Domingo, 28 de junho de 2015
O “homem endividado” e o “deus” capital: uma dependência do nascimento à morte. Entrevista especial com Maurizio Lazzarato
“Desde o início das
sucessivas crises financeiras, a figura subjetiva do capitalismo
contemporâneo parece antes ser representada pelo ‘homem endividado’”,
afirma o sociólogo.
Imagem: jornalggn.com.br |
“O ‘homem endividado’ é submetido a uma relação de poder credor-devedor que o acompanha durante toda a vida, desde o nascimento até a morte”. E completa: “Através das dívidas soberanas,
toda a população acaba endividada e deve pagá-las, qualquer que seja
sua situação: desempregado, trabalhador, aposentado, etc. Carregamos
dentro de nossos bolsos a relação credor/devedor, pois ela está inscrita no cartão de crédito”.
Para Lazzarato, o que hoje se verifica não é uma hegemonia da economia sobre a política, mas, antes, uma “reconfiguração da relação entre economia e política. O capital
(e não a economia!) construiu uma máquina de guerra, da qual o Estado e
o sistema político são apenas articulações. O Estado e o sistema
político intervêm para a produção e a reprodução da máquina de guerra do Capital,
não sendo realidades alheias ao seu funcionamento, e sim engrenagens
essenciais”. A moeda converteu-se no próprio capital, assinala, a “forma
mais abstrata, mais móvel e mais eficaz do mandamento do capitalismo.
Ela dita regras, condutas, comportamentos a populações inteiras, como
está acontecendo na Grécia e em toda a Europa atualmente”.
Maurizio Lazzarato (foto
abaixo) é sociólogo e filósofo italiano que vive e trabalha em Paris,
onde realiza pesquisas sobre a temática do trabalho imaterial, a
ontologia do trabalho, o capitalismo cognitivo e os movimentos
pós-socialistas. Escreve também sobre cinema, vídeo e as novas
tecnologias de produção de imagem. Participa de ações e reflexões sobre
os “intermitentes do espetáculo” no âmbito da CIP-idf (Coordination des
intermittents et précaires d’Île-de-France), onde coordena uma
“pesquisa-ação” sobre o estatuto dos trabalhadores e profissionais do
espetáculo e do mundo das artes, além de outros trabalhadores precários.
Junto com Antonio Negri é um dos fundadores da revista Multitudes.
De suas obras publicadas destacamos Trabalho imaterial (Rio de Janeiro: DP&A, 2001), escrita com Toni Negri, e La fabrique de l’homme endetté. Essai sur la condition néolibérale (Paris: Editions Amsterdam, 2011). Lazzarato estará na Unisinos como conferencista do V
Colóquio Latino-Americano de Biopolítica, III Colóquio Internacional de
Biopolítica e Educação e XVII Simpósio Internacional IHU Saberes e
práticas na constituição dos sujeitos na contemporaneidade.
Confira a entrevista.
Foto: kit.ntnu.no |
Maurizio Lazzarato - O neoliberalismo
governa através de uma variedade de relações de poder: credor-devedor,
capital-trabalho, welfare -usuário [1], consumidor-empresa, etc. Mas a
dívida é uma relação de poder universal, uma vez que
todo mundo está incluído nela: até mesmo aqueles que são pobres demais
para terem acesso ao crédito devem pagar juros a credores pelo reembolso da dívida pública; até mesmo os países pobres demais para se dotarem de um Estado de bem-estar social devem pagar suas dívidas.
Através das dívidas soberanas, toda a
população acaba endividada e deve pagá-las, qualquer que seja sua
situação: desempregado, trabalhador, aposentado, etc. Carregamos dentro
de nossos bolsos a relação credor/devedor, pois ela está inscrita no cartão de crédito. Cada compra paga com cartão de crédito nos introduz no circuito financeiro.
A relação credor-devedor atinge a
população atual em sua totalidade, mas também as populações futuras. Os
economistas nos dizem que cada novo bebê francês já nasce com 22 mil
euros em dívidas. Não é mais o pecado original que nos é transmitido no
nascimento, mas a dívida contraída pelas gerações anteriores. O “homem endividado”
é submetido a uma relação de poder credor-devedor que o acompanha
durante toda a vida, desde o nascimento até a morte. Se, outrora, nossas
dívidas eram para com a comunidade, os deuses, os antepassados, agora,
estamos endividados junto ao “deus” Capital.
