terça-feira, 30 de dezembro de 2008

DAS CINZAS DE GAZA.

Tariq Ali.

Perante o último ataque de Israel, a única opção para o nacionalismo palestiniano é abraçar a solução de um só Estado, a exigência de que o país e os seus recursos sejam divididos equitativamente, na proporção de duas populações que são iguais em tamanho - não 80% uma e 20% a outra, uma desapropriação de tal iniquidade, à qual que nenhum povo que tenha auto-estima jamais se vai submeter a longo prazo.

Por Tariq Ali, publicado no Guardian

O ataque a Gaza, planeado há seis meses e executado no momento certo, tinha em grande medida, como observou correctamente Neve Gordon, o objectivo de ajudar os partidos candidatos à reeleição a vencer as próximas eleições israelitas. Os mortos palestinianos são pouco mais que alimento eleitoral nesta competição entre a direita e a extrema-direita em Israel. Washington, e os seus aliados da União Europeia, perfeitamente cientes de que Gaza estava na iminência de ser atacada, tal como no Líbano em 2006, sentaram-se para ver.

Washington, como é seu hábito, culpa os palestinianos pró-Hamas, com Obama e Bush cantando o mesmo hino da pauta da AIPAC [American Israeli Political Activity Committee, Comité Americano Israelita de Actividade Política, o lóbi judeu nos EUA]. Os políticos da UE, tendo observado o cerco, a punição colectiva a Gaza, o assassinato de civis, etc. (para todos os sangrentos detalhes, leiam o assustador ensaio da académica de Harvard Sara Roy publicado na London Review of Books), estavam convencidos que foram os ataques com foguetes que "provocaram" Israel, mas apelaram aos dois lados a porem fim à violência, sem obter qualquer efeito. A velha ditadura de Mubarak no Egipto e os islamistas favoritos da Nato de Ankara não registaram sequer um simbólico protesto, chamando os seus embaixadores em Israel. A China e a Rússia não pediram uma reunião do Conselho de Segurança da ONU para discutir a crise.
Diante da apatia oficial, uma consequência deste último ataque será inflamar as comunidades muçulmanas através do mundo e aumentar as fileiras das organizações que o Ocidente afirma estar a combater na "guerra contra o terror".

O banho de sangue em Gaza levanta questões de estratégia mais amplas para ambos os lados, que se relacionam com a história recente. Um facto que é preciso reconhecer é que não há Autoridade Palestiniana. Nunca houve. Os Acordos de Oslo foram um absoluto desastre para os palestinianos, criando um conjunto de guetos desligados e encolhidos sob permanente vigilância de um agente brutal. A OLP, antes a depositária da esperança palestiniana, tornou-se menos que uma pedinte do dinheiro da UE.
O entusiasmo do Ocidente pela democracia termina sempre que os que se opõem às suas políticas ganham eleições. O Ocidente e Israel tentaram de todas as formas garantir uma vitória da Fatah: os eleitores palestinianos rejeitaram o concerto de ameaças e de subornos da "comunidade internacional", numa campanha que viu a detenção rotineira de membros do Hamas e de outros oposicionistas pelo exército israelita, os seus cartazes confiscados ou destruídos, os fundos da UE e dos EUA a serem canalizados para a campanha da Fatah, e os deputados do Congresso dos EUA a anunciar que o Hamas não devia ser autorizado a candidatar-se.
Até a data da eleição foi determinada pela vontade de burlar o resultado. Marcada para o Verão de 2005, foi adiada até Janeiro de 2006 para dar a Abbas tempo para distribuir vantagens em Gaza - nas palavras de um oficial de informações egípcio, "o público vai assim apoiar a Autoridade contra o Hamas".

O desejo popular de que houvesse uma vassourada depois de dez anos de corrupção, intimidação e arrogância sob a Fatah provou-se mais forte que tudo isto. A vitória eleitoral do Hamas foi tratada pelos governantes e jornalistas do mundo atlântico como um sinal deplorável do fundamentalismo crescente, e um golpe temível às perspectivas de paz com Israel. Foram aplicadas pressões financeiras e diplomáticas imediatas para forçar o Hamas a adoptar as mesmas políticas do partido que derrotara pelo voto. Sem compromissos com a combinação de ganância e de dependência da Autoridade Palestiniana, caracterizada pelo auto-enriquecimento dos seus servis porta-vozes e polícias e a sua concordância com um "processo de paz" que só trouxe mais expropriação e miséria à população, o Hamas ofereceu a alternativa de um exemplo simples. Sem ter qualquer dos recursos da sua rival, instalou clínicas, escolas, hospitais, centros de formação profissional e programas de bem-estar para os pobres. Os seus líderes e quadros viviam frugalmente, dentro dos padrões do povo comum.

Foi esta resposta às necessidades do dia-a-dia que conquistou para o Hamas a sua ampla base de apoio, não a recitação diária dos versos do Alcorão. É menos claro até que ponto a sua conduta na segunda Intifada lhe deu um grau adicional de credibilidade. Os seus ataques armados contra Israel, como os da Brigada dos Mártires de Al-Aqsa, da Fatah, e os da Jihad Islâmica, foram retaliações contra uma ocupação muito mais mortal que antes. Medidos à escala dos assassinatos do exército israelita, os ataques palestinianos foram poucos e espaçados. A assimetria ficou duramente exposta durante o cessar-fogo unilateral do Hamas, iniciado em Junho de 2003 e mantido durante todo o Verão, apesar da campanha israelita de raids e de detenções em massa que se seguiu, na qual cerca de 300 quadros do Hamas foram apanhados na Cisjordânia.

