“Lembro das primeiras horas de tortura. Os agentes não puseram capuz em mim e aquilo representava uma sentença de morte”. Aos 70 anos, Aurélio Peres ainda lembra com detalhes dos dias em que esteve preso. Hoje, o ex-militante do PCdoB e primeiro operário eleito deputado no pós-ditadura comemora, no prédio da Estação Pinacoteca – onde funcionou o Departamento Estadual de Ordem Política e Social – o fato de finalmente ter ouvido do Estado o pedido de perdão pelos males que lhe foram causados.
Priscila Lobregatte
Aurélio Peres - anistia - 11/09/09
Peres relata sua história
Sua anistia foi anunciada nesta sexta-feira, 11, no Memorial da Resistência, na Estação Pinacoteca, em São Paulo, em mais uma sessão temática da Caravana da Anistia que reuniu 14 casos de paulistas perseguidos pela ditadura militar. Com isso, Peres receberá uma prestação mensal continuada de 3 mil reais – referentes ao cargo que ocupava como operário quando teve de se afastar de suas funções – além de reparação retroativa em torno de 236 mil. “Fico muito feliz, mas a reparação econômica é secundária. Mais importante é saber que o Brasil reconheceu que nos perseguiu”, declarou Peres em conversa com o Vermelho depois do anúncio.
Conhecido na época da repressão pelo codinome de Xavier, Peres era metalúrgico em São Paulo. Sua via-crúcis começou em 1973, quando, no 1º de Maio, leu uma carta do movimento das mães contra o alto custo de vida. No ano seguinte, uma colega de trabalho foi presa.
Militante comunista e amedrontado pelas perseguições que assistia, Peres entrou para a clandestinidade com a mulher, Maria da Conceição Peres e dois filhos. Ainda assim, foi preso em setembro de 1974. “O requerente narra que foi barbaramente torturado e após uma semana de sua prisão foi posto em liberdade em virtude de o cardeal Dom Paulo Evaristo Arns ter intercedido a seu favor”, relata o requerimento da Comissão de Anistia.
Apesar de ter sido libertado, Peres voltou a ser preso mais tarde. “Então, eles passaram a usar capuz e me torturaram por 27 horas seguidas. Queriam que eu entregasse os companheiros do partido, especialmente o Antonio Alves, o Bauru”, lembra.
No processo que culminou com a Anistia e, mais tarde, a redemocratização, Aurélio Peres candidatou-se a deputado federal pelo MDB, partido que abrigou vários comunistas e militantes de esquerda num período em que seus partidos continuavam impossibilitados de funcionar. Ele conta que “foi uma candidatura de protesto” e por pouco não conseguiu registrá-la. Apesar de legalmente libertado pelo regime, ainda havia um processo seu pendente em Brasília. “Por isso eu não poderia ser candidato. Mas, o (advogado Luiz Eduardo) Greenhalgh conseguiu pôr o meu processo na ordem do dia no tribunal e fui julgado a apenas dois dias de se encerrar o prazo para registro de candidatura”.
Eleito pela primeira vez em 1978 após essa corrida contra o tempo, Peres foi o primeiro operário comunista a pisar na Câmara após a instalação da ditadura militar. “Não era fácil atuar por um partido que não era o meu, mas havia muito respeito. E como representante da classe trabalhadora, ninguém me segurava”, brinca. Mas, recorda: “mesmo eleito, ainda fui detido outras oito vezes. Traziam-me para o Dops e o (Romeu) Tuma me liberava”. Seu segundo mandato foi exercido entre 1984 e 1987. Depois, afastou-se da política e resolveu voltar a trabalhar então como funcionário da Eletropaulo.
“Nossa luta valeu a pena e sempre soube disso. O Brasil hoje, embora ainda não viva uma democracia plena, embora ainda não seja uma sociedade igualitária, garante o direito de os trabalhadores se organizarem, de se expressarem. Ainda há muito que fazer”, diz.
