terça-feira, 15 de setembro de 2009

AMÉRICA LATINA - A América Latina e o fim do liberalismo social.

por James Petras

Cartoon de Polyp. A actual recessão mundial e a potencial recuperação de alguns países revela todas as fraquezas das tradicionais doutrinas das vantagens comparativas, o "mercado de exportação", o livre comércio. Em nenhum outro lugar isto é mais evidente do que na experiência recente da América Latina.

Apesar de recentes levantamentos populares e da ascensão de regimes de centro-esquerda na maior parte dos países na região, as estruturas económicas, estratégias e políticas prosseguidas seguem as pisadas das suas antecessoras, particularmente em relação às práticas económicas com o estrangeiro.

Influenciada pela procura acentuada e a subida dos preços das commodities, especialmente produtos agro-minerais e de energia, os regimes latino-americanos, recuaram em relação a quaisquer mudanças em várias áreas cruciais e adaptaram-se às políticas e económicas legadas pelos seus antecessores neoliberais. Em consequência, com a vasta recessão mundial principiada em 2008, eles sofreram um declínio económico agudo com graves consequências sociais.

As crises socioeconómicas resultantes proporcionam lições importantes e reforçam a noção de que mudanças estruturais profundas no investimento, comércio, propriedade de sectores económicos estratégicos são essenciais para o crescimento sustentado e equitativo.

O mercado livre, doutrina do livre comércio: a década de 1990

A partir de meados da década de 1970, com o advento de regimes pró militares estado-unidenses e de regimes autoritários civis e sob a tutela de académicos dos EUA e economistas ali educados, a América Latina tornou-se um laboratório para a aplicação de políticas livre mercado – livre comércio.

Barreiras comerciais foram reduzidas ou eliminadas, de modo que produtos agrícolas subsidiados dos EUA e da União Europeia entraram sem entraves, dizimando a produção alimentar de pequenos agricultores que produziam para consumo local. Sob a doutrina da "vantagem comparativa" decisores políticos financiaram e promoveram empresas de agro-negócios em grande escala especializadas em produtos de exportação – trigo, soja, açúcar, milho, gado, etc apostando nos preços favoráveis, acesso a mercado favorável e preços razoáveis de alimentos, equipamento agrícolas e importações não agrícolas.

A desregulamentação total da economia e a privatização de empresas públicas abriu as comportas ao investimento estrangeiro, à tomada de sectores económicos estratégicos e ao aumento da dependência do investimento estrangeiro para sustentar o crescimento e a balança de pagamentos.

A estratégia geral dos regimes era confiar nos mercados de exportação, a expensas do aprofundamento e ampliação dos mercados internos (consumo local em massa); uma política que confiava no embaratecimento dos custos do trabalho local e na sustentação de altos lucros para a classe dominante agro-mineral. A presença desta última em todos os ministérios económicos chave dos regime assegurava que às políticas ao seu serviço fosse dado um verniz ideológico com a noção de "mercados racionais eficientes", deixando de notar a história a longo prazo da instabilidade intrínseca dos mercados mundiais.

Crises dos regimes tradicionais neoliberais

O sistema financeiro desregulamentado e a recessão mundial de 2000-2001, o saqueio selvagem da economia e do tesouro pelos praticantes do mercado livre, a corrupção monumental e a exploração sem peias de trabalhadores, camponeses e empregados públicos produziu revoltas na vasta região. Toda uma série de regimes eleitorais apoiados pelos EUA foram derrubado e/ou derrotados em competições eleitorais. O Equador, Argentina, Bolívia, Brasil, Uruguai e Paraguai testemunharam levantamentos populares, os quais entretanto acabaram por levar à eleição de regimes centro-esquerda, especialmente em campanhas eleitorais que prometiam "profunda mudança estrutural", incluindo mudanças na estrutura económica do poder e aumentos substanciais nos gastos sociais bem como a redistribuição de terra nas zonas rurais.

Na prática as derrotas políticas dos partidos estabelecidos da direita, e a enfraquecida elite económica, não serviam de base para transformações socioeconómicas em grande escala e a longo prazo. Os novos regimes de centro-esquerda buscavam políticas socioeconómicas que procuravam "reformar" as elites económicas forçando-as a acomodarem-se aos seus esforços para reactivar a economia e subsidiar o pobres e desempregados. As elites políticas foram retiradas dos gabinetes, uns poucos dos responsáveis mais venais implicados na repressão em massa foram postos em tribunal mas sem quaisquer sérios esforços para transformar o partido – sistema político. Por outras palavras, o fim das elites neoliberais nas crise, induzido pelas políticas de livre mercado, mantidas no lugar, temporariamente suspensas pelos regimes de centro-esquerda com políticas de administração de crise intervencionistas do Estado.

