quarta-feira, 24 de dezembro de 2008

CHINA - Reflexões de um "blogger-ponte".

Roland Soong

Roland Soong é o autor de um dos mais importantes blogs chineses escritos em inglês, o EastSouthWestNorth. Nascido em Xangai em 1949, a sua família fugiu para Hong Kong quatro semanas depois de ter nascido. Viveu 32 anos nos Estados Unidos, tem um doutoramento em estatística e hoje vive em Hong Kong com a mãe de 79 anos. O seu blog é leitura obrigatória de todos os jornalistas que escrevem sobre a China, devido à sua capacidade de fazer a ponte, isto é, de relatar em inglês o que vai sucedendo no país.

Reflexões de um blogger-ponte

[Na conferência chinesa de bloggers em Guangzhou, estava previsto eu fazer uma apresentação... Uma emergência médica familiar forçou-me a cancelá-la. O que se segue é a apresentação que deveria ter feito]


Sinto-me honrado por ser orador na Conferência Chinesa de Bloggers 2008. Alguns de vocês aqui presentes podem-me conhecer muito bem, mas é provável que muitos não me conheçam de todo. Isso é porque eu sou um blogger-ponte, que escreve em inglês. Rebecca MacKinnon escreveu: "O que é um blogger-ponte? Alguém que actua como "ponte" entre a sua comunidade de blogging e o resto do mundo". Desde 2003, tenho tornado conhecidas algumas partes da comunidade chinesa de Internet (mas obviamente não todas) no mundo de leitores de inglês. Hoje, gostaria de vos falar sobre como as coisas mudaram nestes últimos cinco anos, conforme as vejo.

Estou interessado em muitas coisas diferentes na Grande China, incluindo a justiça dos média, incidentes de massa, o lançamento de boatos, hipocrisia social, censura, inquéritos à opinião pública, previsão de terramotos, nacionalismos, Eileen Chang (Zhang Ailing), fotografias falsas, costumes sexuais, etc. Mas hoje, aqui, gostaria de me concentrar na forma como o tratamento dos incidentes sociais tem vindo a mudar ao longo do tempo. Diz muito sobre o que se tem vindo a passar na sociedade chinesa, como um todo.

Deixem-me começar como um modelo de processo sobre um incidente genérico na era pré-Internet.

1.

Uma coisa má acontece algures na China (tal como brutalidade policial, corrupção governamental, expulsões forçadas, um desastre numa mina de carvão, etc.)
2.

O governo local suprime toda a informação.
3.

Todos os relatórios dos média são censurados [Se não fosse relatado, não teria acontecido]
4.

As vítimas iniciam um processo de petição para procurar justiça. A estrada é comprida e difícil, com perspectivas ténues.

Este modelo existe na China desde a antiguidade. Assume-se que o Imperador (presidente, primeiro-ministro, chairman) é benevolente, mas por vezes escudado da verdade pelos seus subalternos corruptos. Se a verdade pudesse ser trazida à sua atenção, a justiça seria feita. Se o imperador falhasse na resposta, então seria tempo de outra rebelião, para encontrar outro Filho do Céu que o substituísse.

A Internet apareceu na China no final da década de 1990, com muitos bbs (literalmente, sistemas de quadros de boletins, uma espécie de Internet local). No início de 2002, começam a surgir os blogs pessoais. Como é que isso afectou este modelo de processo? Segue-se a versão revista por volta de 2003, quando comecei o meu blogging-ponte.

1.

Uma coisa má acontece algures na China (tal como brutalidade policial, corrupção governamental, expulsões forçadas, um desastre numa mina de carvão, etc.)
2.

O governo local suprime toda a informação.
3.

Todas as notícias dos média são censuradas [Mas se não foi relatado nos media tradicionais, há agora outras alternativas na Internet].
4.

As vítimas dão início a um processo de petição em busca de justiça. A estrada é longa e difícil, e nunca dá resultados.
5.

Os foruns/blogs da Internet apressam-se a relatar o caso. Mas dentro de aproximadamente 48 horas, todos os vestígios de informação são apagados por ordem das autoridades [contudo, um dos entusiasmos da minha actividade de blogging era encontrar e traduzir essa informação antes que estas janelas se fechassem].
6.

Os média ocidentais apanham o rasto do incidente e seguem-no. Isto cria um escândalo internacional.
7.

As altas autoridades chinesas são notificadas e tomam-se medidas correctivas.

Claro que nunca foi tão simples como isto. A realidade é que os média ocidentais têm um "curto espaço de atenção/hiato de atenção". Não estou aqui a denegri-los. Apenas afirmo os factos da vida. Primeiro, comparem quantas "injustiças" ocorrem todos os dias num país com 1.400 milhões de pessoas e quanto espaço de coluna o The New York Times ou o The Guardian podem dar para fazer cobertura da China? Podem imaginar como um incidente tem de competir contra todos os outros por apenas aquela história no The New York Times ou no The Guardian. Eu observo que as mortes (sendo preferível quando documentadas por fotografias) geralmente ajudam. A mensagem central é, como o blogger chinês Michael Anti disse uma vez, "se não foi relatado em inglês, não aconteceu". Isso é mesmo preocupante.

Em segundo lugar, quão longa e profunda pode ser essa história? O formato mais típico são as 800 palavras com um parágrafo para contexto, dois parágrafos sobre o incidente, um parágrafo para o perito, um parágrafo para outro perito e um parágrafo para um contexto geral (tal como, "houve 87 000 incidentes no último ano, na China). Na maior parte dos casos, isto não vai gerar nenhum tipo de pressão internacional. A pressão internacional acontece apenas quando muitos mass media cobrem a mesma história durante muitos dias consecutivos. Isto não é uma missão impossível, mas as pessoas têm de ser muito ágeis e astutas na forma como apresentam e posicionam o seu caso nos média ocidentais.

Não obstante, eu vejo o meu blog como um serviço de mais-valia. Se um leitor de inglês se vê intrigado por um relatório em inglês sobre qualquer "atrocidade" na China, pode sentir-se tentado a procurar mais informação na Internet. Vai poder encontrar a tradução completa sobre o incidente no meu blog. Por exemplo, forneci uma cobertura profunda, no início de 2004, sobre a questão do "Estudo dos Camponeses Chineses", por Chen Guidi e Wu Chuntao. Há muitos exemplos no arquivo do meu blog acerca de incidentes sociais sobre este modelo estrangeiro de intervencionismo.

Em 2006, um inquérito feito pela correspondentes estrangeira Rebecca Mackinnon descobriu que o meu era o blog de topo, bem como uma importante fonte de informação. Um número de bloggers chineses descobriu que estavam a receber atenção internacional através das minhas traduções de excertos dos seus blogs. Foi assim que souberam de mim.

Mas estamos agora no final de 2008. Como é que as coisas mudaram? Eu faria uma revisão do modelo de procedimento, da seguinte forma:

1.

Uma coisa má acontece algures na China (tal como brutalidade policial, corrupção governamental, expulsões forçadas, um desastre numa mina de carvão, etc.)
2.

O governo local suprime toda a informação.
3.

Todas as notícias dos média são censuradas.
4.

As vitimas dão início a um processo de petição em busca de justiça. A estrada é longa e difícil, e nunca dá resultados.
5.

Os fóruns/blogs da Internet apressam-se a relatar o caso.
6.

6a.Dentro de 48 horas, todos os vestígios de informação negativa (i.e. contra as autoridades) são apagados, por ordem das autoridades, ou então através da auto-censura nos serviços dos portais/fóruns/blogs

6b. Informação positiva (i.e. a favor das autoridades) aparece através de comentadores que são pagos pelas autoridades.

5. Os média ocidentais apercebem-se do incidente e dão-lhe continuidade com um incidente internacional.

7.

Mas há tantos portais/fóruns/blogs, que a informação importante eventualmente escapa.
8.

As altas autoridades chinesas são notificadas, e são tomadas medidas correctivas.

Então, quais são as mais importantes mudanças, verificadas nos últimos cinco anos?

Em primeiro lugar, a Internet cresceu tanto que está para além do controlo normal. Como é que se monitoriza o que 253 milhões de navegadores estão a fazer (estatísticas da Wikipedia)? Como se monitoriza o conteúdo de 11 milhões de websites chineses? Os míticos 30.000 polícias de Internet são inúteis contra estes números. Se há assuntos banidos, devem percorrer milhares por semana. Como é suposto qualquer website implementar as proibições? É humanamente impossível. Não há nenhum sistema bem definido, activo no lugar. Em vez disso, há apenas sistemas oportunistas e reactivos, que operam lenta e imperfeitamente. A barragem está a transbordar por todo o lado.


Em segundo lugar, há a emergência de uma direita extremista e de uma esquerda extremista na Internet, em termos de opinião pública. As características destas duas alas extremistas não são claras. De uma forma geral, a extrema-direita pode englobar aqueles que afirmam abraçar automaticamente os valores universais de liberdade e direitos humanos, que assumem que a China não tem valor até serem implementados esses valores. Pelo contrário, a esquerda extremista é a que abraça automaticamente o patriotismo, o nacionalismo e a soberania, que assume que a China tem de se defender das intrusões estrangeiras a todo o custo. Mas isto é uma simplificação da questão.

É suficiente que em qualquer assunto semelhante (tal como o ensaio de Chang Ping acerca de como encontrar a verdade sobre o incidente de Lhasa), existam dois pontos de vista diametralmente opostos, que são refutações automatizadas.

São vigorosos, até viciados, mas também não informativas e não persuasivos. Cada ponto de vista é defendido por um pequeno número de cibernautas (netizens), mas quando a maioria escolhe manter o silêncio, torna-se inútil a leitura destes comentários virulentos da Internet.

Em terceiro lugar, a novidade mais interessante foi as inserções ardilosas de rumores nos debates públicos. No caso directo do Polícia que Espanca até à Morte um Estudante da Universidade de Harbin, houve uma onda de informação errada acerca da vítima (ou seja, que tinha relações familiares com importantes figuras governamentais; que era um viciado em drogas; etc) que diminuiu a simpatia do público. Isto conduz ao facto de que é necessário fazer uma triagem cautelosa da informação, para filtrar a má informação. Isso pode ser frustrante, mas na verdade é um treino muito útil. Pode-se, inclusive, aprender acerca da arte de detecção de mentiras em casos com custos sociais mais baixos do que em casos mais importantes com grandes consequências (como eleições).

Em quarto lugar, e o mais importante, nota-se que o papel dos média ocidentais foi eliminado do modelo do processo. Isto significa muito para mim, porque sou um blogger-ponte a partir da China para os leitores de inglês. A minha base foi condenada à insignificância. Se houve uma vez em que as coberturas dos média ocidentais, que afectam a opinião dos políticos e cidadãos ocidentais, importava ao povo chinês, isso deixa de acontecer.

No quadro político, o povo chinês já não precisa de acreditar na retórica da liberdade, democracia e a soberania dos direitos humanos. A guerra no Iraque, a prisão de Abu Ghraib, o campo de Guantánamo, o furacão Katrina e outras condutas impróprias tomaram conta de tudo. Porque é que os chineses estariam interessados em saber o que o presidente George W. Bush tem a dizer sobre liberdade, democracia ou soberania de direitos humanos? Quando os média ocidentais invocam estes termos, a reacção do povo chinês é: "Olhem para vós próprios e resolvam os vossos problemas primeiro!"

No quadro económico, o tsunami financeiro de 2008 arrumou qualquer credibilidade que o consenso de Washington tivesse. No seu lugar estava um pouco definido consenso de Beijing, que tem menos especificidades do que a ideia geral de auto-determinação. Porque é que os chineses estariam interessados no que Alan Greenspan e Henry Paulson têm a dizer-lhes sobre como gerir a sua economia quando estes "sábios" apenas têm falhanços entre as mãos?

