No verão de 1990, para saciar a sede de justiça do mundo e, talvez, sua
inoperância pregressa, jornais, revistas, rádios e televisões levaram a
Xapuri mais de “5 mil pessoas”. Tal multidão existiu apenas nas manchetes.
Lá não estiveram mais de 300 manifestantes, além de centenas de jornalistas.
Inesquecível, pelos piores motivos, as cenas de filhos de Chico Mendes:
Sandino, 4 anos de idade, e Elenira, 6 anos, a desfilar pela ruas de Xapuri
com a foto do pai morto pregado em um cartaz, ou a posar ao lado de seu
túmulo.
O fizeram, o faziam, a mando de fotógrafos, cinegrafistas, repórteres. A
fizeram, o faziam, a mando de fotógrafos, cinegrafistas, repórteres. A
mídia que se calara até o assassinato, por desconhecimento ou desinteresse,
para incensar manchetes durante o julgamento pagava picolés aos filhos do
líder morto.
Duas décadas depois Márcio Tomaz Bastos faz um outro balanço, o da Justiça
no Brasil:
*- Xapuri foi só uma ilusão. O Judiciário não funciona como deveria. É
lento, ineficaz, o Brasil tem um sistema, um Judiciário que fala para si
mesmo, que não está em conexão com o mundo exterior, com a sociedade, que é,
em uma palavra, solipsista… O judiciário não funciona adequadamente.*
Quando Darly e Darci foram condenados, Thomaz Bastos imaginou que ali “se
quebrava um paradigma”. Ilusão, como ele mesmo agora constata.
Márcio Thomaz Bastos foi por cinco anos, como se sabe, ministro da Justiça
do governo Lula. Entre seus grandes êxitos, a construção de uma Polícia
Federal objeto de admiração e respeito. Na tarefa, e no comando da Polícia
Federal, o delegado Paulo Lacerda.
O mesmo Paulo Lacerda ilhado e atacado por adversários de fora e de dentro
do governo nestes dias de 2008.
De dentro, por aqueles que temem o passado e o futuro, ou apenas o invejam e
jogam o jogo.
De fora do governo, pelos milhares que foram para a cadeia em operações da
PF, pelos que temem uma Polícia Federal forte e eficaz e, mais do que nunca,
por uma diminuta mas barulhenta corte de rábulas & Associados.
Atacado não pelos milhares de advogados do Brasil, mas por facções daquela
parcela que vive dos milhõe$ e milhõe$ de quem sempre tungou cofres
públicos. Tungou, tungavam, até então sem problemas.
A PF de Thomaz Bastos ganhou recursos, deixou de depender de esmolas de DEA
e CIA para operar, fechou as portas para a palpitologia ilegal do FBI.
Para quem imagina que se pode recortar a história e, assim, monitorá-la, um
lembrete: o Márcio Thomaz Bastos que arrancou a condenação dos assassinos de
Chico Mendes é o mesmo que esteve à frente do ministério da Justiça quando a
Polícia Federal se tornou objeto de respeito e admiração.
A mesma Polícia Federal que, duas décadas antes, não apenas não conseguiu
impedir o assassinato de Chico Mendes como por ele mesmo era acusada de
integrar “um complô” para matá-lo.
Sobre a Polícia Federal de hoje, a do pré e pós Satiagraha, Márcio Thomaz
Bastos alerta:
*- …Em alguns casos há uma clara tentativa de se atacar, de se destruir a
polícia federal…*
A propósito, quanto ao passado - mas sem que se descure do presente- vale
destacar o fator que Márcio Thomaz Bastos considera vital, aquele que
nascido na Europa e nos Estados Unidos no rastro do assassinato de Chico
Mendes, chegou ao Brasil como um vagalhão e levou à condenação de Darly e
Darci:
- …Então o que se levantou foi uma autoridade moral…
*Terra Magazine - Há 20 anos morria Chico Mendes e há 18 o senhor era
assistente de acusação, mas conduzia a acusação na prática, contra os
assassinos de Chico, Darly e Darci Alves da Silva. Passado tanto tempo…
*
Inesquecível. Aquele é um dos raros momentos na vida em que alguém… Em que
eu me senti falando em nome de todos, me senti falando em nome da
humanidade. É uma sensação impressionante, e inesquecível. O ambiente, as
pessoas, tudo…
**
*O ambiente, a Amazônia?*
sso. Você de repente fala por todos. Defender a memória do Chico, acusar os
que o mataram, era falar pela Amazônia, falar em nome da humanidade. Ali nós
tivemos claramente a explicitação do que era o bem e do que era o mal.
