Frei Betto
Adital
Aluno, em 1964, do curso de jornalismo; ficava a escola no Rio, próxima ao aterro do Flamengo, então um canteiro de obras. Ali pastavam animais de carga.
Um grupo de colegas, no qual me incluía, não suportava o tom laudatório do professor Hélio Vianna ao se referir ao marechal Castelo Branco, seu cunhado, e primeiro a ocupar a presidência em nome da ditadura. Decidimos pregar-lhe uma peça. Sequestramos um burro no aterro e o enfiamos na sala de aula.
No corredor do andar de cima, ficamos a observar a reação do professor de história. Hélio Vianna entrou na sala e, para a nossa decepção, ali permaneceu, em companhia do muar, durante 50 minutos. Dado o sinal, retirou-se impassível, sem demonstrar contrariedade ou queixar-se à direção. Deu mais trabalho fazer o burro descer do que subir os degraus da faculdade.
Na semana seguinte, o episódio parecia mergulhado no olvido. Hélio Vianna entrou em classe e - novo desaponto - não nos passou nenhuma reprimenda. Deu aula como se nada tivesse acontecido. Nos últimos minutos, advertiu-nos: "Aviso aos senhores e senhoras que, semana próxima, haverá prova. Peguem os pontos com o único colega que, na aula passada, se encontrava em classe". E mais não disse.
Como estudar para a prova sem a menor noção da matéria indicada? Na dia fatídico, o professor pediu-nos uma dissertação, por escrito, de como o tesouro da Holanda havia sido afetado pela invasão holandesa no Nordeste brasileiro. Zero geral.
Burros fomos nós.
O CAFÉ
Meu avô deu aulas na Escola de Minas, em Ouro Preto. Certa noite, achou por bem visitar um francês que chegara como professor convidado. A conversa alongou-se através da Minas colonial, com o anfitrião interessado em ouro, Tiradentes, Aleijadinho e quejandos.
Fazia-se tarde quando o visitante apresentou despedidas. O francês, muito educado, indagou-lhe em carregado sotaque: "Toma um café?" Meu avô assentiu e voltou a se acomodar na poltrona. A conversa ganhou ânimo e nada de café, nem sequer o aroma que costuma antecipar-se à chegada do bule. O visitante, de novo, despediu-se. O professor, de novo, perguntou: "Toma um café?" Por delicadeza, meu avô tornou a aceitar.
Ocorre que o anfitrião não se moveu da sala e tudo indicava que vivia ali sozinho. Não havia o menor sinal de movimento na cozinha. Por obra de que santo milagreiro surgiria o café?
Inquieto com o avançar das horas, meu avô apresentou despedidas definitivas, não sem antes ouvir a recorrente oferta. Desta vez, pretextou que a rubiácea escaldante lhe roubava o sono e partiu intrigado.
Dias depois, o francês abordou meu avô na escola. Apresentou-lhe escusas e explicou: estudara português com a ajuda de manual. Constava ali que, no Brasil, era de bom-tom indagar da visita antes dela se retirar: "Toma um café?" Só não se deu conta de que não se tratava de uma expressão idiomática...
FILOSOFIA
No curso de filosofia, em São Paulo, tive um professor cuja pedagogia primava pela irreverência, ao contrário de outros da mesma matéria que, por considerá-la profunda, revestem-se de uma sisudez que mais espanta do que atrai.
O professor tinha por hábito escalar os filósofos como um time de futebol: pré-socráticos contra os socráticos; árabes em desafio aos cristãos; medievais na disputa da taça Sofia com os modernos; contemporâneos dialéticos versus contemporâneos analíticos.
O mais curioso - o que nos facilitava o aprendizado - era o modo dele tratar os filósofos: Pluto era Platão; Ari, Aristóteles; O Gordo, Tomás de Aquino; O das Cartas, Descartes; Chico Toucinho, Francis Bacon; O Espinhoso, Spinoza; Mané do Canto, Kant; Chope Raia, Schopenhauer; Nítido, Nietzsche; O Régua, Hegel; Guto Conta, Comte etc.
Assim, a filosofia deixou de ser, para nós alunos, um mistério, para ser o que é: uma análise racional e crítica da realidade.
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