Lucas Mendes
De Nova York para a BBC Brasil
"Não existe esquerda americana". Eu trouxe esta pontificação comigo do Brasil em 1968, ano da maior fermentação política nos Estados Unidos desde a década de 30, quando havia esquerdistas, comunistas e radicais em ação.
Foi frase do Alberto Dines quando era editor de Fatos & Fotos? Tenho quase certeza que sim, e no meu primeiro ano de educação americana estive com Panteras Negras, estudantes radicais da SDS, Cesar Chavez, Norman Mailer, Martin Luther King, intelectuais e ativistas que usavam a língua da esquerda, todos contra a direita mas cada um com sua própria ambição.
Nixon ganhou a eleição, e o derrotado, o liberal democrata Hubert Humphrey, não pregava nada do esquerdismo que eu ouvia no Brasil. O senador McGovern, em 1972, foi o mais "esquerdista" dos candidatos mas não tinha nada de socialista e só ganhou em Massachusetts e na capital. Um massacre.
Existe uma esquerda americana? Onde está? O que ela quer?
Quando sugeriram que eu entrevistasse a esquerdista Naomi Klein para o Milênio foi minha primeira pergunta, acrescida de "e onde está você no mapa político dos Estados Unidos?"
"Você sabe, eu sou canadense. Não estou neste mapa", foi o começo da resposta.
Eu sabia da origem canadense, mas, antes de ir adiante, convém apresentar Naomi Klein.
Os avós eram comunistas de carteirinha. O pai saiu dos Estados Unidos para não servir no Vietnã e, tanto ele como a mãe, eram politicamente engajados. Naomi, dizem, foi bebê de "fraldas vermelhas", mas cresceu sem o menor interesse em política. Para os pais, era uma decepção.
Adolescente, linda e vaidosa, gostava de lojas, roupas com etiquetas caras e maquiagem. O papo político era um xarope. Um derrame cerebral que deixou a mãe temporariamente paraplégica foi um dos agentes transformadores. O outro foi um assassino que matou 14 mulheres na Univesidade de Toronto quando Naomi
estava no primeiro ano de faculdade. Ele disse que detestava feministas. A partir daí, ela se declarou feminista.
Seis meses cuidando da mãe e a morte das universitárias fizeram a diferença. Naomi mudou e se casou com Avi Lewis, que vem da mais tradicional dinastia da esquerda canadense, engajada há várias gerações.
A Naomi consumista se tornou a Naomi anticapitalista, anticorporativista, antiglobalizacao, anti-livre-comércio. Escreveu Sem Logo - A Tirania das Marcas em um Planeta Vendido, um livro denunciando abusos das empresas multinacionais, e publicado, por pura coincidência, logo depois dos grandes protestos contra a Organização Mundial do Comércio, na reunião ministerial em Seattle, em dezembro de 1999.
Os manifestantes não tinham uma liderança organizada, nem um plano de ação coordenado, mas para surpresa geral, inclusive de Naomi Klein, a "coisa" explodiu nas ruas das cidades mais pacatas e civilizadas dos Estados Unidos. Os analistas políticos não tinham explicações para aquela fúria antiglobalizante. Sem Logo, de Naomi Klein, tinha explicações para todas as sacanagens do capitalismo corporativista.
Foi traduzido em 15 línguas, best-seller em vários países, e aquele movimento, mesmo sem nome, se tornou a mais forte expressão do sentimento esquerdista desde a década de 60, que também nunca teve nome.
Seu segundo livro, Cercas e Janelas, acrescentou pouco a Sem Logo. Mas em 2007, com A Doutrina do Choque - A Ascensão do Capitalismo deDesastre, ela voltou para a lista dos best-sellers e, como estrela, ao circuito de palestras e debates.
A gênese do livro foi em Bagdá, em 2004, quando cobria a guerra, depois do bombardeio da invasão, o "shock and awe" - choque e assombro.
Numa série de países, a partir do Chile até o Iraque, Naomi escreve como os neoliberais aproveitam momentos de crise - ou de choque - para aprovar reformas econômicas radicais que transferem o dinheiro do setor público para o privado.
O pai da fórmula, escreve Naomi, foi o economista e prêmio Nobel Milton Friedman, e as principais gestões foram os "Boys de Chicago" e o FMI, que implantaram o modelo na Bolívia, Polônia, Argentina, Rússia e outros países.
Nos momentos de choque, pela tese de Naomi Klein, as pessoas voltam a uma condição infantil onde permitem que figuras paternais assumam o controle de suas vidas.
Fui encontrá-la quando participava de um seminário de três dias em Washington, organizado pelo Campaign for America's Future Now ("Campanha pelo Futuro da América Já), com quase 150 palestrantes e moderadores, entre eles, a suposta fina flor da esquerda americana.
Ideologicamente, com exceção da direita, havia de tudo: de políticos liberais a ativistas radicais, uma aquarela que expunha a confusão e propostas ideológicas criadas pela vitória de Obama.
"Durante o governo Bush", diz ela, "houve uma certa unidade, surgiu um movimento que começou a definir as cores de uma esquerda, mas com a vitória de Obama o partido democrata encampou todas as ideias."
Naomi acha que Obama é responsável pela mais gigantesca transferência de dinheiro do setor público para o setor privado nos Estados Unidos. Encheu os cofres de bancos, financeiras, seguradoras, mas "e o dinheiro para educação e para assistência médica para os pobres?", pergunta ela.
"Minha missão", diz a canadense, "é construir a esquerda americana."
O Dines (?) estava certo.
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