É hora de apoiar o governo (o grego, claro)
Juliano Medeiros
Ao contrário de confirmar a tese dos céticos para os quais não há saída, o Syriza deu uma verdadeira lição entregando o destino da Grécia aos gregos.
Juliano Medeiros
Quando a crise econômica de 2008 transformou-se em crise da dívida nos países do sul da Europa, a Grécia vivia um sistema político praticamente bipartidário. Como acontecia em outros países do continente, liberais e social-democratas alternavam-se de eleição em eleição, compartilhando de programas muito semelhantes.
A crise, porém, fez ruir o equilíbrio de forças e os dois principais partidos – o Partido Socialista e a Nova Democracia – foram soterrados pelos escombros da insatisfação popular. Comprometidos com o ajuste fiscal e a retirada de direitos exigidos pela Troika formada pelo Banco Central Europeu, União Europeia e Fundo Monetário Internacional, os tradicionais partidos gregos foram perdendo espaço para alternativas políticas críticas ao plano de ajustes implementado desde 2008.
Na cartilha da “austeridade” imposta pela Troika estavam a demissão de funcionários públicos, o corte de aposentadorias, o aumento de impostos indiretos, dentre outras medidas que redundaram num aprofundamento da crise social e econômica.
Quando foram convocadas novas eleições para o parlamento grego, em janeiro deste ano, todos sabiam que os partidos “anti-austeridade” teriam um bom desempenho. O favorito dentre eles, o Syriza, conquistou a maioria do parlamento e compôs o governo elegendo Alexis Tsipras como primeiro-ministro.
Em seu plano para combater a crise estava uma combinação original: reverter as medidas de austeridade que retiraram direitos, livrar a Grécia da dependência em relação à Troika renegociando os termos da dívida grega e manter o país na zona do euro. O Syriza não era o único partido a denunciar os efeitos nocivos dos acordos firmados pelos governos anteriores.
Outros partidos, à esquerda e à direita, seguiam a mesma receita. Porém, o Syriza era o único a defender ferrenhamente a manutenção da Grécia na zona do euro, o que foi visto pela população como um diferencial em relação a outras forças de esquerda, garantindo a vitória de Tsipras e seu partido.
Porém, a realidade mostrou-se mais complexa do que poderiam supor os eleitores de Tsipras. Vencendo, o Syriza firmava dois compromissos de difícil conciliação: manter a Grécia na zona do euro e reverter as medidas de austeridade acordadas com a Troika. A manutenção do euro como moeda no país depende, sobretudo, da continuidade dos pagamentos da dívida grega – uma dívida absolutamente impagável.
A estratégia de Tsipras e seus negociadores foi a de pressionar publicamente os representantes dos organismos multilaterais, mostrando o alto custo social das medidas exigidas e conquistando apoio popular para o enfrentamento que travavam no exterior. A Troika, por sua vez, seguiu exigindo que a Grécia implementasse medidas de austeridade para, em troca, manter o financiamento da dívida grega e aceitar uma renegociação.
Ao mesmo tempo, no plano interno Tsipras lutou para reverter algumas das medidas que retiraram direitos do povo grego, recuperando aposentadorias, anulando demissões e restabelecendo alguns serviços básicos, como o fornecimento de gás aos mais pobres. Essas medidas, no entanto, exigem recursos que hoje o Estado não tem. Por isso a insistência de Tsipras em chegar a um acordo que permita a manutenção dos empréstimos, sem os quais a economia grega entraria em colapso – ao menos, momentaneamente. Porém, renegociando a dívida e aumentando os impostos sobre os mais ricos, como defende o Syriza, em pouco tempo o governo teria condições de se refinanciar e viabilizar a retomada dos direitos usurpados nos acordos com a Troika.
Num cenário em que a Grécia deixe de pagar a dívida, investindo esses recursos no financiamento de sua própria sua economia, o país pode ser excluído da zona do euro, o que traria como consequência a restauração da moeda anterior – o dracma – muito menos valorizada que o euro. Além disso, a saída da zona do euro representaria, simbolicamente, uma derrota do projeto vitorioso nas eleições de janeiro deste ano e o fracasso das promessas do Syriza. Mesmo que o abandono do euro possa ser compensado com outras alianças econômicas no médio prazo – como China e Rússia – fazendo do dracma uma moeda competitiva, o elemento simbólico seria forte demais, o que forçaria a convocação de novas eleições.
