Os últimos quatro meses foram muito reveladores dos dois mundos em que o mundo está dividido, o mundo dos ricos e o mundo dos pobres, separados mas unidos para que o mundo dos pobres continue a financiar o mundo dos ricos. Muito do que se desencadeou em 2008 vai continuar, sem qualquer solução de continuidade, em 2009 e mais além. O sociólogo Boaventura de Sousa Santos analisa algumas destas continuidades.
Boaventura de Sousa Santos
Tudo leva a crer que o ano de 2008 não termine em 31 de dezembro. O tempo inerte do calendário cederá o passo ao tempo incerto das transformações sociais. Muito do que se desencadeou em 2008 vai continuar, sem qualquer solução de continuidade, em 2009 e mais além. Analisemos algumas das principais continuidades.
Crise financeira ou o baile de gala da finança?
Os últimos quatro meses foram muito reveladores dos dois mundos em que o mundo está dividido, o mundo dos ricos e o mundo dos pobres, separados mas unidos para que o mundo dos pobres continue a financiar o mundo dos ricos. Dois exemplos. Fala-se de crise hoje porque atingiu o centro do sistema capitalista. Há trinta anos que os países do chamado terceiro mundo têm estado em crise financeira, solicitando, em vão, para a resolver, medidas muito semelhantes às que agora são generosamente adoptadas nos EUA e UE.
Por outro lado, os 700 billhões de dólares de bail-out estão sendo entregues aos bancos sem qualquer restrição e não chegam às famílias que não podem pagar a hipoteca da casa ou o cartão de crédito, que perdem o emprego e estão a congestionar os bancos alimentares e a “sopa dos pobres”. No país mais rico do mundo, um dos grandes bancos resgatado, o Glodman Sachs, acaba de declarar no seu relatório que neste ano fiscal pagou apenas 1% de impostos. Entretanto, foi apoiado com dinheiro dos cidadãos que pagam entre 30 e 40% de impostos. À luz disto, os cidadãos de todo o mundo devem saber que a crise financeira não está a ser resolvida para seu beneficio e que isso se tornará patente em 2009. Na Europa, os jovens gregos foram os primeiros a dar-se conta. É de prever que não sejam um caso isolado.
Zimbabwe: o fardo neocolonial
A crise do Zimbabwe é a melhor prova de que as contas coloniais estão ainda por saldar. A sua importância reside no fato de a questão que lhe subjaz - a questão da terra - pode incendiar-se proximamente noutros países (África do Sul, Namíbia, Moçambique, Colômbia, etc.). À data da independência (1980), 6.000 agricultores brancos possuiam 15.5 milhões de hectares, enquanto quatro milhões e meio de agricultores negros apenas detinham 4.5 milhões de hectares, quase toda terra árida. Os acordos da independência reconheceram esta injustiça e estabeleceram o compromisso de a Inglaterra financiar a redistribuição de terras. Tal nunca aconteceu.
Mugabe é um lider autoritário que suscita muito pouca simpatia e o seu poder pode estar chegando ao fim, mas a sua sobrevivência até agora assenta na ideia de justiça anti-colonial, com o que os zimbabwianos estão de acordo, mesmo que achem os métodos de Mugabe incorretos. Recentemente falou-se de intervenção militar, uma questão que divide os africanos e onde, mais uma vez, a mão dos EUA (African Command, recém-criado) pode estar presente. Seria um erro fatal não deixar a diplomacia africana seguir o seu curso.
Sessenta anos de direitos pouco humanos.
A celebração, em 2008, dos 60 anos da Declaração Universal, deixou um sabor amargo. Os avanços tiveram lugar mais nos discursos do que nas práticas. A esmagadora maioria da população do mundo não é sujeita de direitos humanos; é antes objeto de direitos humanos, objeto de discursos por parte dos reais sujeitos de direitos humanos, dos governos, fundações, ONGs, igrejas, etc. Será preciso um muito longo 2008 para inverter esta situação.
Cuba: o começo da transição?
Apesar de só no próximo ano se celebrarem os cinquenta anos da revolução cubana, falou-se muito de Cuba em 2008. A doença de Fidel levantou a questão da transição. De quê? e para quê? Vai ser um outro tema do longo 2008 e mais importante para o futuro do mundo do que se pode imaginar. É que se é possível dizer que a Europa e a América do Norte seriam hoje o que são sem a revolução cubana, já o mesmo se não pode dizer da América Latina, da África e da Ásia, ou seja, das regiões do planeta onde vive cerca de 85% da população mundial.
Fonte: Agência Carta Maior.
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