AI-5 representa dez anos de sombra na história, afirma José Dirceu
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THIAGO FARIA
colaboração para a Folha Online
Preso e exilado durante a ditadura militar no Brasil, o ex-ministro José Dirceu (Casa Civil) não poupa críticas ao Ato Institucional nº5, considerado o pior decreto entre os 17 emitidos durante o regime. Segundo ele, os dez anos de sua duração --de 1968 a 1978-- constituíram um período de "sombra" na história do país.
Em entrevista por e-mail à Folha Online, Dirceu lembra que o ato serviu para que os militares prolongassem sua permanência na prisão e diz que a herança deixada pelo ato foi a "pior possível". "Era, praticamente, o anúncio público da sentença de morte de todos os que ousaram se opor ao regime e combater a opressão", afirma.
Diante do desconhecimento de 82% dos brasileiros a respeito do que foi o AI-5, segundo pesquisa Datafolha, Dirceu pede aos jovens que busquem informações sobre o ato. "A forma de compreender o presente, eu diria, é ler o passado."
Leia abaixo a íntegra da entrevista com o ex-ministro da Casa Civil:
Folha Online - Como o senhor viu a promulgação do AI-5 e o que representou para quem continuou no país lutando contra a ditadura?
José Dirceu - Quando o AI-5 foi promulgado, em 13 de dezembro de 1968, eu estava preso pela ditadura militar. Fôramos presos, eu e outros companheiros, durante o Congresso da UNE, em Ibiúna, realizado dois meses antes. O ato foi um dos instrumentos utilizados para a nossa permanência na cadeia, porque impossibilitou a nossa defesa. Dali, eu sairia quase um ano depois, em setembro de 1969, como um dos 15 presos políticos trocados pela libertação do embaixador americano Charles Burke Elbrick.
Para nós, brasileiros que continuamos na resistência à ditadura aqui e no exílio, o ato que implantou a mais cruel e duradoura ditadura da nossa história era uma aberração jurídica, até porque impossibilitava qualquer apreciação do Judiciário ou do Legislativo às medidas tomadas com base nele. A promulgação do AI-5 significou a instauração do terror, da tortura e do assassinato político no Brasil. Era, praticamente, o anúncio público da sentença de morte de todos os que ousaram se opor ao regime e combater a opressão. Durante os tenebrosos 10 anos em que vigorou, o ato possibilitou a criminalização de inocentes, perseguições, prisões ilegais, tortura e assassinato de cidadãos.
Folha Online - A que o senhor atribui esse "endurecimento" do regime?
Dirceu - O AI-5 foi um "golpe dentro do golpe", como dizemos hoje, e por mais triste e aterrorizador que seja essa expressão que já se incorporou à nossa história. Foi a última cartada do núcleo civil-militar que dera o golpe em 1964 e que perdera espaço, após a sucessão do marechal Castelo Branco na presidência da República pelo marechal Costa e Silva, também indicado pelo Altom pelo Alto Comando das Forças Armadas. É errada a interpretação e mentirosa a versão de que o AI-5 veio como uma reação à esquerda, à luta armada e/ou oposição que naquele momento tomava as ruas contra o regime ditatorial.
Como exemplo do que afirmo, vale lembrar que naquele momento da edição do ato, até mesmo dois dos principais líderes civis golpistas, os governadores Magalhães Pinto, de Minas Gerais, e Carlos Lacerda, do Estado da Guanabara, além de vários outros setores que tinham participado do golpe, bem como segmentos da imprensa e do empresariado, haviam rompido com a ditadura militar por serem contra ou questionarem a ruptura da ordem democrática.
Folha Online - Qual é a herança deixada pelo AI-5 para a sociedade atual?
Dirceu - A pior possível, mas os números falam por mim: centenas de políticos tiveram mandato cassado e os direitos políticos suspensos; três ministros do STF aposentados compulsoriamente; 1.577 cidadãos punidos; 548 funcionários civis aposentados do serviço público, 334 sumariamente demitidos e 241 militares reformados. E, principalmente, 143 brasileiros e brasileiras que continuam desaparecidos. Milhares de cidadãos foram presos, torturados e assassinados. Sem falar nos 35 mil exilados, muitos que partiram para nunca mais voltar.