Políticas de centro-esquerda: A administração de crise e o boom económico

Os novos governos centro-esquerda adoptaram toda uma série de políticas que iam desde incentivos económicos aos negócios, regulações financeiras, despesas acrescida em programas de pobreza, aumentos de salários generalizados e consulta a líderes de organizações populares. Eles repudiaram os políticos inimigos e os criminosos do período anterior juntamente com a intervenção numas poucas empresas privadas em bancarrota. Estas políticas simbólicas e sólidas asseguraram, temporariamente, o apoio da massa do eleitorado e isolaram e dividiram os sectores mais radicais dos movimentos populares.

No entanto, exigências de mudanças mais vastas e mais profundas ainda estavam na agenda das massas enquanto os regimes de centro esquerda tentavam equilibrar-se entre exigências radicais dos de baixo e os seus compromissos políticos para normalizar e estimular o desenvolvimento capitalista, incluindo todas as elites existentes (elites multinacionais estrangeiras, agro-minerais, finanças, comerciais e manufactureiras). O dilema do centro-esquerda foi resolvido pela súbita alta nos preços das commodities, em grande parte estimulada pela procura dinâmica e o crescimento das economias asiáticas, nomeadamente da China.

Os regimes de centro esquerda abandonaram então todos os pretextos de busca de mudança estrutural e saltaram para o comboio do "crescimento conduzido pela exportação" – com base na exportação de produtos primários. Abandonando a crítica ao investimento estrangeiro e exigências de "renacionalizar" firmas privadas estratégicas, os regimes de centro esquerda abriram a porta a entradas de capital estrangeiro em grande escala – suspendendo a aplicação de alguns dos seus controles regulamentares.

O boom das commodities de 2003-2008 permitiu aos regimes de centro esquerda (e aos de direita) "comprarem" a oposição: sindicatos receberam substanciais aumentos de salários, negócios receberam incentivos substanciais, investidores estrangeiros foram saudados, remessas de trabalhadores expatriados foram encorajadas, como contribuições para a redução da pobreza.

Numa palavra: todo o edifício socioeconómico da estratégia da América Latina de alto crescimento económico orientado pelas exportações repousava na procura do mercado mundial e nas condições económicas nos países imperiais. Poucos dos peritos económicos, colunistas financeiros e celebrantes políticos dos "mercados racionais" exprimiram quaisquer dúvidas acerca da sustentabilidade do modelo "mercado de exportação".

A extraordinárias vulnerabilidade destas economias, a sua dependência de mercados voláteis, a sua dependência sobre um número limitado de produtos de exportação, a sua dependência sobre um ou dois mercado, a sua dependência das remessas dos mais precários trabalhadores expatriados deveriam ter levantado uma bandeira vermelha para qualquer economista e decisor político que pensasse. Os consultores de alto preço e as missões de aconselhamento estrangeiras da Harvard Business School, da Penn's Wharton School e de outros centros prestigiosos de ensino superior (enamorados das suas equações matemáticas as quais demonstravam quais eram as suas premissas) argumentavam que mercados minimamente regulados são os que têm mais êxito e convenceram seus parceiros latino-americanos do centro-esquerda à direita a reduzir barreiras comerciais e permitir o fluxo de capital.

Após apenas cinco anos de rápido crescimento induzido pelo mercado de exportação, as economias latino-americanas entraram em crash. Segundo a Comissão Económica das Nações Unidas para a América Latina, as exportações dos países latino-americanos e caribenhos em 2009 mostrarão a queda mais aguda ao longo de mais de 72 anos (desde a última depressão mundial). As exportações regionais declinarão 11% em volume, ao passo que as importações cairão 14%, a maior queda desde a recessão mundial de 1982 [1] .

Armadilhas da especialização em exportações de commodities

As datas de referência são indicativas dos compromissos seculares e das vulnerabilidades na estrutura comercial: as recessões passadas e presentes têm um impacto agudo sobre a América Latina porque tanto agora como no passado as suas economias dependem de exportações agro-minerais para mercados imperiais, os quais rapidamente comutam as suas crises internas para os seus parceiros comerciais latino-americanos. O declínio histórico no comércio inevitavelmente duplica e triplica a taxa de desemprego entre os trabalhadores dos sectores de exportação e tem um efeito multiplicador sobre empresas económicas satélite ligadas às despesas e aos consumos gerados pelo comércio além-mar. A especialização em exportações agro-minerais limita as possibilidades de emprego alternativo de um modo que uma economia mais diversificada não faz. A dependência do Estado, para a maior parte das suas receitas, das exportações de agro-minerais e de energia significa cortes automáticos no investimento público e nas despesas com serviços sociais.

