Raciocinação ideológica
Fonte: Folha de São Paulo
Autor: Leda Paulani
"Ortodoxos repetem chavões como se fossem verdades científicas. Eles creem que se governa um país como se gere uma casa"
Por viver em país que ainda não se construiu
como nação, penso que não há razão que justifique o nível atual da taxa
de juros; que falar em excesso de demanda com a economia patinhando há
quatro anos beira o nonsense; que não há razão que justifique sermos
sempre culpados de "não fazer a lição de casa" em razão de uma relação
dívida/PIB de 34% (fora reservas), quando a do Reino Unido é 100% e a do
Japão é 230%!
Frank Hahn, nome dentre
os maiores no desenvolvimento da teoria que busca demonstrar o
virtuosismo dos mercados em sua vocação para o equilíbrio, asseverou nos
anos 1990 que a ciência econômica que se compraz com teoremas e axiomas
está com os dias contados.
Ademais, afirmou que
quem insiste nessas ladainhas age como adepto de religião, tanto mais
ortodoxo ficando quanto mais visíveis são os sinais do declínio de sua
igreja.
A surpreendente
afirmação me veio à mente ao ler, em suas colunas nestaFolha, as
críticas de Samuel Pessôa e Alexandre Schwartsman à entrevista que dei
ao "Valor Econômico" em 23 de abril. Dentre afirmar que desconheço os
dados, sugerir irracionalidade em minha argumentação e perguntar em que
mundo vivo, todos os estratagemas foram utilizados para desqualificá-la.
A reação não é
despropositada: atingindo o coração dos dogmas que sustentam a
macroeconomia nossa de cada dia, essa que a mídia repercute à exaustão e
se tornou a bíblia dos mercados, questionei o furor ortodoxo com o
resultado primário negativo ocorrido em 2014.
Dado que o superavit
primário integra a santíssima trindade da crença, a par do regime de
metas de inflação e do câmbio flutuante, natural a indignação.
Como não rezo pela
cartilha ortodoxa, penso que o Estado deve ter poder e liberdade para
agir de maneira contracíclica, que macroeconomicamente a poupança não é
precondição do investimento, que a inflação não é sempre resultado de
excesso de demanda, que a doença holandesa é praga que afeta os países
periféricos.
Por viver em país que
padece de fratura social vexatória, penso que não se pode abrir mão de
um Estado interventor e com mão forte para taxar capitais e tributar
fortunas, não apenas para fazer políticas públicas; para introduzir
progressividade em nosso sistema tributário, não apenas para fazer
políticas compensatórias; para investir em infraestrutura, não para
fazer política de campeões globais; para alavancar o mercado interno,
não para desonerar folha de pagamento.
Tem lá sua graça ver
ideólogos falando em realidade, gregoriando cantochões ortodoxos à moda
de verdades científicas, verdades tão sagradas que questioná-las passa
por coisa de doidivanas. Mas eles nunca se lembram de mencionar os
pressupostos de que partem.
Assim, dizer que o país
não pode ter deficit de 6,7% do PIB em razão de nossa reduzida taxa de
poupança pressupõe que a poupança precede o investimento --isso é
verdade, mas no orçamento doméstico! E crer que se governa um país como
se governa uma casa, francamente...
Se magicamente os
brasileiros dobrassem sua poupança, a situação poderia ser antes pior do
que melhor, porque se deprimiriam as expectativas. Foi para ficar com
os pés fincados na realidade que me imunizei contra esse tipo de
raciocinação, como diria Hegel.
A diferença entre quem
repete os manuais de economia americanos e um francês que pensa, está aí
à vista de todos, nas livrarias: "O Capital no Século 21". Ou seriam
também ambos, Thomas Piketty e Hahn, radicais insensatos?
LEDA MARIA PAULANI, 60,
professora titular de economia da FEA-USP, foi secretária municipal do
Planejamento de São Paulo (gestão Haddad). É autora de "Modernidade e
Discurso Econômico" e de "Brasil Delivery" (editora Boitempo)
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