No âmbito da cultura e da liberdade de expressão, foram proibidos mais de 500 filmes e telenovelas, 450 peças teatrais, 200 livros e 500 letras de música. Os jornais receberam censores nas suas oficinas. A efervescência cultural daqueles anos --que, não fosse o AI-5, desembocaria, talvez, numa nova Semana de Arte Moderna-- foi praticamente arrasada, inclusive, com artistas assassinados ou exilados: Chico Buarque, em Roma, Caetano Veloso e Gilberto Gil, em Paris, muitos em Buenos Aires, nossos escritores na Europa....
Na minha visão o AI-5 constituiu 10 anos de sombras. E essa é a mais triste herança dele. O ato possibilitou a instauração de uma verdadeira Inquisição no país. A ditadura militar representa para o país 20 anos de perda de vida institucional e democrática. Nunca é demais repetir que foram as forças da resistência --dos estudantes, da sociedade civil, dos artistas e intelectuais, dos partidos de oposição, das organizações clandestinas, dos movimentos sindicais, da Igreja Católica entre outros-- que levaram à derrocada da ditadura e possibilitaram a revogação do AI-5, a conquista da anistia política e depois as eleições de 82, 85 e 86, fundamentais para a redemocratização, efetivamente, reconquistada com a Constituição de 1988 elaborada pela Assembléia Nacional Constituinte que funcionou nos dois anos anteriores.
Folha Online - O ministro Tarso Genro (Justiça) já afirmou que é preciso acabar com o mito de que o AI-5 foi criado apenas pelos militares, o senhor concorda? Quem mais apoiou e é possível saber o por quê?
Dirceu - Não vou comentar especificamente as declarações e análises do ministro da Justiça. O AI-5, como eu disse antes, foi resultado do endurecimento da ditadura instaurada pelo golpe militar quatro anos antes. Quanto ao apoio à sua vigência, é evidente que não teria durado tanto, nem causado tanto desastre e tido tantos efeitos nocivos, se segmentos civis da sociedade brasileira não o tivessem apoiado e à ditadura. Muitos sem o conhecimento das barbaridades cometidas, outros realmente delas, mas mesmo assim ajudaram a montar o aparato de repressão do Estado, as Obans e DOI-CODIs [órgãos de combate aos opositores do regime] da vida que em nome do Estado, mas à revelia dele, da democracia e da legalidade, prenderam, aterrorizaram, torturaram e assassinaram.
Mas não nos esqueçamos que muitos militares se posicionaram contra o regime também. Não podemos fazer uma caça às bruxas, apontando culpados e minimizando a culpa do Estado, principalmente porque posicionamentos individuais não representam a posição de uma instituição inteira.
Folha Online - Como explicar o que representou o AI-5 aos jovens que não conheceram a ditadura?
Dirceu - É preciso mostrar-lhes que à luz do Estado de Direito, da legalidade, da democracia e das liberdades públicas hoje e já de há muito tempo consagradas como um direito universal. O AI-5 foi o instrumento da mais completa e autoritária forma de opressão que o país já conheceu. Foi, mais do que os outros instrumentos da ditadura que vigoraram antes de 1968 e depois de 1978 (período de vigência do ato) que permitiu que jovens idealistas e cidadãos desse país, fossem presos, torturados e mortos, apenas porque lutavam pela liberdade, seja de expressão, de votar nos seus representantes, seja de construir um país mais justo. O AI-5 transformou, para sempre, a vida de jovens punidos porque sonharam e lutaram por um país melhor.
Aos jovens, hoje, talvez, seja muito difícil compreender a realidade daqueles tempos. Eles nasceram num país livre e democrático. Possuem a liberdade de expressar o que sentem, de participar de organizações as mais diversas e de lutar pelas causas às quais acreditam legítimas e válidas. A realidade histórica atual tem suas bandeiras e os convida à luta. Pediria a eles, que se informem sobre o passado, sobre esses anos sombrios da nossa história. A forma de compreender o presente, eu diria, é ler o passado.
Fonte:Blog do Zé Dirceu.
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