Por Henrique Costa.
Já se tornou rotina a profusão de baixaria e sensacionalismo nas programações das emissoras de TV brasileiras, tão ávidas por audiência que argumento nenhum parece lhes convencer de que todos os limites já foram ultrapassados. Ainda mais melancólica é a impunidade que fomenta esse insistente desrespeito aos direitos humanos e às obrigações legais de suas concessões públicas. Entidades ligadas à defesa dos direitos humanos, movimentos sociais e organizações ligadas à área da comunicação tem, entretanto, mostrado que a sociedade brasileira não está apática diante desta realidade e vêm aumentando o número de denúncias destes abusos.
Um bom apanhado de casos de violações a direitos fundamentais encontra-se agora em um recém-produzido documento preparado pelo Intervozes – Coletivo Brasil de Comunicação Social com base em denúncias reunidas por diversas entidades, algumas delas protocoladas na Justiça. O dossiê foi apresentado durante audiência pública na Câmara dos Deputados no último dia 27 de novembro, que discutiu a renovação das concessões vencidas em 2007 – cinco das Organizações Globo e as “cabeças” das redes Record e Bandeirantes. Por esse motivo, apenas as denúncias de abusos das três emissoras constam no relatório, que poderia dedicar, ainda, merecido espaço para SBT, RedeTV!, entre outras que não se furtaram à barbárie nos últimos anos.
“O capítulo que trata das denúncias de violação de direitos humanos no conteúdo das programações é resultado de um trabalho que vem sendo feito de forma cada vez mais organizada e sistemática por diferentes organizações da sociedade civil, com destaque para a Campanha Quem Financia a Baixaria É Contra a Cidadania”, conta Bia Barbosa, do Intervozes. Respaldado por uma série de entidades da sociedade civil, como o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem-Terra (MST), o Conselho Federal de Psicologia (CFP) e a Central Única dos Trabalhadores (CUT), a iniciativa traz uma importante contribuição à discussão sobre controle social da mídia.
Ainda rechaçadas pelo empresariado de comunicação brasileiro como tentativas de “censura”, as ações de controle social do uso das concessões de TV ainda constituem um avanço tímido diante do laissez-faire instalado na República. Mas as experiências relatadas no dossiê e a própria realização da audiência de novembro na Câmara devem ser comemoradas.
“Esse é um marco da radiodifusão brasileira”, diz Laurindo Lalo Leal Filho, professor da Escola de Comunicações e Artes da USP e ouvidor da TV Brasil, avaliando a experiência da audiência pública. “Até hoje não havia ocorrido nenhuma ação institucional que mudasse a forma como são outorgadas as concessões no Brasil, tradicionalmente feitas de maneira burocrática. É um passo ainda pequeno, mas significativo.”
Preconceito, violência, baixaria...
“Há um consenso entre as entidades em relação ao papel que as emissoras de TV poderiam desempenhar para promover os direitos humanos”, conta Bia Barbosa, do Intervozes. “A realidade, no entanto, mostra que os canais de TV, ao contrário, são fontes de violação e estímulo ao preconceito, legitimando e perpetuando discriminações já presentes em nossa sociedade.”
Uma breve leitura do dossiê demonstra a variedade de temas presentes nas denúncias e o retrato caótico da TV brasileira dos anos 2000. Entre elas, discriminação religiosa, homofobia, machismo, racismo e banalização da violência saltam aos olhos de maneira pouco contestável. As denúncias demonstram afrontas à Constituição Federal, ao Estatuto da Criança e do Adolescente e até tratados internacionais de direitos humanos.
Boa parte é alvo de Ações Civis Públicas movidas pelo Ministério Público Federal, em geral a partir de provocações apresentadas por organizações sociais. As ACPs tornaram-se um dos principais mecanismos de exercício do controle social, tratando de temas cada vez mais diversos, como os reunido no dossiê e que vão da exploração da degradação humana em programas como o “Hora da Verdade”, da Bandeirantes, à ridicularização de homossexuais em atrações como o “Zorra Total”, da Globo.
Em outros tantos casos, a possibilidade das violações tornarem-se ações judiciais ainda não foi explorada pelos cidadãos e cidadãs. Nestes, o exercício do controle social tem se dado pela divulgação à sociedade de casos extremos. Exemplo relatado no dossiê é a prática sistemática das emissoras de criminalização de movimentos sociais, sobretudo em relação ao MST. Em julho deste ano, o “Jornal da Noite”, da Bandeirantes, veiculou uma série de cinco programas sobre o movimento, em um contexto que incluía a crise do governo Yeda Crusius (PSDB) e a iniciativa do Ministério Público do estado em propor a dissolução do MST. Denúncias sem fundamento, provas forjadas, testemunhas suspeitas e nenhuma entrevista com membros do movimento fizeram parte do enredo criado pelo telejornal de Boris Casoy.
