A Justiça estadunidense em xeque
por Michelle Amaral da Silva
Interesses econômicos impedem que o ex-presidente Gonzalo Sánchez de Lozada tenha o mesmo destino do “ministro da cocaína” Luis Arce Gómez, extraditado em julho dos EUA
Interesses econômicos impedem que o ex-presidente Gonzalo Sánchez de Lozada tenha o mesmo destino do “ministro da cocaína” Luis Arce Gómez, extraditado em julho dos EUA
Vinicius Mansur
correspondente em La Paz (Bolívia)
No último dia seis de julho, a justiça estadunidense decidiu pela extradição do ex-ministro do Interior da Bolívia, Luis Arce Gómez, que cumpria uma sentença de 25 anos, em Miami, por narcotráfico. Declaradamente anticomunista, Gómez organizou, em 17 julho de 1980, o assalto à Central Operária Boliviana (COB) e, em seguida, ao Palácio de Governo.
Foram mortos o líder socialista Marcelo Quiroga Santa Cruz, o político Carlos Flores Bedregal e o trabalhador Gualberto Vega Yapura. Além disso, a então presidenta Lidia Gueiler foi destituída, ato que deu início à ditadura militar encabeçada por Luis García Meza.
Gómez assumiu o posto de ministro do Interior e, em uma coletiva de imprensa realizada em outubro de 1980, foi claro quanto à sua política: disse que restava aos opositores “andar com o testamento embaixo do braço”. Durante sua curta gestão, que durou até fevereiro de 1981, foram assassinados cerca de 500 líderes de oposição, enquanto mais de quatro mil prisões políticas foram levadas a cabo.
Apesar de coordenar a repressão sangrenta na Bolívia, o primeiro encarceramento de Gómez aconteceu nos Estados Unidos, em 1989, por tráfico de drogas. A justiça local condenou-o pela entrada de três cargas de cocaína no país, acusando-o de dar amparo oficial a seu primo, o traficante Roberto Suárez Gómez, conhecido como “legendário rei da cocaína”. A mídia estadunidense apelidou o militar de “ministro da cocaína”.
Com o fim da pena, os advogados de Gómez tentavam a todo custo conseguir um asilo político nos Estados Unidos. Porém, a justiça do país do norte negou o pedido e aprovou sua extradição, tendo em vista que, em abril de 1993, o ex-ministro havia sido condenado pela Suprema Corte boliviana a 30 anos de prisão.
Em busca da jurisprudência
As imagens de Arce Gómez atrás das grades do presídio de Chonchocoro, na cidade de El Alto, trouxeram aos bolivianos a sensação de justiça histórica e jogaram luz em casos que permanecem obscurecidos no país. O principal deles é o julgamento do ex-presidente Gonzalo Sánchez de Lozada, conhecido como Goni.
Em outubro de 2003, ele fugiu para os Estados Unidos após renunciar ao cargo devido às consequências da chamada Guerra do Gás, quando uma forte mobilização popular contrária à exportação do gás boliviano sofreu uma dura repressão estatal, que deixou dezenas de mortos. O caso está emperrado porque a legislação boliviana impede a Justiça de prosseguir o julgamento justamente pela ausência do acusado.
À época da extradição de Gómez, autoridades importantes, como o presidente Evo Morales e o ministro de Governo, Alfredo Rada, reforçaram a importância da decisão da Justiça estadunidense, uma vez que ela poderia consolidar uma jurisprudência capaz de culminar com a deportação de Goni e de alguns de seus ex-ministros, que também fugiram para os Estados Unidos e estão sendo processados.
Porém, o advogado e membro do Comitê Impulsionador do Julgamento Contra Goni, Rogelio Mayta, não é tão otimista. Em primeiro lugar, o advogado recorda que Arce Gómez não enfrentou um processo de extradição propriamente dito. “Esse caso foi quase uma expulsão. Ele foi levado pra lá ilegalmente e, com o fim de sua condenação, estava numa situação irregular. Em segundo lugar, Gómez era uma pessoa indesejada nos Estados Unidos: um militar narcotraficante boliviano. Goni é diferente”, afirma.