IHU On-Line - A partir do conceito de economia da dívida, como analisa a hegemonia da economia sobre a política em nosso tempo?
Maurizio Lazzarato - Não há hegemonia, mas, sim, uma reconfiguração da relação
entre economia e política. O capital (e não a economia!) construiu uma
máquina de guerra, da qual o Estado e o sistema político são apenas
articulações. O Estado e o sistema político intervêm para a produção e a
reprodução da máquina de guerra do Capital, não sendo realidades
alheias ao seu funcionamento, e sim engrenagens essenciais.
IHU On-Line - Como se pode crer
na veracidade de uma entidade virtual como o dinheiro que é negociado na
bolsa de valores, por exemplo? Como é possível compreender que tal
recurso comande decisões de empresas, governos e nações?
Maurizio Lazzarato - A
moeda não deriva da troca, da simples circulação, da mercadoria; ela
também não constitui o sinal ou a representação do trabalho, mas
expressa uma assimetria de forças, um poder de prescrever e impor modos de exploração, de dominação e de sujeição futuros. A moeda é, primeiramente, moeda-dívida, criada ex nihilo
[2], sem nenhum equivalente material fora de uma potência de
destruição/criação das relações sociais e, notadamente, dos modos de
subjetivação.
A moeda é o próprio capital, a forma
mais abstrata, mais móvel e mais eficaz do mandamento do capitalismo.
Ela dita regras, condutas, comportamentos a populações inteiras, como
está acontecendo na Grécia e em toda a Europa atualmente.
"Nietzsche já havia dito o essencial acerca da dívida. Na segunda dissertação de Genealogia da Moral, ele arrasa de uma só vez todas as ciências sociais" |
IHU On-Line - Poderia recuperar alguns aspectos da contribuição de Nietzsche para compreendermos a genealogia da dívida?
Maurizio Lazzarato - Nietzsche [3] já havia dito o essencial acerca deste assunto. Na segunda dissertação de Genealogia da Moral
(São Paulo: Companhia das Letras, 2009), ele arrasa de uma só vez todas
as ciências sociais: a formação da sociedade e o adestramento do homem
(extrair do homem-fera um animal adestrado e civilizado, um animal
doméstico em suma”) não resultam nem das trocas econômicas (indo de
encontro à tese apresentada por toda a tradição da economia política,
desde os fisiocratas até Marx [4] , passando por Adam Smith)
[5] , nem das trocas simbólicas (indo de encontro às tradições teóricas
antropológicas e psicanalíticas), mas, sim, da relação entre credor e
devedor. Nietzsche faz, assim, do crédito o paradigma
da relação social, descartando toda e qualquer explicação “à moda
inglesa”, ou seja, pela troca ou o interesse.
IHU On-Line - Qual é a importância do mecanismo da dívida no capitalismo financeirizado?
Maurizio Lazzarato -
Aquilo a que as mídias chamam de “especulação” constitui uma máquina de
captura ou predação da mais-valia nas condições da acumulação
capitalista atual, na qual é impossível distinguir a renda do lucro.
O processo de mudança das funções de direção da produção e de
propriedade do capital, que começou a se desenvolver na época de Marx,
atingiu, hoje, sua forma plena. O “capitalista realmente ativo”
transforma-se, já dizia Marx, em “um simples dirigente e administrador
do capital”, e os “proprietários do capital”, em
capitalistas financeiros ou beneficiários de rendas. A finança, os
bancos, os investidores institucionais não são simples especuladores,
mas os (representantes dos) “proprietários” do capital, enquanto estes,
que eram, outrora, os “capitalistas industriais”, os empreendedores que
arriscavam seus próprios capitais, são reduzidos a serem simples
“funcionários” (“assalariados” ou pagos em ações) da valorização
financeira.
IHU On-Line - Como pode ser
definida a figura do homem endividado? Em que aspectos essa figura está
aprisionada ao sistema econômico vigente?
Maurizio Lazzarato - A economia neoliberal
é uma economia subjetiva, isto é, uma economia que requer e gera
processos de subjetivação cujo modelo deixou de ser aquele, como na
economia clássica, do homem que realiza trocas e do homem que produz.
