No dia 28 de agosto de 40 anos atrás, Martin Luther King pronunciou seu discurso mais famoso, "I Have a Dream". O discurso pronunciado em Washington por King estava previsto para ter uma duração de dez minutos, e ele se preparou diligentemente. Se vocês ouvirem o discurso até o momento em que King começa a falar sobre seu sonho de uma humanidade fraterna, se darão conta de que ele dura justamente quase dez minutos.
A reportagem é de Enrico Beltramini, publicada no jornal Il Riformista, 25-08-2009. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
O discurso, como todos os discursos de King, como todos os discursos da Black Church, recupera trechos dos sermões já recitados na igreja, nas funções dominicais. Os sermões são modelados como argila, são escritos, recitados e depois escritos, e depois recitados novamente, até que a retórica se funde com a inspiração, e a atmosfera une quem fala com quem escuta. Também é assim para o discurso preparado por King. É uma montagem de discursos já desenvolvidos.
Mas, rumo ao fim do seu texto de dez minutos, a cantora gospel Mahalia Jackson, que estava próximo dele no palco, entre a multidão, gritou a King: "Tell them about the Dream, Martin". Conte-lhes sobre o sonho, Martin. Se vocês virem a gravação do discurso, se darão conta de que, em um certo ponto, King deixa de ler e começa a falar sem seguir o papel. Obviamente, não está improvisando. Está simplesmente recitando um trecho que compôs e que já recitou muitas vezes e que conhece de memória. E que interiorizou. Começa a falar assim do seu sonho. Até aquele momento, o discurso tinha tido uma entonação bíblica, política e social completa e intimamente conectada à realidade da América contemporânea. Daquele momento em diante, King articula a visão de uma humanidade em que reina o amor.
Porém, King não tinha apenas uma visão da humanidade em mente, mas certamente também de uma América em que as diferenças raciais fossem finalmente superadas. Um lugar, como defende no seu discurso, onde as crianças negras pudessem brincar livremente com as crianças brancas. Havia um fundo de sua autobiografia nessa passagem. Ele havia dito em 1958 – em um livro em que havia contado a história do protesto de Montgomery, "Stride Toward Freedom: The Montgomery Story" – que, em um certo ponto, quando criança, o seu melhor amigo havia deixado de vê-lo. Desconcertado, foi pedir explicações para a mãe, que então havia lhe aberto os olhos para a condição de segregação e – palavras de King – lhe disse as palavras que praticamente todo negro ouve serem antes de entrar em contato com as injustiças que tornavam necessárias essas mesmas palavras: tu és muito corajoso como qualquer outra pessoa.
Poucos meses antes do discurso de Washington, King havia contado outro fato, que mais uma vez mostrava a tendência insensata dos adultos para estender às crianças as suas cruéis perversões raciais. Ele tinha contado sobre como os seus filhos não puderam beber da mesma fonte do mesmo parque em que as crianças brancas brincavam, porque eram negras. Ele havia retomado o fato em um texto, "Letter from a Birmingham Jail", escrito no dorso das páginas de um jornal encontrado na cela. Escreve King: "De repente, você se dá conta de que a língua se contorce em você, e a palavra se torna confusa enquanto você procura explicar à sua filhinha de seis anos porque ela não pode ir ao Luna Park do qual recém viu a propaganda na televisão, e você vê que de seus olhos saem lágrimas quando lhe dizem que o Luna Park é proibido para crianças de cor, e você vê formarem-se, no céu azul de sua mente, as opressoras nuvens da inferioridade, e você vê que a sua personalidade começa a se desnaturalizar procurando uma inconsciente amargura e ressentimento com relação aos brancos, quando você tem que dar também uma resposta ao seu filho de cinco anos que lhe pergunta angustiado: 'Papai, por que os brancos tratam os negros tão mal assim?'".
Nós sabemos que o texto preparado por King não continha a parte relativa ao Sonho, porque o próprio King se apressou em distribuir o texto do seu discurso antes da manifestação. E podemos reconhecer que o texto preparado era bom, mas não memorável. Depois, graças a Jackson, ou talvez também à resposta da multidão – "the audience response was wonderful that day", ele lembrará em seguida –, King deveu tudo a um trecho recitado de "I Have a Dream". Não era a primeira vez. Ele já havia recitado o trecho em Albany, Georgia e Rocky Mount, North Carolina, no ano anterior. E poucos meses antes em Detroit e Birmingham.
Mas o efeito que teve em Washington foi incalculável. E por uma única e simplíssima razão: que King, naquele ponto, diante das câmeras de TV de uma nação inteira, deixou de ser um orador e voltou a ser o que sempre foi, um pastor. King está recitando o sermão. King está pregando. King está falando para a sua congregação, para a sua igreja, e a sua igreja é grande assim como a humanidade. E todos percebem essa mudança de registro. Ninguém pode escapar da sensação de se encontrar diante do homem de Deus, do profeta do Antigo Testamento, que admoesta, convida, comanda. Ele toca cordas profundas, arquétipos que são comuns a todos os cristãos. Ele afunda as mãos na narrativa das Escrituras e lhes dá novo vigor. Adormentadas na nossa consciência, as palavras voltam a brilhar, vivificadas. Fraternidade, Amor, Esperança. Palavras que recuperam gravidade, raios que se recortam rumo ao céu e inflamam os corações. Há 40 anos.
Fonte:IHU
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