No momento em que o governo do Rio de Janeiro começa a construir muros em favelas, consagrando o espaço urbano como expressão física da divisão de classes, relembrar a chacina que aconteceu nas ruas de Nova Iguaçu e Queimados pode ser um importante exercício de reflexão.
Gilson Caroni Filho
Uma mobilização, marcada por caminhada e missa pública, lembrou no sábado, 28 de março de 2008, os quatro anos de uma das mais brutais chacinas ocorridas no Rio de Janeiro. A coordenadora do Núcleo de Familiares e Amigos das Vítimas da Baixada Fluminense, Lucienne Silva, disse que a “sociedade não deve apagar da memória casos de violência praticados por membros do Poder Público.” Ainda mais quando, longe de configurarem desvios, obedecem desde sempre ao padrão concebido pelas classes dominantes e segmentos médios.
No momento em que o governo do Rio de Janeiro começa a construir muros em favelas, consagrando o espaço urbano como expressão física da divisão de classes, voltar ao que aconteceu nas ruas de Nova Iguaçu e Queimados pode ser um importante exercício de reflexão. Não é com segregação que se logra uma política de segurança eficiente. Tal procedimento só delineia com clareza o mapa da barbárie.
Assim, com as atualizações necessárias, publicamos em Carta Maior artigo escrito em 2005. Até agora, segundo informações do jornal O Globo, “quatro policiais foram presos por envolvimento nos assassinatos, um foi condenado por formação de quadrilha, mas já foi solto e outro aguarda em liberdade o julgamento, também por formação de quadrilha.” Um balanço extremamente favorável à impunidade. O texto abaixo foi escrito logo após o extermínio em massa, quando à frente da Secretaria de Segurança Pública do Estado, estava o hoje deputado federal Marcelo Itagiba
Sinos e surdos, duas paixões*
“Dois fatos dividiram, desde sexta-feira, 1º de abril, as primeiras páginas dos principais jornais brasileiros. Nas dobras superiores os veículos estampavam a lenta agonia do papa, que só terminaria com seu falecimento às 21h37 (16h37 em Brasília). O sofrimento de João Paulo II produziu vigílias em vários países. Mais embaixo, o destaque das folhas era a execução sumária de 30 pessoas por um grupo de extermínio na Baixada Fluminense. A indignação contra o massacre uniu entidades de defesa dos direitos humanos, pessoas comuns e autoridades políticas.
O que podiam ter em comum mortes ocorridas em registros tão diversos? Ambas eram anunciadas. Nenhuma foi súbita. O mal de Parkinson começou a debilitar a saúde do papa há 10 anos. Problemas respiratórios nas últimas semanas agravaram o estado de um corpo já combalido. O choque séptico foi o desfecho de um longo calvário. No caso das vítimas da Baixada, a ausência de poder público na região era noticiada pela imprensa há mais de 20 anos. A barbárie não coincide temporalmente com a tragédia. Não começa com o primeiro tiro, muito menos termina com o último corpo tombado. Vai além do fato em si. Eis o porquê de sua recorrência num lugar onde, segundo estudo do pesquisador José Cláudio Souza Alves, duas mil pessoas são eliminadas por ano.
Horas antes de João Paulo II pedir que lhe fossem lidas as 14 passagens da Via-Crúcis, em 11 lugares distintos dos municípios de Queimados e Nova Iguaçu estudantes, desempregados e funcionários públicos, entre outros, viveram seus momentos finais. A carne se fez verbo intransitivo em mais uma periferia miserável A anomia que vira regra ignora títulos de grandes autores. Se não há cidadania, como clamar por licença poética?
O quadro de infecção generalizada que acometeu Karol Wojtyla se reproduz nas vielas de Nova Iguaçu, no corpo societário que parece já não produzir anticorpos para sua patologia. Conforme relataram as repórteres Dimmi Amora e Taís Mendes, em O Globo, (edição de 2 de abri de 2005), "a Baixada é conhecida por ter alto índice de homicídios relacionados à ação de grupos de extermínio. A violência contra pessoas que cometem delitos não causa espanto em parte da população".
