Brasil de Fato.
por Michelle Amaral da Silva última modificação 11/09/2009 17:42
Colaboradores: François Houtart.
Como sempre se ignora o que não entra no cálculo do mercado, os danos ecológicos e sociais
François Houtart
A ideia de ampliar o cultivo dos agrocombustíveis no mundo e particularmente nos países do sul é desastrosa. Ela faz parte de uma
perspectiva global de solução à crise energética. Nos próximos 50 anos, teremos que mudar o ciclo energético, passando da energia fóssil, que é cada vez mais rara, para outras fontes de energia. No curto prazo, é mais fácil de utilizar o que é imediatamente rentável. Esta solução, ao reduzir as possibilidades de investimento e ao esperar ganhos rápidos, parece ser a mais requerida, à medida em que se desenvolve a crise financeira e econômica.
Como sempre, em um projeto capitalista, se ignora o que os economistas chamam de externalidades, ou seja, o que não entra no cálculo do mercado, os danos ecológicos e sociais. Para contribuir com uma porcentagem entre 25 a 30% da demanda, a solução da crise energética terá que utilizar centenas de milhões de hectares de terras cultiváveis para a produção de agroenergia em sua maior parte no Sul, já que o Norte não dispõe superfície cultivável suficiente. Ao menos 60 milhões de camponeses devem ser expulsos de sua terra, segundo estimativas. O preço destas “externalidades” não é pago pelo capital, mas pela
comunidade e pelos indivíduos. É espantoso.
Os agrocombustíveis são produzidos na forma de monocultura, destruindo a biodiversidade e contaminando os solos e a água. Pessoalmente, tenho caminhado quilômetros nas plantações do Choco, na Colômbia, e não tenho visto nem uma ave, nem uma mariposa, nem um peixe nos rios, em função do uso de grandes quantidades de produtos químicos, como fertilizantes e
praguicidas. Frente à crise hídrica que afeta o planeta, a utilização da água para produzir etanol é irracional. Para obter um litro de etanol, a partir do milho, se utiliza entre 1200 e 3400 litros de água. A cana-de-açúcar também necessita de enormes quantidades de água. A contaminação dos solos e da água chega a níveis até agora nunca conhecidos, criando o fenômeno de “mar morto” nas desembocaduras dos rios (20 Km² na desembocadura do Missippi, em grande medida causado pela extensão da monocultura de milho destinado ao etanol). A extensão dessas culturas acarreta numa destruição direta ou indireta dos bosques e selvas que são como poços de carbono por sua capacidade de absorção.
O impacto dos agrocombustíveis sobre a crise alimentar tem sido comprovado. Não somente sua produção entra em conflito com a produção de alimentos, em um mundo onde, segundo a FAO, mais de 1 bilhão de pessoas sofrem de fome, mas também tem sido um elemento importante da especulação sobre a produção alimentar dos anos 2007 e 2008. Um informe do Banco Mundial afirma que, em dois anos, os 85% de aumento no preço dos alimentos foram influenciados pelo desenvolvimento da agroenergia. Por essa
razão, Jean Ziegler, durante seu mandato de Relator Especial das Nações Unidas pelo Direito à Alimentação, qualificou os agrocombustíveis de “crime contra a humanidade” e seu sucessor, o belga Olivier De Schutter, tem pedido uma moratória de cinco anos para sua produção.
A extensão da monocultura significa também a expulsão de muitos camponeses de suas terras. Na maioria dos casos, isso se realiza pela estafa ou pela violência. Em países como a Colômbia e Indonésia, se recorre às Forças Armadas e aos paramilitares, que não têm dúvida em massacrar os defensores de suas terras. Milhares de comunidades autóctonas, na América Latina, na África e na Ásia são deslocadas de seu território ancestral. Dezenas de milhões de camponeses já estão sendo deslocados, sobretudo no Sul, em função do desenvolvimento de um modo produtivista da produção agrícola e da concentração da propriedade
de terra. O resultado de tudo isso é uma urbanização selvagem e uma pressão migratória tanto interna quanto internacional.
É necessário, igualmente, dizer que o salário dos trabalhadores está sob as condições de trabalho geralmente sub-humanas, em função das exigências de produtividade. A saúde dos trabalhadores é também afetada gravemente. Durante a sessão do Tribunal Permanente dos Povos sobre as empresas multinacionais europeias na América Latina, realizada paralelamente à Cúpula europeia-latino-americana, em maio do 2008, em Lima, foram apresentados muitos casos de crianças com má formação, devido à utilização de produtos químicos na monoculura de banana, soja, cana-de-açúcar e de palmito.
Dizer que os agrocombustíveis são uma solução para o clima está igualmente na moda. É verdade que a combustão dos motores emite menos anidrido carbônico na atmosfera, mas quando se considera o ciclo completo da produção da transformação e da distribuição do produto, o balanço é mais atenuado. Em certos casos, se converte em negativo em relação à energia fóssil.
Se os agrocombustíveis não são uma solução para o clima, se não são o que mitigam a crise energética, e se eles acarretam importantes consequências negativas, tanto sociais como ambientais, temos o direito de perguntar porque eles têm tanta preferência. A razão é que, a curto e médio prazo, eles aumentam de maneira considerável rápida a taxa de lucro do capital. É por isso que as empresas multinacionais de petróleo, de automóvel, da química e do agronegócio se interessam pelo setor. Eles
têm como sócios o capital financeiros (George Soros, por exemplo), os empresários e os latifundiários locais, herdeiros da oligarquia rural. Então a função real da agroenergia é, em efeito, ajudar a uma parte do capital a sair da crise e a manter ou, eventualmente, aumentar sua capacidade de acumulação. De fato, o processo agroenergético se caracteriza por uma superexploração de trabalho, pelo não-conhecimento das externalidades, pelas tranferências de fundos públicos para setor
privado. Tudo isso permitindo o lucro rápido e uma hegemonia de empresas transnacionais. No que concerne aos governos do Sul, eles veem aqui uma fonte de divisas úteis de manter, entre outros, o nível de consumo das classes privilegiadas.
Portanto, a solução é de reduzir o consumo, sobretudo do Norte, e de investir em novas tecnologias (solar especialmente). A agroenergia não é um mal em si e pode aportar soluções interessantes em nível local, a condição de respeitar a biodiversidade, a qualidade dos solos e da água, a soberania alimentar e a agricultura campesina, é dizer, o contrário da lógica do capital. No Equador, o presidente Correa vem tendo a coragem de deter a exploração do petroléo da reserva natural do Yasuni. Esperamos que os governos progressistas da América Latina, da África e da Ásia tenham a mesma firmeza. Resisitir tanto no Norte como no Sul à
pressão dos poderes econômicos é um problema político e ético. Portanto, denunciar o escândalo dos agrocombustíveis no Sul se constitui em um dever.
* Ex-catedrático da Universidade Católica de Lovaina, fundador do Centro Tricontinental e autor do livro “A Agroenergia-Solução para o clima ou saída de crise para o capital?”
Fonte:Márcia e suas leituras.
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