Nesse contexto de enormes dificuldades, o governo grego tem tido uma postura impecável: defendeu os direitos dos mais pobres, denunciou a armadilha montada pela Troika para manter o país refém de seus interesses, instalou uma comissão para a auditoria da dívida grega e recusou-se a implementar medidas que representassem qualquer ataque aos direitos sociais. Mesmo as contrapropostas apresentadas recentemente, aumentando impostos das grandes empresas e antecipando a contribuição previdenciária das mesmas, embora interpretadas pela grande imprensa como um recuo em relação ao programa do Syriza, estão dentro de limites aceitáveis para um governo que atua com uma margem de manobra tão estreita.
As negociações estão chegando a um momento decisivo. O FMI já se retirou da mesa de diálogo duas vezes e os organismos europeus recusam-se a aceitar uma renegociação da dívida grega sem que o governo retire direitos, mesmo sabendo que ela é absolutamente impagável. Querem a rendição de Atenas porque sabem que uma vitória grega nas negociações pode estimular outros povos a buscar uma alternativa radical fora da velha polarização entre direita e centro-esquerda. A concessão a uma revisão da dívida, nesse caso, é o de menos: o que está em jogo é o futuro da Europa e a contenção dos ventos de mudança que já sopram na Espanha e Irlanda.
Diante deste cenário, o governo grego optou por uma saída radical: convocar um plebiscito para que o povo grego decida a saída para o impasse. Isso porque, o mandato concedido pela soberania grega ao Syriza tinha limites claros, a saber, manter a Grécia na zona do euro sem aplicar as medidas exigidas pela Troika. Isso mostrou-se impossível, já que a Troika recusa-se a aceitar qualquer acordo que proteja os direitos dos cidadãos gregos.
O Syriza, assim, age com a máxima dignidade possível.
Se o povo grego optar pela implementação das medidas exigidas pela Troika, provavelmente o Syriza convocará novas eleições, pois não aceitará implementar um programa que não é o seu. Se, ao contrário, a maioria decidir contra as medidas de austeridade, então o Syriza estará legitimado para conduzir a Grécia para fora da zona do euro e liderar a reconstrução do país com uma nova moeda, novos parceiros comerciais e novas alianças estratégicas. Se der certo, isso abrirá as alamedas de uma nova Europa.
A firmeza de princípios com que o Syriza defendeu os interesses do povo grego até aqui merece o apoio de todos os socialistas. Ao contrário de confirmar a tese dos céticos para os quais não há saída, Tsipras e o Syriza deram uma verdadeira lição de como fazer política em favor dos mais pobres. Mostraram que “nada deve parecer impossível de mudar”. Entregam agora o destino da Grécia aos gregos. Que decidam com a mesma sabedoria com que soterraram os partidos da ordem em janeiro deste ano.
___________
Historiador, Juliano Medeiros é dirigente nacional do Partido Socialismo e Liberdade (Psol) e ex-diretor da União Nacional dos Estudantes (UNE).
A crise, porém, fez ruir o equilíbrio de forças e os dois principais partidos – o Partido Socialista e a Nova Democracia – foram soterrados pelos escombros da insatisfação popular. Comprometidos com o ajuste fiscal e a retirada de direitos exigidos pela Troika formada pelo Banco Central Europeu, União Europeia e Fundo Monetário Internacional, os tradicionais partidos gregos foram perdendo espaço para alternativas políticas críticas ao plano de ajustes implementado desde 2008.
Na cartilha da “austeridade” imposta pela Troika estavam a demissão de funcionários públicos, o corte de aposentadorias, o aumento de impostos indiretos, dentre outras medidas que redundaram num aprofundamento da crise social e econômica.
Quando foram convocadas novas eleições para o parlamento grego, em janeiro deste ano, todos sabiam que os partidos “anti-austeridade” teriam um bom desempenho. O favorito dentre eles, o Syriza, conquistou a maioria do parlamento e compôs o governo elegendo Alexis Tsipras como primeiro-ministro.
Em seu plano para combater a crise estava uma combinação original: reverter as medidas de austeridade que retiraram direitos, livrar a Grécia da dependência em relação à Troika renegociando os termos da dívida grega e manter o país na zona do euro. O Syriza não era o único partido a denunciar os efeitos nocivos dos acordos firmados pelos governos anteriores.
Outros partidos, à esquerda e à direita, seguiam a mesma receita. Porém, o Syriza era o único a defender ferrenhamente a manutenção da Grécia na zona do euro, o que foi visto pela população como um diferencial em relação a outras forças de esquerda, garantindo a vitória de Tsipras e seu partido.
Porém, a realidade mostrou-se mais complexa do que poderiam supor os eleitores de Tsipras. Vencendo, o Syriza firmava dois compromissos de difícil conciliação: manter a Grécia na zona do euro e reverter as medidas de austeridade acordadas com a Troika. A manutenção do euro como moeda no país depende, sobretudo, da continuidade dos pagamentos da dívida grega – uma dívida absolutamente impagável.