Ou seja, a total descrença nas instituições que deveriam dar proteção ao cidadão comum gera a legitimação dos grupos contratados por comerciantes locais para exterminar desafetos e/ou delinqüentes. Celebram como protetores futuros algozes, na contramão de um poder público ausente. O escandaloso é que isso tudo é sabido, publicado e republicado. Mudam os nomes, mas jamais a extração social dos executados na noite de uma quinta-feira pouco santa.
As grandes tragédias gregas solicitavam que um ator dialogasse com o coro. Não é diferente na trama sangrenta da Baixada. Em batalhões da PM, o papel coube ao secretário de Segurança, Marcelo Itagiba. Com a tropa perfilada, indagou: "Que batalhão é esse? Peço a vocês para perguntarem a seus colegas para onde iremos". Não custa repetir a lição deixada por Édipo-Rei: a resposta costuma estar em quem pergunta.
Adolescentes que jogavam fliperama, homens que bebiam em bar e conversavam sobre futebol quedaram inertes. Segundo os jornais, os assassinos não teriam qualquer motivação. Ledo engano: o aparelho ideológico policial e os exterminadores a soldo do comércio local selecionam criteriosamente suas vítimas na vala comum da divisão social do trabalho. Não diferem muito do poder público e da grande imprensa na escolha de quem tem direito à vida, no primeiro caso, e voz, no segundo. São complementos lógicos dos que matam pacientes nas filas dos hospitais públicos. Sem soro nem unção de enfermos.
Candelária e Vigário Geral criaram jurisprudência. Do total de 52 acusados de terem assassinado 29 pessoas, apenas seis, como lembra O Globo de sábado, foram condenados. Os demais foram absolvidos por falta de provas. Desde o inquérito, a classe social dos mortos é a evidência material do crime. Essa é a lei férrea que une o imaginário do delegado ao arrazoado do juiz em terra de intocáveis.
O cardeal de Roma comoveu o mundo ao afirmar que o papa "já vê e toca o Senhor. Ele já está unido com nosso único Salvador". O irmão de um adolescente assassinado, Rafael da Silva Couto, afirmou: "Ele era evangélico e sei que está num bom lugar". Não se sabe quantos foram tocados por suas palavras.
Rua Gama, em Nova Iguaçu, bairro de Ipiranga, em Queimados, e Rua Um, no bairro Funchem, são não-lugares onde a ordem se impõe decantando sonhos. Elas fizeram parte do mapa da tragédia e ganharam as páginas dos grandes jornais. Juntos, ainda que mortos, enfim adentraram a edição de cidades os seguintes não-personagens: William Pereira dos Santos; José Gomes de Oliveira, de 39 anos; Luiz Henrique da Silva, 23; Alessandro Moura Vieira, 16; Douglas Brasil de Paula, 14; Bruno da Silva Souza, 15; Jailton Vieira da Silva, 27; Jonas de Lima Silva, 19; Robson Albino, 37; Felipe Soares Carlos, 13; Elisabete Soares de Oliveira, 45; Manuel Domingos Lima Pereira, 53; Leonardo Felipe da Silva, 15; Cesar de Souza Penha, 30; Leonardo da Silva Moreira, 18; Luciano de Souza Coutinho, 30; Lenilson de Souza Coutinho, 27; Rafael da Silva Couto, 17; Marcos Vinícius Cipriano, 15; Marcelo Júnior do Nascimento, 16; Francisco José da Silva Neto, 33; Marco Aurélio Alves, 36; João da Costa Magalhães, 53; Renato Azevedo dos Santos, 32; José Augusto Pereira da Silva, 31; Luís Jorge Barbosa Rodrigues, 27; Márcio Joaquim Martins, 26; Fábio Vasconcelos, 29; Wagner Oliveira, 25; e Calupe Florindo Ferreira, 64.
Se ainda pudessem falar, certamente pediriam aos que ficaram a súplica estampada no Jornal do Brasil, de domingo: "Rogai por nós".
A batida seca de um surdo marcou 30 vezes, antecedendo o nome de cada vítima, a missa rezada na Catedral de Santo Antônio, em Nova Iguaçu, Rio de Janeiro. Os sinos tocaram na Praça de São Pedro, em Roma. A imprensa, como em rito recorrente, registrou as 31 Paixões”.
Já perdemos o tempo de mudar a liturgia?
Fonte: Agência Carta Maior.
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