Vital Nolasco, que conviveu de perto com Peres e hoje é secretário de Finanças do PCdoB, recorda que “naquela época éramos execrados dentro de nosso próprio país e a opinião pública, manipulada pelo regime, de nada sabia. Por isso, a anistia desses lutadores é uma grande conquista do povo, um fato de peso histórico para a construção de nosso futuro”.
“Inimigo número um”
Outro personagem da resistência anistiado ontem é Antonio Carlos Fon (foto). Preso pela primeira vez em 29 de setembro de 1969 juntamente com seus pais e irmãos por sua atuação na ALN, Fon foi libertado apenas 50 dias depois. Ele passou pela Oban, pelo Dops e ainda pelo Presídio Tiradentes e durante esse período, foi torturado. “Narra que fora vítima de infindáveis perseguições, chegando a receber ameaças de morte do delegado Sergio Fleury, o qual, segundo o requerente, considerava-o seu inimigo número um, pelas matérias feitas pelo requerente junto ao Jornal da Tarde, denunciando o Esquadrão da Morte”, diz seu processo na Comissão de Anistia.
Mais tarde, foi trabalhar na revista Veja. São de sua autoria duas matérias que denunciavam as torturas e os grupos armados do Doi-Codi e Oban: “Descendo aos porões” e “Um poder nas sombras”, ambas da edição de 21 de fevereiro de 1979. Por isso, respondeu a um IPM e foi demitido da Editora Abril.
Fon também foi vencedor do primeiro prêmio Vladmir Herzog de Anistia e Direitos Humanos em 25 de outubro de 1979, logo após ter sido demitido da revista. “Verifica-se, portanto, que a demissão do requerente se dera por motivação política, por este denunciar as torturas e a violação de direito aos presos políticos, configurando-se, portanto o nexo entre a perda do vínculo e a motivação política”, concluiu o requerimento da Comissão de Anistia.
O anistiado lembra que a Editora Abril “ganhou muito dinheiro com a ditadura imprimindo livros para o Mobral (Movimento Brasileiro de Alfabetização)”, um dos motivos que a levaram a não querer continuar tendo problemas com os ditadores, passando assim a afastar de sua redação jornalistas que denunciavam a ditadura.
O jornalista – que também passou por O Dia, Diário Popular e O Estado de S. Paulo – explica que “o fundamental da anistia é resgatar a história”. “Nunca pedimos indenização, mas a anistia, a abertura dos arquivos, o julgamento dos torturadores, a localização dos desaparecidos”. Com um broche de Maringuela no terno, Fon diz que “não tem nada que pague entrar neste prédio, onde funcionou o Deops, sendo finalmente anistiado”.
Golpismo da imprensa
Antonio Carlos Fon critica ainda o papel da grande imprensa hoje. “Temos um processo interessante na América Latina: os veículos de comunicação, como os partidos de extrema direita de outrora, passaram a fomentar golpes. Foi assim na Venezuela, na Bolívia, no Equador e mesmo na Argentina. No Brasil, a mídia também tentar sucessivamente golpear nossa democracia. E a Veja é a ponta de lança desse processo golpista”.
A formação dos profissionais, segundo ele, também “mudou para pior”. “O filho do operário não pode ir para as redações. A então exigência do diploma era como um pedágio para se adentrar as redações. O resultado é que a imprensa virou um antro da classe média com a ajuda dos canalhas trotskistas, que têm um discurso radical, mas na verdade trabalham para a burguesia”, enfatiza Fon.
Comunista desde os 14 anos – “quando ainda não sabia direito o que era ser comunista” – Fon diz que sente estar vivendo um importante momento da democracia brasileira. “Apesar de ainda muito limitado, este é o melhor governo que vi nos meus 63 anos de vida”.
Presente à sessão da Comissão de Anistia, o vereador Jamil Murad (PCdoB), ressaltou que “esse é um resgate real da justiça, é o testemunho de que a luta vale sempre a pena; espero que os exemplos desses anistiados sirvam para inspirar gerações e mais gerações de brasileiros que continuam lutando pela democracia e pela soberania do país”.
De São Paulo,
Priscila Lobregatte/Site O Vermelho.
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