A estratégia de Tsipras e seus negociadores foi a de pressionar publicamente os representantes dos organismos multilaterais, mostrando o alto custo social das medidas exigidas e conquistando apoio popular para o enfrentamento que travavam no exterior. A Troika, por sua vez, seguiu exigindo que a Grécia implementasse medidas de austeridade para, em troca, manter o financiamento da dívida grega e aceitar uma renegociação.
Ao mesmo tempo, no plano interno Tsipras lutou para reverter algumas das medidas que retiraram direitos do povo grego, recuperando aposentadorias, anulando demissões e restabelecendo alguns serviços básicos, como o fornecimento de gás aos mais pobres. Essas medidas, no entanto, exigem recursos que hoje o Estado não tem. Por isso a insistência de Tsipras em chegar a um acordo que permita a manutenção dos empréstimos, sem os quais a economia grega entraria em colapso – ao menos, momentaneamente. Porém, renegociando a dívida e aumentando os impostos sobre os mais ricos, como defende o Syriza, em pouco tempo o governo teria condições de se refinanciar e viabilizar a retomada dos direitos usurpados nos acordos com a Troika.
Num cenário em que a Grécia deixe de pagar a dívida, investindo esses recursos no financiamento de sua própria sua economia, o país pode ser excluído da zona do euro, o que traria como consequência a restauração da moeda anterior – o dracma – muito menos valorizada que o euro. Além disso, a saída da zona do euro representaria, simbolicamente, uma derrota do projeto vitorioso nas eleições de janeiro deste ano e o fracasso das promessas do Syriza. Mesmo que o abandono do euro possa ser compensado com outras alianças econômicas no médio prazo – como China e Rússia – fazendo do dracma uma moeda competitiva, o elemento simbólico seria forte demais, o que forçaria a convocação de novas eleições.
Nesse contexto de enormes dificuldades, o governo grego tem tido uma postura impecável: defendeu os direitos dos mais pobres, denunciou a armadilha montada pela Troika para manter o país refém de seus interesses, instalou uma comissão para a auditoria da dívida grega e recusou-se a implementar medidas que representassem qualquer ataque aos direitos sociais. Mesmo as contrapropostas apresentadas recentemente, aumentando impostos das grandes empresas e antecipando a contribuição previdenciária das mesmas, embora interpretadas pela grande imprensa como um recuo em relação ao programa do Syriza, estão dentro de limites aceitáveis para um governo que atua com uma margem de manobra tão estreita.
As negociações estão chegando a um momento decisivo. O FMI já se retirou da mesa de diálogo duas vezes e os organismos europeus recusam-se a aceitar uma renegociação da dívida grega sem que o governo retire direitos, mesmo sabendo que ela é absolutamente impagável. Querem a rendição de Atenas porque sabem que uma vitória grega nas negociações pode estimular outros povos a buscar uma alternativa radical fora da velha polarização entre direita e centro-esquerda. A concessão a uma revisão da dívida, nesse caso, é o de menos: o que está em jogo é o futuro da Europa e a contenção dos ventos de mudança que já sopram na Espanha e Irlanda.
Diante deste cenário, o governo grego optou por uma saída radical: convocar um plebiscito para que o povo grego decida a saída para o impasse. Isso porque, o mandato concedido pela soberania grega ao Syriza tinha limites claros, a saber, manter a Grécia na zona do euro sem aplicar as medidas exigidas pela Troika. Isso mostrou-se impossível, já que a Troika recusa-se a aceitar qualquer acordo que proteja os direitos dos cidadãos gregos.
O Syriza, assim, age com a máxima dignidade possível.
Se o povo grego optar pela implementação das medidas exigidas pela Troika, provavelmente o Syriza convocará novas eleições, pois não aceitará implementar um programa que não é o seu. Se, ao contrário, a maioria decidir contra as medidas de austeridade, então o Syriza estará legitimado para conduzir a Grécia para fora da zona do euro e liderar a reconstrução do país com uma nova moeda, novos parceiros comerciais e novas alianças estratégicas. Se der certo, isso abrirá as alamedas de uma nova Europa.
A firmeza de princípios com que o Syriza defendeu os interesses do povo grego até aqui merece o apoio de todos os socialistas. Ao contrário de confirmar a tese dos céticos para os quais não há saída, Tsipras e o Syriza deram uma verdadeira lição de como fazer política em favor dos mais pobres. Mostraram que “nada deve parecer impossível de mudar”. Entregam agora o destino da Grécia aos gregos. Que decidam com a mesma sabedoria com que soterraram os partidos da ordem em janeiro deste ano.
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Historiador, Juliano Medeiros é dirigente nacional do Partido Socialismo e Liberdade (Psol) e ex-diretor da União Nacional dos Estudantes (UNE).
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