Controle social x Censura
Sempre que uma emissora extrapola os limites do aceitável, o debate sobre controle público das concessões de rádio e TV ganha novo capítulo. Fernando de Almeida Martins, procurador da República em Minas Gerais, conta que a ação mais recente promovida por ele estava relacionada à veiculação de conteúdo erotizado em horário impróprio no caso da “dança do poste” da personagem Alzira (Flávia Alessandra), na novela “Duas Caras”. “As cenas foram veiculadas em horário impróprio e depois a Globo ainda reprisou no programa da Ana Maria Braga. Então entramos com uma nova ação cobrando o dobro”, conta.
As emissoras, por sua vez, tentam bloquear o avanço do debate tachando as ações judiciais e as tentativas de regulação dos conteúdos impróprios de “tentativa de censura”. Um argumento que ganha cara de ponto final, sobretudo em um país que ainda se ressente de seu passado autoritário. A sociedade tem respondido subindo o tom. “Ora, se a prática do racismo, por exemplo, é considerada crime no Brasil e há programas de TV que incitam ao racismo, por que os responsáveis por tal conteúdo não são considerados criminosos?”, questiona Bia Barbosa.
Caso Eloá
Nas últimas semanas, mais uma vez uma emissora vale-se da retórica da “liberdade de expressão” e da “volta da censura” para se abster de qualquer responsabilidade social com o que veicula. Trata-se da cobertura do seqüestro de Santo André, quando a RedeTV! entrevistou ao vivo a adolescente Eloá Cristina Pimentel e seu ex-namorado Lindemberg Alves, que mantinha ela e uma amiga reféns. Aconteceu no programa “A Tarde é Sua”, apresentado por Sônia Abrão. Sem mais, a emissora interferiu num crime em pleno andamento. O final da história é conhecido.
“A RedeTV! teve uma atuação que extrapola os deveres que ela assumiu enquanto concessão pública. Quando ela interveio numa ação criminal, ela extrapolou os limites da legalidade constitucional”, afirma Lalo. Diante da repercussão, o MPF entrou com uma Ação Civil Pública cobrando indenização de R$ 1,5 milhão por danos morais coletivos.
A emissora, em nota, disse que “defenderá sempre a liberdade de expressão e o não cerceamento do direito do jornalismo informar os telespectadores considerando, portanto, essa iniciativa do Ministério Público Federal, uma forma velada de censura”. Curiosamente, a RedeTV! negou-se a responder a esta reportagem e a “informar” o que pretendia ao entrevistar um criminoso em pleno ilícito e uma menor de idade.
“A notícia diz respeito aos atores do processo, o cenário e sua relevância para a comunidade. Quando a emissora pega esses dados é começa a explorá-los de maneira emocional, a transformar agentes em personagens dramatizados, está deixando de lado a informação e indo para o sensacionalismo” diz Lalo. “Informação não pode se tornar um elemento da ação, não pode intervir, esse é o limite da informação.”
Bia Barbosa lembra que todos os tratados e convenções internacionais afirmam que a liberdade de expressão não pode ser considerada absoluta se outro direito também estiver em jogo. “No caso, estamos falando da dignidade humana, que não pode ser desrespeitada em nome da liberdade que empresas comerciais reivindicam em nome da audiência e do lucro que pretendem obter ao veicular tais conteúdos.”
Concessões públicas
Ao mesmo tempo que demonstra a insatisfação da sociedade civil organizada com o conteúdo televisivo, o dossiê elaborado pelo Intervozes é uma tentativa de interferir no processo de renovação das concessões. “As concessões sempre foram tratadas como algo que diz respeito à empresa e não a sociedade. E como o Estado sempre esteve submisso, esse processo era público apenas formalmente, pois na prática era algo privado”, diz Lalo.
O documento reforça a idéia, amadurecida aos poucos pela ação de diversas organizações, de que as violações de direitos humanos precisam constar como critério de avaliação permanente do uso das concessões públicas de radiodifusão. “O que precisamos garantir agora é que, no caso de desrespeito, estas violações sejam punidas imediatamente”, insiste Bia. “Isso precisa ser assumido pelo Ministério das Comunicações, que tem o dever de fiscalizar os conteúdos veiculados, e também pelo Congresso Nacional, que opina no momento da renovação das concessões.”
Henrique Costa – Observatório do Direito à Comunicação
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