**
*E quanto ao resultado, do ponto de vista jurídico? *
A condenação, que se deu em tempo recorde, dois anos depois do crime,
ocorreu por vários fatores. Um deles é que somos ainda um país de
colonizados, então foi muito importante ali a pressão internacional, o
protesto do mundo todo, que criou o ambiente, a pressão pelo julgamento
rápido. Aquele julgamento criou, ou imaginávamos estar criando, um novo
paradigma, o de uma justiça eficiente, rápida…
**
*Foi só uma ilusão? *
Foi só uma ilusão. O Judiciário não funciona como deveria. É lento,
ineficaz, o Brasil tem um sistema, um Judiciário que fala para si mesmo, que
não está em conexão com o mundo exterior, com a sociedade, que é, em uma
palavra, solipsista. Um ano depois do julgamento, me lembro, escrevi um
artigo para a *Folha de S.Paulo*…
**
*Já sem ilusões? *
Já sem ilusões, já tínhamos voltado a ser o que sempre fomos. A mesma
lentidão, o mesmo sistema penitenciário, as mesmas cadeias lotadas, as
mesmas injustiças…
**
*E o senhor imaginava uma quebra de paradigma… *
]Encaminhamos modificações durante minha passagem pelo Ministério da
Justiça, defendemos uma ampla reforma do Judiciário. Já há uma maior
celeridade… Acho, cada vez mais, que o Conselho Nacional de Justiça deve
ter um papel muito importante nesse cenário. Outro dia participei de um
julgamento e está claro para mim que já há modificações importantes, já há
condições para maior celeridade, mas nem por isso podemos deixar de dizer
que o Judiciário, como um todo, não funciona adequadamente.
**
*A propósito, passados 20 anos, temos o Supremo nessa questão em pauta já há
meio ano, a “Operação Satiagraha”…*
Olha, quanto ao Supremo, esse Supremo, o de hoje, está mais próximo das
ruas, mais do que nunca esteve…
**
*Mas não lhe parece que está nas ruas mas ainda de toga? Não há um
descompasso muito grande entre o que o Supremo escuta, percebe, e o país
real? Não estamos aqui, claro, a sugerir que o Supremo atenda a “clamores
populares”, mas não lhe parece às vezes que eles estão ainda distantes,
isolados, presos às suas vaidades, sem perceber o que de verdade pulsa no
país real? *
Eu diria que, em tese, você tem razão, mas, para o bem e para o mal, hoje
ele está mais voltado para o povo de carne-e-osso, para a Nação real.
**
*A propósito de teses, há outras na praça; haveria uma “fascistização” em
curso, embalada por um “estado policialesco”… Proponho uma outra tese: a
hipotética “fascistização” não nasceria, antes de qualquer coisa, numa
sociedade que aceita a impunidade? Que não consegue levar ao fim os
julgamentos contra quem tem poder, dinheiro? Que vê se arrastar por anos,
décadas, até a prescrição, os processos contra quem tem grana? *
A propósito dessa tese basta lembrar das nossas raízes e costumes ibéricos,
voltarmos a Raimundo Faoro e o país patrimonialista exposto em *Os donos do
Poder* (*Nota da Redação: um clássico da sociologia, publicado em 1958*), ou
em *Raízes do Brasil*, por Sérgio Buarque de Holanda (*NR: outra leitura
clássica sobre o Brasil, esta de 1936*).
**
*Quanto às teses em curso… *
Outro dia li, alguém disse, algo em latim, algo sobre o “abuso não deve
impedir o uso”. Ou seja, se há excessos, incorreções eventuais, que isso
seja corrigido, que as corregedorias funcionem de verdade, não como meros
instrumentos com outros fins, mas o que não se pode fazer é buscar destruir
as instituições só porque agora elas funcionam um pouco melhor e, cumprindo
seu papel, passaram a incomodar quem antes se sentia confortável.
**
*Se bem entendi o senhor está falando da Polícia Federal? *
]Também. Em alguns casos há uma clara tentativa de se atacar, de se destruir
a Polícia Federal.
**
*… Tentativa de quem um dia foi preso, de quem teme ser preso um dia, de
quem teme uma polícia séria, forte, eficaz. Tentativa de uma certa porção do
establishment… *
… Certamente. Mas eu tenho certeza de que não conseguirão. Tenho muito
orgulho do trabalho que fizemos, que fez minha equipe, na recuperação da
Polícia Federal, da sua imagem, das suas ações…
**
*Uma polícia que até então tinha que usar verbas da DEA (NR: Drug
Enforcement Administration) para operar, que tinha um de seus braços, à
época chamava-se SOIP, construído com verbas do Departamento de Estado dos
EUA - leia-se CIA -, assim como o mesmo departamento de Estado havia “doado”
automóveis para o tal SOIP, não sei como se chama hoje… *
Pois é, mas tudo isso foi modificado, reformulado, a polícia foi
reaparelhada, ganhou autonomia, nossa polícia hoje se parece muito, tem a
eficácia (*risos*) dos “feds” (*NR: os policiais federais dos EUA*)…e eu
tenho a convicção de que ela continuará sendo eficiente. Estão tentando, mas
não vão conseguir destruí-la.
