõe que a cultura pré-existe com relação ao processo. No âmbito dessa empreitada haveriam produtos e vivências privilegiados a serem distribuídos na sociedade. O modelo esquece que para fazer jus à palavra cultura, os participantes também precisam ser criadores em potencial.

A única forma de sair desse imbróglio é falar de democracia cultural - necessariamente uma espécie de amálgama, onde uma coisa personifica a outra. Onde uma coisa vai sendo reconstruída como função da outra. E onde o horizonte buscado é o do cidadão com potencial de criação e fruição crítica.

Escolhi cuidadosamente a idéia de "reconstrução" para deixar bem claro que na montagem desse amálgama todos os repertórios precisariam estar abertos à flexibilização, não existindo garantia prévia de estabilidade dos repertórios, mas também nenhuma restrição.

A capoeira pode dialogar com a formação de atores? Claro que sim. Por que ainda não desenvolvemos algo revolucionário nessa direção? O chamado "design popular" pode iluminar eventos de moda e teses de doutorado? Os mestres de percussão do candomblé podem interferir profundamente na música contemporânea? Observe bem que não estamos falando de misturas e sim de amálgamas. E como é que tudo isso incide sobre a escola?

Se a gente brasileira conseguir andar adiante, será para construir mais (ou pelo menos alguma) autonomia responsável. A palavra "responsável" vai por conta da destruição do planeta (a consciência de caminhos alternativos), e a autonomia aí na frase representa o desenvolvimento em sua plenitude. Não há como fugir disso.

Qualquer coisa que chamemos de democracia cultural - e a rigor não precisamos de duas palavras - deverá dialogar com esse horizonte, ou talvez melhor, dialogar de dentro dele. A pergunta é justamente essa: quais os processos que facilitariam essa caminhada? Uma pergunta tão vasta e tão necessária.

Como artistas, somos treinados a fazer perguntas de dentro dos nossos campos. Como desenvolver a música (?), grupos de excelência, cadeia produtiva, novos mercados ou campos teóricos etc. Essas perguntas são legais e importantes - mas é preciso cuidado para não pensar que elas definem sozinhas as prioridades. Como se a cultura só pudesse ser concebida a partir dos problemas da música (por exemplo).

Ora, a música não tem problemas, e sim as pessoas. Um problema musical só faz sentido quando há pessoas à sua volta, significando-o. Equivale a dizer que os problemas musicais/culturais têm historicidade e peso estratégico (político). Algo está muito errado com os caminhos da especialização radical.

Obviamente a favela - como parâmetro de referência das zonas onde a nação ainda não se fez presente como deveria - não pode ser parâmetro exclusivo, mas exige que pensemos a cada passo se as soluções propostas a contemplam. A favela precisa estar incluída nos diagnósticos e soluções.

Vale lembrar que a música de Cazuza foi feita há mais de duas décadas - num tempo onde o número de lideranças populares, de gestores populares, era bem menor que o de hoje. Houve avanços. O que vai ou não acontecer com a gente brasileira depende justamente dessa capacidade de criar lideranças confiáveis.

Não é coisa fácil. Já conheci muitos líderes comunitários. Enfrentam problemas de muitos tipos: dificuldade de mobilização e sustentabilidade de suas lideranças (credibilidade da idéia de mudança, e de democracia), violência circundante, apelos de alienações diversas - das proporcionadas pela mídia global aos caminhos populistas ou simplesmente corruptos, e por aí vai.

Mas, de alguma forma, nessa mesinha colocada no meio do barracão - onde logo mais acontecerá a reunião da associação cultural unidos do jardim esperança - está também colocado o destino da gente brasileira.

Mais do que pungente, o desafio envolve conectar mundos aparentemente isolados (e esse isolamento esplêndido é o nome de nossa tragédia) - as decisões "culturais" da grande mídia, dos produtores e celebridades, as decisões culturais das universidades, as políticas de governo - e, principalmente, pairando sobre tudo isso, a construção de um processo político virtuoso.

Ah! Que junção extremosa entre essas duas palavras: virtude e política. Então é disso que se tratava o tempo todo?! De um processo dessa magnitude? Muito mais amplo que "políticas públicas" de cultura - cuja flexão republicana nos últimos anos tem dado tanto rebu - imagine pegar o touro completo pelos chifres?

Mas é disso que se trata. Não podemos escapar da realidade e do desafio de embutir em todas as decisões esse vetor tão óbvio e historicamente invisível: o todo da gente brasileira. Como é que transforma isso em coisa concreta, espantando qualquer miasma de discurso festivo?

Alguns respondem com aquela famosa chave de ouro: educação. Está certo, mas remete a médios e longos prazos. Eu queria uma solução pra ontem, ou pelo menos, pra já...
Fonte:Terra Magazine.

Nenhum comentário: