Sobrevivente do bombardeamento às FARC no passado mês de Março
Vou quintuplicar as forças por cada amigo morto.
Nesta importante entrevista concedida ao diário mexicano La Jornada, Lúcia Morett, sobrevivente do bombardeamento ao acampamento Raul Reyes, no dia em que esperava a equipa de negociadores franceses enviados por Sarkozy, relata pela primeira vez como foi o longo bombardeamento e qual o comportamento do exército e da polícia às ordens de Uribe
Blanche Petrich - 22.12.08
Nos acampamentos guerrilheiros da Colômbia chama-se «caleta» a uma cama grande feita de tábuas, com um toldo por cima, onde dormem uma ou mais pessoas. Dia 1 de Março deste ano, os responsáveis por receber os numerosos visitantes que chegava ao acampamento das Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia (FARC) em Sucumbios, território do Equador, indicaram uma dessas «caletas», entre as árvores, para as duas mexicanas recém chegadas, Lúcia Morett e Verónica Velásquez. Os três homens – Juan González, Fernando Franco e Soren Avilés – foram alojados a poucos metros dali.
Verónica e Lúcia adormeceram, cansadas pela longa caminhada pela selva. Lúcia despertou bruscamente com uma sacudidela da terra, um estrondo, um rebentamento, uma enorme árvore a arder diante dela. Estendeu o braço à procura da companheira. Não estava ninguém na «caleta». Que raio era aquilo? Segundos depois outra violenta sacudidela, mais fogo. «Gritava por Verónica e ela não respondia. Ainda agora não explico o que se passou. Por que morreu ela e eu não? Ter-se-ia levantado durante a noite e não estava ao meu lado quando começou o bombardeamento? A força da explosão atirou-a para longe?»
Este é o relato de Lúcia Morett Alvarez no voo que a traz da Nicarágua de regresso ao México, com escala em S. Salvador. Há cerca de oito meses, em Abril, teve que acolher-se à protecção do governo de Manágua por estar ameaçada de um processo penal, por terrorismo, de que a Procuradoria-Geral tinha aceite a queixa.
«Não, eu não cometi nenhum delito nem tenho que me esconder de ninguém», disse rapidamente com uma energia inesperada. A aeronave já sobrevoa a névoa castanha que cobre a cidade do México ao entardecer desta quarta-feira. Já não é a voz quebradiça de alguém que a qualquer momento parece ir chorar. «Eu sou vítima. E vou quintuplicar as minhas forças, uma por cada um dos meus amigos mortos e uma mais por mim, para que se saiba quem foram os verdadeiros criminosos. Porque nesse primeiro de Março cometeram-se muitos delitos e tem de se fazer justiça».
Depois de sair da Nicarágua a jovem, finalmente, universitária decide falar publicamente, e com detalhe, do que sucedeu no acampamento onde morreram mais de 23 pessoas, entre elas quatro mexicanos e o número dois da FARC, Raul Reys. Antes, em Manágua, respeitou a imposição das autoridades: «muita discrição». Inclusivamente, na véspera da sua viagem, o responsável que a atendia, , o filho do presidente Daniel Ortega, proibiu-a de conceder a entrevista que este diário [La Jornada] tinha solicitado.
Naquela noite – continua a relatar –, a princípio não se apercebeu que estava ferida. «Sentia as calças rotas e calor molhado. Vi que era sangue, mas não me doía nada. Não podia levantar-me nem mexer-me. Caíam-me coisas em cima. No meio do bombardeamento fiz tudo para me acalmar. Ouvia os aviões a passar, uma e outra vez. Pus uma mochila sobre a cabeça e olhava o mostrador luminoso do meu relógio, minuto a minuto: meia-noite e meia, já passaram dez minutos, meia hora. Tinha esperança no amanhecer. Soube, não sei como, que não ia morrer. Pensava na Verónica que estava por ali, e passou-me pela cabeça que, daí a pouco, as duas íamos acordar do susto. Às três da manhã voltaram os aviões, o segundo bombardeamento. Lamentei não te feito nada para me afastar dali, ainda que fosse arrastando-me. Foi aterrador. Passado pouco tempo ouvi os helicópteros que varriam a zona com rajadas. Alguém, muito perto de mim queixava-se horrivelmente. Apercebi-me que estava a morrer. Depois silêncio. Mais tarde ouvi a tropa aproximar-se, a disparar. Fechei os olhos com força e fiquei imóvel, boca para baixo, fingindo-me morta. No meio da confusão alguém gritou: Estou ferido, ajuda! De imediato mais disparos e nada mais. Por isso digo que os militares colombianos executaram vários feridos. Porque eu ouvi».
Lúcia treme da cabeça aos pés, mas já que começou a falar, durante uma escala no aeroporto salvadorenho, nada a detém. «Um dos soldados disse: está aqui uma mulher, está viva. Rodearam-me e um deles advertiu: Não se mexa, somos o exército colombiano e estamos a apontar, não tente nada, levante os braços, deixe a arma».
O tratamento aos feridos de guerra
Dias depois, o ministro da Defesa da Colômbia, Juan Manuel Santos, exibiu um vídeo sobre a operação Fénix. Imagens feitas com uma câmara de visão nocturna mostram Lúcia no chão, rodeada de soldados que a interrogam e lhe dão os primeiros socorros. O objectivo do governo colombiano era demonstrar que ofereceu «tratamento humanitário» à sobrevivente mexicana. Ela tem as mãos à frente, amarradas. Santos, na exibição do vídeo, explicava à imprensa que os guerrilheiros a tinham manietado.
«É mentira, foram eles que me amarraram, os colombianos. Faziam-me muitas perguntas, sobretudo relacionadas com Raúl Reyes. Não acreditavam em mim quando lhes dizia que eu não sabia de nada, que era civil, que apenas tinha chegado no dia anterior. Chamaram-me mentirosa e ameaçaram-me. Quando me observaram disseram-me que tinha feridas provocadas por esquírolas. Não sabia o que era isso».
Começou a amanhecer. Lucia pode ver que o toldo estava queimado, que o bosque à sua volta era um amontoado de ramos e cinzas. Quase às seis da manhã chegaram outros homens com um uniforme diferente. «Vai ficar com eles, nos vamos embora», disseram os soldados. Os recém chegados eram da polícia colombiana. Puseram-na sobre umas tábuas para a levar, disseram, para onde estavam os feridos. No trajecto só viu cadáveres. Alguns polícias saqueavam, tiravam-lhes os relógios, procuravam os pertences. Mostraram-lhe o cadáver de uma mulher em roupa interior. Tinha tiros nas costas. Perguntaram-lhe se a conhecia. «Deixaram-me a 10 metros desse cadáver». Um pouco mais longe viu uma rapariga muito ferida. Depois soube que era Marta Pérez, colombiana.
Passaram horas. Lucia pôde ver como dos helicópteros, em voo, baixavam macas e subiam alguns cadáveres, dois ou três,não pode precisar. E os polícias continuavam a pressioná-la com perguntas sem lhe dar água, apesar do sol já ir alto. As formigas começaram a subir peloos seus braços e pernas ensanguentados. Os homens despiram-na para lhe mudarem a roupa, aproveitando para fazer comentários sexuais, agressivos. Passado o meio-dia, depois de várias trocas de mensagens por rádio, ficaram nervosos. «Limpem as marcas, vamos embora», foi a ordem dada.
«Fiquei muito angustiada. Se nos deixavam ali como íamos sobreviver. Dizíamos-lhes que tinham de nos tirar dali, mas não ligavam nenhuma. Preferiram levar os cadáveres como troféus. Abandonaram-nos. Eram três da tarde de um de Março.
Era a guerra
Nesse momento Lucia deu-se conta da gravidade das suas feridas. A roupa estava empapada. Pôs um lençol debaixo do corpo e rapidamente também este ficou pingar sangue. E os cadáveres à sua volta começaram a inchar. «As moscas, as formigas os zopilotes [N. do T.: ave de rapina]. E aquele cheiro horrível horrorizava-me e dava-me amor ao mesmo tempo, pois sabia que eram meus companheiros. Juan sabia que tinha morrido porque os soldados mostraram-me a sua credencial e indicaram-mo. Fernando pareceu-me vê-lo entre os cadáveres, ainda que não estivesse certa. De Verónica e Soren não sabia nada».
Passaram várias horas antes que voltasse a ouvir as hélices de outros helicópteros. Os seus ocupantes sobrevoavam sem ver as duas sobreviventes. Lúcia, ajoelhou-se como pode e começou a ondear a sua camisa. «É que eu sabia que se fossem embora nós íamos morrer». Pouco tempo depois apareceram outros soldados, entre a mata espessa e as ruínas. Estes tinham as insígnias do exército do Equador.
«O tratamento foi outro. Fizeram-nos umas coberturas para nos protegermos do sol, deram-nos água, chegaram-me a mochila onde tinha um Gatorade. Já escurecia quando um enfermeiro me fez os primeiros curativos. Outro soldado jovem passou a noite ao meu lado, segurando-me a mão, conversando de qualquer coisa, de desporto, da sua mulher, para dissipar o meu terror».
Amanheceu o segundo dia de Lúcia na selva. «Os soldados procuraram as minhas coisas, uns bonecos de artesanato que tinha comprado, a minha mochila, o meu saco. As únicas coisas que não apareceram fora, o passaporte e o dinheiro. Eu não queria nada, só que me tirassem dali. Quando estávamos prontas para partir avisaram que havia outra ferida mais abaixo. Estava gravemente ferida, as duas pernas desfeitas. Era Doris Torres, a mais jovem. Essa rapariga sim, estava amarrada. Então começou uma caminhada muito difícil pela selva até aos helicópteros. Os soldados tinham umas insígnias brancas no braço para os identificar como resgatadores. Esse pormenor fez-me tomar consciência de isto era a guerra. E que eu estava numa guerra.
Esta entrevista foi publicada no diário mexicano La Jornada, no passado dia 4 de Dezembro.Fonte:Diário.info.
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