Durante as décadas de 1980 e 1990, esse modelo foi representado pelo
empreendedor (de si mesmo), segundo a definição de Michel Foucault
[6], que resumia nesse conceito a mobilização, o engajamento e a
ativação da subjetividade pelas técnicas de gerenciamento empresarial e
de governo social. Desde o início das sucessivas crises financeiras, a figura subjetiva do capitalismo
contemporâneo parece antes ser representada pelo “homem endividado”.
Essa condição, que já existia, uma vez que está no cerne da estratégia
neoliberal, ocupa agora todo o espaço público. Todas as designações da
divisão social do trabalho nas sociedades neoliberais (“consumidor”,
“usuário”, “trabalhador”, “autoempreendedor”, “desempregado”, “turista”
etc.) são atravessadas pela figura subjetiva do “homem endividado”,
a qual metamorfoseia todas as figuras anteriores em consumidor
endividado, usuário endividado e, por fim, como está acontecendo na Grécia,
em cidadão endividado. Se não é a dívida individual, é a dívida pública
que, literalmente, pesa na vida de cada um, já que cada um deve
assumi-la.
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"A relação credor-devedor atinge a população atual em sua totalidade, mas também as populações futuras" |
IHU On-Line - Em que aspectos a
recusa do pagamento das dívidas a países credores é uma forma de
resistência contra um dispositivo de poder econômico? Nesse sentido,
como analisa o caso da Grécia?
Maurizio Lazzarato - Para fazerem da dívida um terreno de confronto estratégico, os governados devem efetuar uma ruptura subjetiva,
condição indispensável para saírem de sua postura de governados. Para
enfrentar os credores, não como governantes da economia do mundo, mas
como adversários, os governados devem passar por uma transformação
subjetiva, realizando uma reconversão de si mesmos. Desse ponto de
vista, a Europa é, em ordem cronológica, o último
palco, depois da Ásia e da América Latina, dessas modalidades de governo
pela dívida, de sua reversibilidade e de seu modo de subjetivação.
Na “crise” atual, somente a longa sequência das mobilizações contra as políticas da dívida na Grécia efetuou essa ruptura subjetiva nos governados, transformando as relações de poder em confrontos estratégicos. Essas transformações subjetivas
modificaram profundamente o contexto no qual se desenrolam a ação das
políticas da dívida e as lutas (as eleições também) que a ela se opõem. O
“governo” recentemente eleito na Grécia
toma decisões no novo contexto de confrontos estratégicos determinado
pela ruptura subjetiva, e não mais, como os governos anteriores, no
contexto de oposição governantes/governados. Em países como Itália,
França, Portugal e outros, as resistências, as oposições, as lutas
permanecem dentro da dinâmica governantes/governados.
A primeira tarefa da luta contra a dívida
é impor o confronto estratégico aos credores, que, ao mesmo tempo em
que travam a guerra civil por outros meios, negam definitivamente sua
existência. O axioma de toda governamentalidade é negar a existência da
guerra civil, dos confrontos estratégicos.
Por Márcia Junges | Tradução: Vanise Dresch
NOTAS
[1]
Neologismo em relação com o termo Welfare State: expressão em inglês que
significa “estado de bem-estar” e abrange as noções de Estado de
bem-estar social e de políticas públicas, ou seja, o conjunto de
benefícios socioeconômicos que um governo proporciona aos seus súditos.
