Gilberto Yoshinaga, de Nagoya
Com documentos, roupas e outros poucos pertences guardados em mochilas, Flávio Ideiti Murakami e sua esposa, Érica Alves Kosaka, perambulam de bicicleta há três meses pelas ruas e estradas do Japão. Desempregados, já pedalaram centenas de quilômetros à procura de trabalho. Dormem em praças públicas, vivem de doações e representam, em pleno ano do centenário da imigração japonesa ao Brasil, um triste capítulo para a recente história do “fenômeno dekasségui”: são as primeiras vítimas de uma crise econômica que, a espantosa velocidade, tem pulverizado os sonhos de muitos brasileiros que atravessaram o mundo.
Quando decidiu ir trabalhar no Japão, Murakami, nascido em Bauru (SP), tinha um sonho semelhante ao de todo dekasségui, juntar dinheiro para retornar ao Brasil o mais rápido possível e comprar uma casa. “Pensava que no Japão seria fácil ganhar bastante dinheiro rapidamente. Tudo não passou de uma ilusão, um conto de fadas”, desabafa. “Agora, só quero ir embora do Japão, onde nunca mais pretendo pôr os pés.” Murakami está no Japão há cinco anos, quatro a menos que a esposa. No período, fizeram várias remessas de dinheiro para familiares que estão no Brasil, mas não conseguiram economizar muito. “Os salários já não são os mesmos de antes, o custo de vida é muito alto e os impostos, também”, argumenta Érica, que até perder o emprego mantinha no Japão dois filhos de outro casamento. “Eles não merecem morar na rua e, por isso, resolvi mandá-los de volta ao Brasil. Mas o dinheiro acabou. Agora, preciso trabalhar para poder comprar a minha passagem de volta, mas não encontro serviço.”
De fato, o País do Sol Nascente não é mais o mesmo eldorado que se noticiava no início da década de 1990, quando os dekasséguis facilmente ganhavam salários em torno de 5 mil dólares e, com dois ou três anos de trabalho, conseguiam poupar o suficiente para comprar um imóvel ou montar um negócio próprio no Brasil. Desde então, uma série de fatores fez o cenário piorar. A crescente concorrência da mão-de-obra oriunda de outros países asiáticos, como China, Tailândia, Filipinas e Vietnã, fez os salários caírem – a média salarial, hoje, oscila entre 2 mil e 3 mil dólares. Além disso, os impostos e o custo de vida aumentaram significativamente.
O drama de Murakami e Érica tem se repetido com freqüência entre os 317 mil brasileiros que moram no Japão. Nos últimos doze meses, o iene, a moeda local, valorizou mais de 20% em relação ao dólar. Somada à queda da demanda nos Estados Unidos, principal destino das exportações japonesas, a valorização afetou as grandes empresas do país, principalmente as montadoras, que iniciaram uma onda de demissões. A maioria dos dekasséguis trabalha no setor automobilístico. Estima-se que ao menos 50 mil brasileiros estarão desempregados até o fechamento do ano fiscal japonês, no fim de março de 2009. Segundo previsões do governo japonês, a crise só vai começar a ser revertida em 2010.
Em várias cidades onde a concentração de estrangeiros é numerosa, já não são raros os casos de brasileiros dormindo em bancos de praças ou debaixo de pontes e viadutos. Alguns fazem do carro sua “casa”. Como milhares ainda cumprem aviso prévio, nos próximos meses o contingente de dekasséguis desabrigados tende a aumentar. Explica-se: boa parte reside em apartamentos fornecidos pelas “empreiteiras” (nome como são conhecidas as agências de relocação de mão-de-obra). Ao se desligar dos empregos, são forçados a deixar esses apartamentos. Por trabalhar em mais de uma ocupação e não conseguir comprovar renda fixa – um dos rigorosos requisitos para alugar outro imóvel –, acabam na rua.