**
*Voltemos a Chico Mendes e às metáforas correlatas, estas que ligam os dois
tempos, aquele e o de hoje. Você lembra que lá em Xapuri, no Acre, onde
estávamos no julgamento, rádios, televisões, jornais, diziam, repetiam, que
lá estavam “5 mil pessoas acompanhando o julgamento”… e que, na verdade,
não estavam ali mais do que 300 pessoas que não fossem de Xapuri? *
Me lembro, perfeitamente. Foi isso mesmo.
**
*Lembra? Manchetes e mais manchetes. À época escrevi algo sobre isso,
“Holofotes na Selva”, sobre “as 5 mil pessoas” que na verdade nunca lá
estiveram. *
Me lembro, falava-se muito nesse número e de fato isso nunca existiu.
**
*Isso não diz muito sobre o que era, como funcionava, funciona a mídia? *
De fato… Mas ali era o mundo que queria falar, queria punir os criminosos,
era o Bem contra o Mal. Daí os exageros. Naquele caso, a mídia captou o
sentimento geral, aquela vontade de justiça que estava no ar.
**
*E o senhor soube que, à época, fotógrafos, cinegrafistas, jornalistas,
davam dinheiro ao filho pequeno (NR: Sandino, aos 4 anos) de Chico Mendes
para que ele posasse ao lado do túmulo do pai? E que pagavam picolés à
filha, também pequena (NR: Elenira, então com 6 anos, que hoje, já adulta,
escreveu para o Blog da Amazônia e Terra Magazine uma
carta
memória ao pai, Chico Mendes),
para que desfilasse nas ruas de Xapuri com um cartaz com a foto do pai?
Desta forma garantiam as manchetes, as fotos, as capas da noite ou do dia
seguinte. O senhor chegou a ver ou saber disso? *
Não, disso eu não soube… Eu estava muito isolado, concentrado na acusação,
como você deve se lembrar. Quase não fui às ruas, não acompanhei essa
movimentação externa ao julgamento. Vi, sabia que não estavam lá 5 mil
pessoas, mas não soube disso.
**
*Ali tínhamos um poder: o dos fazendeiros, grileiros, que era um poder
grande lá em Xapuri, no Acre, mas que era um poderzinho, um poder menor
diante da gigantesca força moral que se levantou com o assassinato do Chico
Mendes… *
Exatamente. Então o que se levantou foi uma autoridade moral que veio com
muita força do exterior, que levou todo o mundo do trabalho no Brasil a
Xapuri. Me lembro claramente do Lula chegando a Xapuri, da Marina Silva, do
Jair Meneguelli, que era presidente da CUT…
**
*Voltando às metáforas. Chico Mendes morreu na noite de 22 de dezembro. O
Brasil não o conhecia. Ele era um absoluto desconhecido e naquela noite… *
Eu não conhecia o Chico. Tinha ouvido falar, mas não o conhecia, não tinha
dimensão da sua luta. E sua luta pela Amazônia, pelos seringueiros, também
não tinha toda aquela dimensão, repercussão, antes da sua morte. O Lula
conhecia o Chico, sabia disso tudo, mas eu, não.
**
*Nem os jornalistas conheciam. Teve repórter (NR: Edílson Martins) que
tentou, sem conseguir, emplacar matéria no Jornal do Brasil sobre a morte
próxima, anunciada, de um líder dos seringueiros, o Chico Mendes. Aliás, na
noite em que o Chico morreu, o Brasil todo estava parado, assistindo,
debatendo excitado um outro assassinato. Naquela noite o Brasil parou para
saber, na novela das 8, quem havia matado Odete Roittman (NR: Beatriz
Segall, em personagem hiper malvada da novela Vale Tudo). *
Eu não sabia disso.
**
*O que ficou na sua memória, passados 20 anos do assassinato e 18 do
julgamento? *
Aquela sensação de que enquanto acusava os assassinos do Chico Mendes, eu
falava em nome da humanidade. Ali ficou claro, e nem sempre é assim, é muito
difícil ter isso tão claro, que tínhamos um embate do Bem contra o Mal.
Ficou também a impressão de que tínhamos quebrado um paradigma, o da
injustiça permanente, do Judiciário que não funciona, que é fechado em si
mesmo. Mas, apesar dos avanços que também são evidentes, vejo que foi só uma
ilusão.
Apesar disso, são essas lutas que dão sentido concreto à História. Todos
esses fatos se acumulam no tempo, esses valores pelos quais lutamos vão
sedimentando uma cultura, vão formando e inspirando outras mentes.
Em algum momento, as mudanças se precipitam e a realidade se transforma,
embora de maneira mais lenta do que gostaríamos. De modo que, passados 20
anos, Chico Mendes continua sendo uma inspiração e uma presença para todos
nós.
Mensagem enviada por: João Carlos Gomes
Grupo Pesquisador em Educação Ambiental (GPEA)
Facilitador: Rede Mato Grossense de Educação Ambiental (REMTEA)
Rede Brasileira de Educação Ambiental (REBEA).
Fonte:Terra Magazine.
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