Seis anos e milhares de torturados e assassinados depois
Roberto Montoya
O relatório bipartidário do Comité das Forças Armadas do Senado estado-unidense chega com demasiado atraso, com seis anos de atraso. Quantos milhares de pessoas foram humilhadas, torturadas, quando não assassinadas, durante estes anos no Afeganistão, no Iraque, em Guantánamo ou nas prisões secretas da CIA?
No momento em que se estão a retirar do poder os responsáveis políticos principais das violações aos direitos humanos que agora são denunciadas no relatório, democratas e republicanos descobrem os delitos que cometeram. Nem nesse relatório, nem seguramente nos debates que sejam abertos a partir dele se mencionarão, contudo, as corresponsabilidades políticas.
Ao Partido Democrata também não lhe interessará que seja recordado publicamente que o seu silêncio de todos estes anos permitiu cobrir com um manto de impunidade os autores da trama legal que deu luz verde à tortura generalizada, aos que inventaram o laboratório de Guantánamo, aos verdadeiros responsáveis de actos como os de Abu Ghraib, aos que projectaram e executaram o plano internacional de sequestros e voos da CIA.
O voto democrata não enfrentou a Ordem Militar de 13 de Novembro de 2001 de George W. Bush sobre a detenção, tratamento e julgamento de certos não cidadãos na guerra contra o terrorismo, pelo que o comandante em chefe dos EUA decidiu unilateralmente não reconhecer para os prisioneiros da sua cruzada os direitos que as Convenções de Genebra outorgam desde 1949 a todos os prisioneiros de guerra. Bush inventou para eles o conceito de combatentes ilegais, estipulando que só poderiam ser julgados por tribunais militares especiais, recusando explicitamente o seu direito a recorrer, «nem nos Estados Unidos, nem em nenhum outro país, perante nenhum tribunal internacional».
Graças ao trabalho tenaz de importantes organizações defensoras dos direitos civis nos Estados Unidos, como a American Civil Liberties Union (ACLU), conseguiu-se desclassificar já há anos memorandos chave do Pentágono, do Ministério de Justiça e da Secretaria de Estado, nos quais desde Donald Rumsfeld, até ao então colaborador e depois procurador-geral do Estado, Alberto R. Gonzales, e muitos funcionários de alto nível trocavam ideias até encontrar a fórmula jurídica que deu luz verde total às suas forças armadas e serviços de inteligência no tratamento dos prisioneiros, deixando todos os responsáveis, desde o torturador de base, até ao próprio comandante em chefe, cobertos por uma blindagem legal absoluta perante qualquer tipo de denúncia que pudesse ser apresentada perante tribunais nacionais ou internacionais. Os documentos são conhecidos e portam assinaturas concretas, como as leis que foram promulgadas com esse fim.
DENÚNCIAS E SILÊNCIOS
Apesar disso, a direcção do Partido Democrata não empreendeu em nenhum momento da denúncia desses factos uma batalha fundamental contra a Administração Bush, como não deu batalha contra a nova doutrina militar das guerras preventivas, nem contra a autorização da guerra contra o Iraque justificada com mentiras evidentes, nem contra tantas e tantas restrições às liberdades democráticas dos seus próprios cidadãos. Muito poucos membros da Câmara de Representantes ou do Senado saíram do guião, muito poucos se arriscaram a ser chamados de antipatriotas, de quebrar a unidade nacional face a uma cruzada salvadora da humanidade como aquela.
Desde pouco depois de ter começado a guerra contra o terror depois do 11-S, lançada a nível planetário e por tempo indefinido pela Administração Bush na sua proclamada luta do Bem contra o Mal, organizações humanitárias tão pouco suspeitas de radicais como a Human Rights Watch ou a Amnistia Internacional começaram a denunciar as humilhações e torturas a que as tropas estado-unidenses submetiam os prisioneiros capturados no Afeganistão.
Tinham passado apenas dias desde o início da guerra no Afeganistão, em Outubro de 2001, quando já estes organismos defensores dos direitos humanos recolhiam depoimentos dos sistemáticos abusos contra a população civil e das humilhações, torturas e assassinatos de prisioneiros suspeitos de pertencer às forças taliban ou aos milicianos da Al Qaeda de Osama bin Laden. Esta situação, somada aos constantes danos colaterais entre a população civil, não faria mais que piorar.
Embora se viessem a conhecer algum tempo depois, dessa época datam também os primeiros sequestros da CIA no estrangeiro e os traslados das vítimas para bases militares próprias ou prisões em países aliados dispostos a torturá-las sob supervisão da agência, longe dos tribunais federais estado-unidenses. Este plano estrela da CIA para capturar nas suas guaridas terroristas tão dispersos geograficamente como os da Al Qaeda, implicou a operação encoberta mais gigantesca realizada pelos EUA desde a primeira guerra do Afeganistão nos anos 1980. Paradoxalmente naquela, na qual se batalhava para derrotar militarmente e expulsar o Exército Vermelho do Afeganistão, os EUA tinha como aliados fundamentais milhares de integristas islâmicos, como o mesmíssimo Osama bin Laden. Duas décadas depois, os EUA voltavam à região para combater o monstro que tinham ajudado a crescer.
LIÇÕES PARA O FUTURO
Donald Rumsfeld, um dos membros da Administração Bush que pior sai retratado no actual relatório da comissão do Senado, não se viu obrigado a abandonar o seu cargo precisamente por algum dos factos pelos quais é agora acusado e que já estavam suficientemente documentados desde há anos e denunciados publicamente por meios de comunicação e livros sólidos. Não, Rumsfeld sobreviveu a todas aquelas denúncias, acusou algumas maçãs podres do Exército dos actos mais repudiáveis que saíram à luz pública, como foi o caso de Abu Ghraib, e só caiu quando os próprios comandos militares pediram a sua cabeça pela sua manifesta incapacidade como estratega militar nas guerras do Afeganistão e do Iraque.
Sem dúvida, o actual relatório é valioso, recompila cronologicamente alguns dos documentos oficiais chave que permitiram semelhante violação dos direitos humanos – incluída a citada Ordem Militar de Bush de 2001 – mas só teria transcendência e suporia um real exemplo de rectificação perante o mundo inteiro, ainda que fosse muito tardia, se não ficasse em águas de bacalhau, se servisse para depurar responsabilidades políticas e penais e, sobretudo, se servisse para mudar radicalmente, com o novo Governo, a postura dos EUA a respeito dos direitos humanos e do Direito Internacional.
Fonte: El Mundo/Informação Alternativa.
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