Em 19 de Agosto de 2003, uma autoproclamada célula do "Hamas" em Hebron, desautorizada e denunciada pela liderança oficial, fez explodir um autocarro em Jerusalém ocidental, ao que Israel prontamente respondeu com o assassinato do negociador do cessar-fogo do Hamas, Ismail Abu Shanab. O Hamas, por sua vez, ripostou. Em resposta, a Autoridade palestiniana e os estados árabes cortaram os fundos às suas obras de caridade e, em Setembro de 2003, a UE declarou todo o movimento Hamas como uma organização terrorista - uma antiga exigência de Tel Aviv.

O que realmente distinguiu o Hamas, num combate desigual e sem esperança, não foi o uso de bombistas suicidas, uma prática que contava com muitos competidores, mas a sua superior disciplina - demonstrada pela capacidade de impor um auto-declarado cessar-fogo contra Israel no ano passado. Todas as mortes civis devem ser condenadas, mas como Israel é o seu principal adepto, a hipocrisia euro-americana serve apenas para se desmascarar. A maior marca de assassinatos está no outro lado, brutalmente cravada na Palestina por um exército moderno equipado de jactos, tanques e mísseis, na mais prolongada opressão armada da história moderna.

"Ninguém pode rejeitar ou condenar a revolta de um povo que sofreu a força bruta de uma ocupação militar durante 45 anos", disse o general Shlomo Gazit, ex-chefe de informações militares israelita, em 1993. O ressentimento real da UE e dos EUA em relação ao Hamas é que este sempre se recusou a aceitar a capitulação dos Acordos de Oslo, e rejeitou cada um dos esforços subsequentes, de Taba a Genebra, de dissimular as suas calamidades diante dos palestinianos. A prioridade do Ocidente desde então foi romper a resistência. O corte de fundos à Autoridade Palestiniana foi uma evidente arma para forçar a submissão do Hamas. Outra foi estimular os poderes presidenciais de Abbas - publicamente escolhido para o cargo por Washington, como Karzai foi para Cabul - à custa do conselho legislativo.

Não foi feito qualquer esforço sério para negociar com a liderança eleita dos palestinianos. Duvido que o Hamas pudesse ter sido rapidamente subornado aos interesses ocidentais e israelitas, mas não seria sem precedentes, se acontecesse. A herança programática do Hamas permanece hipotecada à mais fatal fraqueza do nacionalismo palestiniano: a crença de que as escolhas políticas que se lhe apresentam são a rejeição da existência de Israel no todo, ou a aceitação de restos desmembrados de um quinto do país. Da fantasia maximalista do primeiro ao patético minimalismo do segundo, o caminho é muito curto, como a história da Fatah mostrou.

O teste para o Hamas não é se pode ser domesticado para a satisfação da opinião ocidental, mas se pode romper com esta tradição paralisante. Logo depois da vitória eleitoral do Hamas, um palestiniano perguntou-me em público o que eu faria no lugar deles. "Dissolvia a Autoridade Palestiniana", foi a minha resposta, "e punha fim à fantasia". Fazê-lo iria situar a causa nacional palestiniana na sua base correcta, com a exigência de que o país e os seus recursos sejam divididos equitativamente, na proporção de duas populações que são iguais em tamanho - não 80% uma e 20% a outra, uma desapropriação de tal iniquidade, à qual que nenhum povo que tenha auto-estima jamais se vai submeter a longo prazo. A única alternativa aceitável é um só Estado tanto para judeus quanto para palestinianos, no qual as extorsões do sionismo sejam reparadas. Não há outro caminho.

E os cidadãos israelitas podiam ponderar as seguintes palavras de Shakespeare (no "Mercador de Veneza"), que alterei ligeiramente:

"Sou um palestiniano. Os palestinianos não têm olhos? Os palestinianos não têm mãos, órgãos, dimensões, sentidos, inclinações, paixões? Não ingerem os mesmos alimentos, não se ferem com as armas, não estão sujeitos às mesmas doenças, não se curam com os mesmos remédios, não se aquecem e refrescam com o mesmo Verão e o mesmo Inverno que aquecem e refrescam os judeus? Se nos espetardes, não sangramos? Se nos fizerdes cócegas, não rimos? Se nos derdes veneno, não morremos? E se nos ofenderdes, não devemos vingar-nos? Se em tudo o mais somos iguais a vós, teremos de ser iguais também a esse respeito... Hei-de por em prática a maldade que me ensinastes, sendo de censurar se eu não fizer melhor do que a encomenda."1

Tradução de Luis Leiria

1A passagem original de "O Mercador de Veneza" é a seguinte: "E tudo, por quê? Por eu ser judeu. Os judeus não têm olhos? Os judeus não têm mãos, órgãos, dimensões, sentidos, inclinações, paixões? Não ingerem os mesmos alimentos, não se ferem com as armas, não estão sujeitos às mesmas doenças, não se curam com os mesmos remédios, não se aquecem e refrescam com o mesmo verão e o mesmo inverno que aquecem e refrescam os cristãos? Se nos espetardes, não sangramos? Se nos fizerdes cócegas, não rimos? Se nos derdes veneno, não morremos? E se nos ofenderdes, não devemos vingar-nos? Se em tudo o mais somos iguais a vós, teremos de ser iguais também a esse respeito. Se um judeu ofende a um cristão, qual é a humildade deste? Vingança. Se um cristão ofender a um judeu, qual deve ser a paciência deste, de acordo com o exemplo do cristão? Ora, vingança. Hei de por em prática a maldade que me ensinastes, sendo de censurar se eu não fizer melhor do que a encomenda."
Fonte: Blog Esquerda.net.

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