Em raros casos há empreiteiras compreensivas que permitem que o ex-funcionário continue no apartamento até conseguir outra moradia. Na maioria das vezes, porém, esse tipo de empresa explora a desinformação dos brasileiros e age com truculência, respaldada pelo descaso das autoridades. Murakami e a esposa, por exemplo, foram pressionados a deixar o apartamento uma semana após se desligarem do emprego – período inferior aos 30 dias estipulados pela lei japonesa. E, antes mesmo de o prazo terminar, a empreiteira confiscou o último salário do casal e trocou as fechaduras do imóvel, sem permitir que os móveis e objetos pessoais fossem retirados. “Ficaram até com meus documentos. Na polícia e na prefeitura, disseram que não podem fazer nada”, lamenta o brasileiro, que tem pouca familiaridade com o idioma japonês.
Apreensivo com a crise na comunidade brasileira, o cônsul-geral do Brasil em Nagoya (província de Aichi), Geraldo Affonso Muzzi, resolveu emitir, entre o fim de novembro e o início de dezembro, cartas de “alerta” a cerca de 50 empreiteiras. “Solicitei para que se lembrem de suas responsabilidades como empregadores e não deixem os brasileiros desamparados”, explica ele, que também contatou as autoridades japonesas.
Segundo Muzzi, alguns pedidos de ajuda já começaram a chegar à repartição consular. “Estamos sabendo de pessoas morando nas ruas ou dentro de carros. É triste, mas não temos como abrir as portas do consulado para abrigá-las”, afirma o cônsul, ao salientar que os funcionários orientam os brasileiros sobre como podem se inscrever em programas japoneses de assistência social. Um último expediente é solicitar do consulado uma passagem aérea de repatriação, mas para isso é preciso enquadrar-se em critérios que atestem sua condição de desvalido.
Para parte dos dekasséguis, a única saída tem sido o aeroporto. Nos próximos três meses, os vôos para o Brasil estão praticamente lotados. “A venda de passagens aéreas é o único negócio que anda aquecido na comunidade brasileira. A procura nunca esteve tão grande em tão pouco tempo”, afirma Oscar Tence, dono de duas agências de viagens. Tence sabe do que fala. Além das agências, é dono de duas lojas de roupa, dois restaurantes, dois pequenos mercados e duas revendedoras de produtos de origem filipina.
No Japão desde 1991, o comerciante trabalhou como operário durante quatro anos, antes de montar seu primeiro negócio, e diz se sentir “traído” pelas circunstâncias. “Investi aqui tudo o que conquistei em dezessete anos de trabalho, para gerar empregos e movimentar a economia. Isso é o que recebo em troca”, desabafa o comerciante, que prevê para 2009 um ano “nebuloso” para os brasileiros que ficarem no Japão. “O que mais me incomoda é a sensação de impotência, é sentir que tudo o que construí está prestes a ruir e não há nada que eu possa fazer para evitar o pior.”
Um dos termômetros da crise que assola os brasileiros no Japão é o padre Evaristo Higa, de Hamamatsu (província de Shizuoka), a cidade mais “verde-amarela” do país, com cerca de 20 mil moradores brasileiros. Há catorze anos, ele coordena o Grupo Esperança, uma equipe de voluntários que distribui alimentos, roupas e medicamentos a moradores de rua japoneses. “Fazemos esse trabalho todos os sábados e nunca falhamos, mesmo debaixo de chuva ou neve”, assegura.
Espécie de “porto seguro” dos brasileiros desamparados, padre Higa está preocupado com o início de 2009. “Se a economia mantiver esta tendência de declínio, a situação vai ficar realmente muito preocupante nos próximos meses”, prevê. Há quinze anos no Japão, ele conta já ter visto outras crises anteriores, mas diz que elas não foram tão graves. “Felizmente, nestes momentos, o espírito de solidariedade dos brasileiros se intensifica. Tenho recebido doações de mantimentos de todo o Japão e o número de voluntários também aumentou.”
Fonte: Carta Capital.
(Crédito da foto: Gilberto Yoshinaga)
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