De acordo com ele, nos Estados Unidos, a extradição, em última instância, não é uma definição jurídica, mas política, uma vez que o secretário do Departamento de Estado tem o poder de negar uma extradição autorizada pela Justiça. E, no que diz respeito à promíscua relação entre Justiça e política, Goni está muito bem. A sua equipe de advogados nos Estados Unidos é presidida por Gregory B. Craig, assessor de política internacional de Barack Obama durante a campanha presidencial que, atualmente, integra o time dos principais assessores nomeados da Casa Branca.
Por trás do político, o econômico
A ligação de Goni com o poder central estadunidense vai bem além da simples contratação de um serviço jurídico. Ela deriva da política neoliberal – capaz de causar inveja a Fernando Henrique Cardoso – desenvolvida por ele durante dois mandatos presidenciais, de 1993 a 1997 e de 2002 a 2003.
De acordo com o advogado e ex-ministro de Hidrocarbonetos de Evo Morales, Andrés Soliz Rada, quando Goni foi destituído pela rebelião popular que sacudia a Bolívia em outubro de 2003, o seu poder econômico só poderia ser comparado, em termos bolivianos, com Simón Patiño, o mais importante barão do estanho do país na metade do século passado. “Patiño se negou a ser presidente do país, afirmando que, para isso, tinha seus advogados. Já Goni quis imitar os barões da prata e mesclar a política com seus interesses privados”.
Segundo Rada, nos últimos dias do primeiro governo de Goni, um decreto presidencial definiu que as petroleiras privadas exploradoras de gás e petróleo na Bolívia eram donas de todas as reservas existentes, inclusive as que ainda estavam pra ser descobertas. A estatal YPFB,por sua vez, ficava proibida de explorar e comercializar hidrocarbonetos. “Porém, o artigo que dava a propriedade às empresas privadas foi omitido do Diário Oficial que publicou o decreto, fazendo com que a cláusula ficasse em segredo por quase quatro anos”, explica.
No livro “A fortuna do presidente”, publicado por Rada em 2004, ele relata que a influência econômica de Goni consistia em três pilares. O primeiro era o Instituto das Américas, uma fundação da Universidade de San Diego, na Califórnia, do qual passou a ser membro em 1996, ao lado de Richard Flury, da petroleira Amoco (American Oil Company). Esta, juntamente com a British Gas, formava o consórcio Pacific LNG, interessado em exportar gás boliviano para a o estado da Califórnia, na costa oeste dos EUA.
“Governo mundial”
Também faziam parte do instituto James Bannantine, da Enron, financiadora dos gasodutos e oleodutos da petroleira boliviana YPFB; William Friend, da empresa Bechtel, empresa pivô da Guerra da Água em Cochabamba, em abril de 2000; além de representantes da British Petroleum, Marathon Oil, Shell, CMS Energy e Sempra.
Goni também integrava o Conselho das Américas, organizado por David Rockefeller, do Chase Manhatan Bank e neto de John Rockefeller, fundador da Standard Oil. David apelidou o conselho de “governo mundial”.
Nele, estavam presentes o chileno Agustín Edwards, aliado de Augusto Pinochet na derrubada de Salvador Allende, em 1973; Pepe Fanjul, da petroleira Repsol; e Kenneth Lay, da Enron. “O presidente do órgão era Willian Rhodes, vice-presidente do City Group, vinculado ao City Trust de Bahamas, onde Goni depositou 50% da capitalização dos hidrocarbonetos, feita através de suas políticas neoliberais”, denuncia Rada.
O terceiro pilar externo de Goni era a Corporação Financeira Internacional (IFC), braço financeiro do Banco Mundial, que comprou, na década de 1980, 5% das ações da Companhia Mineira do Sul (Comsur), pertencente a Goni, da qual também eram sócias a maior comercializadora de cobre do mundo, a inglesa Rio Tinto Zinc (RTZ) e a canadense Orvana Minerals Corp, empresa que explora a mina “Don Mario”, em Santa Cruz, conectada por um gasoduto com o Brasil.
Em 6 de agosto de 2002, dia em que iniciou sua segunda presidência, Goni declarou que sua fortuna era de 50 milhões de dólares. Um ano depois, sua declaração de patrimônio já chegava aos 59 milhões de dólares.
Fonte:Brasil de Fato.
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