O futebol sem Ronaldo.
Sávio Siqueira.
De Salvador (BA)
Está no ar e no mundo a notícia da aposentadoria do craque Ronaldo dos campos de futebol. Embora não soe como novidade, devido ao desempenho sofrível que o jogador vinha apresentando no Corinthians, não podemos deixar de lamentar a partida de um dos maiores ídolos da bola que o Brasil produziu. Depois de Pelé, não há no planeta outro brasileiro mais conhecido que Ronaldo, outrora Ronaldinho, até perder a alcunha para o xará Gaúcho. Ronaldo se vai e deixa uma lacuna enorme para aqueles que enxergam na sua trajetória um sucesso estrondoso, ainda que interrompida várias vezes por conta do verdadeiro calvário que as contusões o impuseram. É a esse calvário que Ronaldo hoje sucumbe de vez.
Há, como se sabe, profissões várias com prazo de validade curtíssimo, quase efêmero. Jogador de futebol, modelo, corredor de F-1, atletas em geral. Todos os anos, muitos deles ascendem e outros tantos se afastam dos espaços, pistas e arenas sem sequer nos darmos conta. No reino do futebol, o bravo Washington, ex-centroavante do atual campeão brasileiro Fluminense, foi um dos últimos. A comoção, claro, contagiou quem esteve com ele na despedida, mas nada que afetasse uma nação inteira. Guga parou, Romário, Joaquim Cruz, Oscar, Hortência, Popó. Todos pararam. A gente sentiu, é verdade, mas Ronaldo é Ronaldo. Em princípio, é difícil digerir a ideia de que não teremos mais um gênio como ele em campo, mesmo sabendo que, como o próprio jogador afirma, o corpo não mais atende aos comandos da mente. Ronaldo em campo era tudo o que se queria ver.
Lamentamos profundamente por esse dia, mas o que deve-se exaltar no momento é que Ronaldo, o menino pobre do subúrbio carioca, hoje um dos aposentados mais privilegiados do mundo, enquanto esteve em forma, foi brilhante e deu ao torcedor aquilo que mais se espera no futebol: a alegria de ver o seu time ganhar. Muita gente, apelando para o melodrama barato, argumenta que fomos injustos com Ronaldo agora na reta final, ao reclamarmos do seu excesso de peso e de sua apatia constante nos gramados. Acostumados que estávamos com um desempenho fora do comum, praticamente ninguém atentou para o detalhe de que, ao chegar ao Corinthians, sob grande celebração, estávamos praticamente fadados a conviver com um Ronaldo em pleno ocaso profissional, mas que, mesmo assim, ainda deu àquela torcida ultra-apaixonada dois títulos importantes em dois anos de contrato.
O Brasil não para de revelar talentos no futebol e em idade cada vez mais tenra. Da mesma forma que eles surgem, quase no nascedouro, e por conta da indústria que também engoliu o futebol, esses garotos são de imediato levados para os centros onde se investe pesadamente em treinamento e em planejamento profissional, e os transforma em valorizadas mercadorias no bazar global da bola. Muitos ficam milionários, outros, nem tanto. Mas quando já não têm aquilo que satisfaz o apetite das massas consumidoras (uma analogia com os gladiadores aqui não seria de todo absurda), eles começam a pensar no caminho de regresso. E aí nós, tupiniquins conformados, ficamos com as migalhas da repatriação tardia, já que parece ser esta a única fatia que passou a nos caber na lógica nefasta do capitalismo global na referida área. Não é à toa que praticamente todos os nossos grandes do futebol contemporâneo optam por dar os últimos suspiros de suas carreiras no Brasil. Degustado o filé, ficamos nós, os criadores, aqui com o chupa-molho que resta da criatura. Com Ronaldo não seria diferente.
Se o corpo de Ronaldo rendeu-se às lesões e demandou um sonoro "basta", temos que congratulá-lo por, aparentemente, ter mantido a mente sana ao longo dos seus quase vinte anos de futebol profissional e de assédio sem trégua. Não acredito que tenha havido jogador mais vigiado e noticiado que Ronaldo, principalmente no tocante à sua vida privada. Esperto em saber aproveitar bem todas as benesses e facilidades que o dinheiro proporciona, ele não fez diferente dos seus muitos colegas de profissão. Adquiriu bens caros, sofisticou o gosto e a aparência, desfrutou da companhia e dos chamegos de mulheres deslumbrantes, envolveu-se em polêmicas, descobriu-se pai incidental. Nesse ponto, Ronaldo foi igual a quase todos. Felizmente, ao contrário de alguns, salvou-se de enfiar o carrão numa árvore qualquer da Lagoa Rodrigo de Freitas ou deixar-se levar pelas mazelas do álcool. Neste ponto, com perdão do trocadilho, ponto para Ronaldo.
Trabalho não vai faltar a Ronaldo. Continuará a ser um dos galáticos do futebol mundial e um cobiçado aposentado aos 30 e poucos anos. Com um oceano de dinheiro para dar algum destino, não terá trégua, não escapará da fúria incansável e irascível dos infames paparazzi. Nem que queira, o mundo tosco das celebridades lhe deixará em paz. Certamente, saberá usar sua imagem em prol de si mesmo e angariará mais e mais riqueza. Como também flana pelo reino dos clichês, comandará uma fundação para ajudar crianças pobres. Seguirá o caminho de alguns de seus colegas que, envoltos em suas culpas, descobriram-se, digamos, socialmente sensíveis. Não fará nada mais de criativo, não escreverá um livro nem lerá poesia, pois a genialidade que a vida lhe deu, a própria vida acaba de lhe ceifar. Voltará ao plano dos mortais, mas tendo via memórias a deferência da eternidade. Não é pouca coisa para um jogador de futebol.
Em suma, a despedida de Ronaldo não deixa de ser um evento triste para quem gosta do bom futebol. Com ou sem a desclassificação da Libertadores, sabíamos que, muito breve, o "Fenômeno" seria obrigado a atender aos ditames de um físico debilitado. A bola, amiga íntima, já lhe era um fardo, uma estranha. A paciência dos corintianos explodira. E aí, em nome de uma paixão ensandecida, com baixíssima tolerância a derrotas e humilhações, nem supercraques como Ronaldo são (e devem ser) poupados da cobrança. Nesse aspecto, o coração de quem se entrega ao futebol é cruel e loucamente parcial. Não respeita história, glória, alegrias passadas. Ronaldo tinha tudo isso e se vai. A torcida não mais chora, renova a esperança de que venham outros "Ronaldos" em melhores condições. Essa é a lógica do futebol. Essa é a lógica da vida. Tudo passa. E a vida se renova. Ronaldo passa. Eu passo. Nós passamos. Sentimos muito, mas Ronaldo passou. Passava da hora. O futebol sem Ronaldo, por algum tempo, será menos belo. Por algum tempo.
Terra Magazine
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