(Nota do IHU On-Line)
[2]
Relação com o termo Ex nihilo nihil fit: expressão latina que significa
nada surge do nada. É uma expressão que indica um princípio metafísico
segundo o qual o ser não pode começar a existir a partir do nada. A
frase é atribuída ao filósofo grego Parménides. Nesse caso, somente o
fragmento Ex nihilo significa vindo do nada. (Nota da IHU On-Line)
[3]
Friedrich Nietzsche (1844-1900): filósofo alemão, conhecido por seus
conceitos além-do-homem, transvaloração dos valores, niilismo, vontade
de poder e eterno retorno. Entre suas obras figuram como as mais
importantes Assim falou Zaratustra (9. ed. Rio de Janeiro: Civilização
Brasileira, 1998), O anticristo (Lisboa: Guimarães, 1916) e A genealogia
da moral (5. ed. São Paulo: Centauro, 2004). Escreveu até 1888, quando
foi acometido por um colapso nervoso que nunca o abandonou até o dia de
sua morte. A Nietzsche foi dedicado o tema de capa da edição número 127
da IHU On-Line, de 13-12-2004, intitulado Nietzsche: filósofo do martelo
e do crepúsculo, disponível para download aqui. A edição 15 dos Cadernos IHU em formação é intitulada O pensamento de Friedrich Nietzsche, e pode ser acessada aqui.Confira, também, a entrevista concedida por Ernildo Stein à edição 328 da revista IHU On-Line, de 10-05-2010, disponível aqui,
intitulada O biologismo radical de Nietzsche não pode ser minimizado,
na qual discute ideias de sua conferência A crítica de Heidegger ao
biologismo de Nietzsche e a questão da biopolítica, parte integrante do
Ciclo de Estudos Filosofias da diferença — Pré-evento do XI Simpósio
Internacional IHU: O (des)governo biopolítico da vida humana. Na edição
330 da Revista IHU On-Line, de 24-05-2010, leia a entrevista Nietzsche, o
pensamento trágico e a afirmação da totalidade da existência, concedida
pelo Prof. Dr. Oswaldo Giacoia e disponível para download aqui. Na
edição 388, de 09-04-2012, leia a entrevista O amor fati como resposta à
tirania do sentido, com Danilo Bilate, disponível aqui. (Nota da IHU On-Line)
[4]
Karl Marx (Karl Heinrich Marx, 1818-1883): filósofo, cientista social,
economista, historiador e revolucionário alemão, um dos pensadores que
exerceram maior influência sobre o pensamento social e sobre os destinos
da humanidade no século XX. Leia a edição número 41 dos Cadernos IHU
ideias, de autoria de Leda Maria Paulani, tem como título A
(anti)filosofia de Karl Marx, disponível aqui. Também
sobre o autor, confira a edição número 278 da IHU On-Line, de
20-10-2008, intitulada A financeirização do mundo e sua crise. Uma
leitura a partir de Marx, disponível aqui. Leia,
igualmente, a entrevista Marx: os homens não são o que pensam e
desejam, mas o que fazem, concedida por Pedro de Alcântara Figueira à
edição 327 da IHU On-Line, de 03-05-2010, disponível aqui. A
IHU On-Line preparou uma edição especial sobre desigualdade inspirada
no livro de Thomas Piketty O Capital no Século XXI, que retoma o
argumento central da obra de Marx O Capital, disponível aqui. (Nota da IHU On-Line)
[5]Adam
Smith (1723-1790): considerado o fundador da ciência econômica
tradicional. A Riqueza das Nações, sua obra principal, de 1776, lançou
as bases para o entendimento das relações econômicas da sociedade sob a
perspectiva liberal, superando os paradigmas do mercantilismo. Sobre
Adam Smith, veja a entrevista concedida pela professora Ana Maria
Bianchi, da Universidade de São Paulo - USP, à IHU On-Line nº 133, de
21-03-2005, disponível aqui,
e a edição 35 dos Cadernos IHU ideias, de 21-07-2005, intitulada Adam
Smith: filósofo e economista, escrita por Ana Maria Bianchi e Antônio
Tiago Loureiro Araújo dos Santos, disponível aqui. (Nota da IHU On-Line)
[6]
Michel Foucault (1926-1984): filósofo francês. Suas obras, desde a
História da Loucura até a História da sexualidade (a qual não pôde
completar devido a sua morte) situam-se dentro de uma filosofia do
conhecimento. Foucault trata principalmente do tema do poder, rompendo
com as concepções clássicas do termo. Em várias edições, a IHU On-Line
dedicou matéria de capa a Foucault: edição 119, de 18-10-2004,
disponível aqui; edição 203, de 06-11-2006, disponível aqui; edição 364, de 06-06-2011, intitulada 'História da loucura' e o discurso racional em debate, disponível aqui; edição 343, O (des)governo biopolítico da vida humana, de 13-09-2010, disponível aqui, e edição 344, Biopolítica, estado de exceção e vida nua. Um debate, disponível aqui. Confira ainda a edição nº 13 dos Cadernos IHU em formação, disponível aqui. (Nota da IHU On-Line)
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