No quadro dos média, o ocidente levou este ano uma sova aos olhos do público chinês. Primeiro, houve a cobertura dos média ocidentais sobre a questão dos distúrbios no Tibete (ver Chinese Netizens versus Western Media), seguidos pelo percurso da Tocha Olímpica como Desastre de Relações Públicas. A lista continua. Porque é que os chineses se haveriam de interessar pela cobertura dos média ocidentais, segundo estas linhas?

É assim, então, que entendo a mudança do meu papel, nestes últimos cinco anos.

Há cinco anos, eu tinha o complexo missionário de que ia ajudar a mudar a China, fazendo com que os média ocidentais se interessassem por certos assuntos, criando alguma pressão internacional. Talvez boas coisas pudessem ocorrer, como resultado.

Actualmente, já não tenho qualquer sentido de missão. Em vez disso, sou um observador passivo que regista a forma como os chineses forjam os seus próprios destinos através das suas acções.

Relembro aqui um verso dos Quatro Quartetos (Little Giddind) de T. S. Eliot:


Há três condições que frequentemente se assemelham

Contudo diferem completamente, florescendo no mesmo canteiro

Apego ao eu e às coisas e às pessoas, desapego

De si próprio e das coisas e das pessoas;

E crescendo entre eles, indiferença

Que se assemelha aos outros como a morte se assemelha à vida,

Estando entre duas vidas - desflorescendo, entre

A urtiga viva e a morta. Esta é a utilização da memória

Pela libertação - não menos de amor, mas expandindo

O amor para além do desejo, e por isso libertação

Do futuro bem como do passado. Assim, o amor de um país

Começa como um apego ao nosso próprio campo de acção

E acaba por descobrir que essa acção tem pouca importância

Embora nunca indiferente. A História pode ser servidão,

A História pode ser liberdade. Vejam, agora desvanecem-se

As faces e os lugares, com o eu que, como pôde, os amou,

Para se tornarem renovados, transfigurados, noutro padrão.


Era uma vez algumas pessoas que acreditavam na importância dos relatos dos média ocidentais. Outras pessoas defendiam a visão oposta e consideravam-nos demoníacos. Mas hoje, a indiferença substituiu as paixões de cada lado. As pessoas na China já não se interessam pelo que os média ocidentais têm a dizer.

Eu não tenho nenhum sentido de desespero. Pelo contrário, sou muito optimista. Desde há muito tempo que as pessoas dizem que a liberdade/democracia/direitos humanos e tudo o resto não chegarão à China por imposição exterior. Ou seja, será que a democracia vai chegar quando os Estados Unidos da América enviarem o seu vice-rei Paul Bremen para gerir a China e trazer prosperidade além de liberdade/democracia/direitos humanos? NÃO! Em vez disso, deve chegar a partir do próprio povo chinês. Então, porque devo desesperar-me, quando isso está a acontecer aqui e agora? Estou apenas honrado por ser um observador deste momento da história.

[Postscript: Nesta Conferência de Bloggers Chineses, há uma lista de dezassete bloggers que representam a forma como o pensamento livre e a abertura dos media irá afectar o futuro da China.

安替
长平
连岳
时昭
胡咏
冯三七
周曙光
杨恒均
邓志新
艾未未
老虎庙
温云超
许志永
刘晓原
翟明磊
宋以朗
毛向辉

Não sei como mereço esta menção ao lado deles. Acho que não devia de todo estar aqui, porque praticamente não contribuo com nada de original. De qualquer forma, estou muito honrado. É assim que é em 2008. Nos próximos cinco anos, vai haver muitos mais. O nosso poder vai dever-se ao facto de nós virmos em diferentes formas e figuras, de termos diferentes crenças e credos, diferentes preocupações, e temos diferentes métodos e estilos. Juntos, somos a blogoesfera chinesa].

Tradução de Joana Valdez.
Fonte: Esquerda.net.

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