Marina Silva
De Brasília (DF)
Os ritos de final de ano estão cada vez mais sofisticados. As grandes cidades do mundo rivalizam no deslumbramento de suas festas e na duração dos espetáculos pirotécnicos, multidões se juntam em praias e praças, muitos bebem, outros oram. Ninguém quer estar sozinho, embora muitos o estejam, até sem saber. A data é de uma capacidade mobilizadora incomum, embora seja um corte imaginário no suceder dos dias.
Sob a euforia da contagem regressiva dos segundos, os sentimentos são os mais variados e nem sempre alegres, apesar do aspecto externo jubiloso do momento. Mas certamente todos comemoram mais um ano vivos, com mais uma chance de estar, de fazer ou de ser algo indizível, que está no íntimo de cada um.
Em qualquer cultura ou local, a humanidade rende-se atavicamente à simbologia e, à sua maneira, reverencia o passar do tempo. Lembro-me com muito carinho dos finais de ano no seringal Bagaço, no Acre. Antes é preciso explicar que seringal é uma grande área dentro da floresta, dividida em colocações. Cada colocação é formada pela casa onde vive a família do seringueiro e um conjunto de "estradas de seringa", ou seja, trilhas ao longo das quais se identificam seringueiras nativas para a retirada do látex.
Na minha infância, o seringal tinha um dono - o seringalista - que comprava o produto dos seringueiros, mas, ao mesmo tempo, os mantinha em regime quase de escravidão graças ao sistema de aviamento. Nele, o dono fornecia equipamento, mantimentos e outros produtos de primeira necessidade a um preço tão absurdo que, por mais que trabalhassem, os seringueiros praticamente nunca viam a cor do dinheiro. Sua dívida era quase sempre maior do que o ganho com a venda da borracha.
Na noite de 31 de dezembro a família ficava acordada no terreiro da casa até meia-noite, o que era uma absoluta exceção. Como nos levantávamos em torno de 4 da manhã para o trabalho na seringa, às sete da noite já estávamos dormindo. Então esse dia era especial, principalmente para a criançada, mas demandava um grande esforço para esperar a meia-noite.
Meu pai inventava brincadeiras que nunca esqueci. Quando coincidia de ser noite de lua cheia, ele organizava dois times de futebol. Dos oito filhos, sete eram mulheres e o irmão caçula era muito novo para jogar. Meu pai e uma goleira formavam um time. No outro, ficava o resto da mulherada. A bola de látex puro, feita por ele mesmo, quicava muito, o que só aumentava a diversão.
Também fazíamos fogueira. Além de iluminar, servia para assar macaxeira e milho. Quando dava meia noite, meu pai ia para o canto mais distante do terreiro e dava um tiro de pólvora e espoleta com sua espingarda 12. Quando a situação estava melhor e o custo da comemoração podia ser um pouco maior, eram 12 tiros, um para cada mês. E a gente escutava ao longe os tiros das outras colocações, comemorando a passagem do ano.
Aí íamos dormir e a rotina recomeçava sem nenhum imprevisto. Ninguém fazia planos para o ano novo. Tudo estava delineado: cuidar da roça de subsistência; no tempo da castanha, fazer a colheita; cuidar para a chuva não apodrecer o milho, fazer a extração do látex. Mudar de um ano para outro não fazia muita diferença. Era um prolongamento quase previsível, como se fosse um ano eterno.
Depois, quando entrei na adolescência, passei a alimentar sonhos de ir para a cidade estudar. Achava também que lá encontraria solução para meus problemas de saúde. Comecei então, secretamente, a sair da rotina e a querer um "ano que vem" diferente, a criar certa expectativa de uma grande mudança de vida que, na minha imaginação, aconteceria a partir de setembro.
Na cultura do seringal, setembro é o mês para as coisas boas acontecerem. Decisões importantes são deixadas para setembro, casamentos são marcados geralmente para esse mês. Não sei exatamente o porquê. Talvez porque nessa época ainda dá para se locomover com certa facilidade, antes do advento das chuvas mais pesadas. Talvez porque é a época do fim da safra da borracha, o momento de fazer as contas e e verificar o saldo. Era comum as pessoas dizerem: "se eu tirar saldo em setembro, vou me casar". Ou: "vou pra cidade registrar as crianças". Ou ainda: "vou voltar pro Ceará", lugar de origem de minha família e de muitos seringueiros.
Nos meus planos, em setembro eu teria coragem para pedir ao meu pai autorização para ir embora, estudar na cidade. Fui para Rio Branco exatamente em setembro, com 16 anos. No início fiquei em casa de parentes, arranjei um emprego de empregada doméstica e tudo aconteceu muito rápido. Estava tão ansiosa por aprender que fiquei um mês no Mobral e saí alfabetizada. Em outubro fui transferida para a educação integrada. Em dezembro fiz as provas correspondentes às quatro séries do antigo primário.
Setembro para mim ainda era um marco muito forte. Tudo de importante em minha nova vida, eu planejava para acontecer em setembro. Depois, essa relação foi ficando mais rarefeita e hoje as demandas são para a próxima hora. Mas reconheço em minhas lembranças a força da identidade, das raízes que sempre estarão comigo e me dirão, onde quer que esteja, quem eu sou.
Trago dentro de mim um tempo cindido, o tempo da cidade que corre com a velocidade do agora e o tempo do seringal que anda no ritmo das pisadas ao longo das curvas dos rios e das infindáveis restingas em meio à floresta.
Que a gente seja capaz sempre de conciliar esses tempos internos dos anos que passaram e aqueles que vêm com a velocidade do futuro. Feliz ano novo a todos e que Deus nos dê sabedoria para viver o milagre do sonho na realidade.
Fonte: Terra Magazine.
Nenhum comentário:
Postar um comentário