As crises comerciais da América Latina afectaram especialmente aqueles países com produtos de exportação mais tradicionais em commodities agrícolas, minerais e energéticas: Venezuela e Equador (petróleo), Colômbia (petróleo e carvão) e Bolívia experimentaram um declínio de até 33% em 2009, muito acima da média para a região. O México, dependente em 80% do seu comércio com os EUA (petróleo, turismo, remessas, automóveis) experimentou o maior declínio, 11% do PIB, de todos os países do hemisfério.

Se bem que todas as economias conduzidas pela exportação fossem atingidas pelas crises, aqueles países que tinham um mix comercial mais diversificado (manufacturas, agricultura, serviços) caíram em aproximadamente 20% ao passo que os países que se especializaram em exportações de petróleo e minerais caíram mais de 50%.

Armadilhas da dependência a um único mercado

Os países com uma maior diversidade de mercados e parceiros comerciais, especialmente aqueles que comerciavam dentro da zona latino-americana e com a China, experimentaram um declínio mais reduzido em comparação com aqueles, como o México, Venezuela e América Central, que dependiam dos mercados dos EUA e da União Europeia, que caíram em mais de 35%.

O comércio foi apenas uma das quatro frentes que impactaram negativamente a América Latina. O investimento directo estrangeiro, as remessas de trabalhadores do estrangeiro e os preços das commodities contribuíram para as crises.

Armadilhas da dependência do investimento estrangeiro

As portas abertas da América Latina ao investimento estrangeiro (IE) foram uma causa importante da crise. O fluxo de IE escalou em resposta ao crescimento interno da América Latina, aproveitando-se dos altos lucros gerados pelo boom comercial de commodities. Com o declínio do comércio, rendimentos e lucros, o IE saiu, repatriou lucros e desinvestiu, exacerbando as crises a aumentando o desemprego. O IE segue as práticas de entrada fácil e retirada rápida – um meio de desenvolvimento altamente inconfiável e volátil.

Armadilhas da dependência das remessas de além-mar

Os regimes latino-americanos consideraram como certos e construíram dentro das suas políticas económicas e projecções transferências de muitos milhares de milhões de dólares de rendimentos de trabalhadores além-mar, fazendo vista grossa à posição legal e económica altamente vulnerável dos seus cidadãos que trabalham no exterior. A vasta maioria dos trabalhadores além-mar está em posições muito vulneráveis: muitos não estão documentados ("imigrantes ilegais") e durante recessões ou baixas económicas são abruptamente despedidos. Em segundo lugar trabalham em sectores como construção, turismo, jardinagem e limpeza, os quais são duramente atingidos pelas recessões. Em terceiro têm pouca ou nenhuma antiguidade e são "os últimos contratados e os primeiros despedidos". Em quarto, muitos não podem receber seguro de desemprego e enfrentam a deportação se não puderem sustentar-se. Os resultados da alta vulnerabilidade dos trabalhadores no estrangeiro são visíveis no declínio de muito milhares de milhões de dólares nas remessas para a América Latina, exacerbando a pobreza e inclinando a balança de pagamentos no vermelho.

Volatilidade dos preços das commodities

Ao colocar todos os seus ovos no cabaz dos preços altos das commodities e dos mercados além-mar, os governos do centro-esquerda perderam uma grande oportunidade para aprofundarem o seu mercado interno via industrialização por substituição de importações, reforma agrária e investimentos público em infraestrutura ligando agricultura – mineração – manufactura e fontes de energia numa "rede" para proteger a economia nacional de crises induzidas externamente.

Os limites do social liberalismo ("centro-esquerda") e as crises económicas

Durante a primeira década do novo milénio os regimes de centro-esquerda recém cunhados alinharam-se contra o neoliberalismo e chegaram a identificar-se como os socialistas do "século XXI". Na prática o que isto significou foi atar aumentos em despesas sociais às estruturas económicas políticas comerciais existentes, com alguns ajustamentos em parceiros comerciais e em alguns casos "joint-ventures" com investidores estrangeiros. Durante o período todo o conjunto de regime praticou políticas sociais liberais familiares a observadores dos regimes social-democratas europeus contemporâneos: eles combinaram livre comércio e uma porta aberta ao investimento estrangeiro com gastos maiores em programas anti-pobreza, benefícios de desemprego e aumentos no salário mínimo. Por outro lado vastos lucros acumularam-se nas mãos das elites agro-minerais e do sector bancário, o qual financiou comércio, consumo e rolagem da dívida.

Todo o modelo social liberal continuou entretanto sobre os fundamentos frágeis das crises dependentes da estratégia de exportações de commodities, receitas comerciais altamente voláteis e rendimento de vulneráveis trabalhadores além-mar. Quando os mercados de exportações latino-americanos secaram e os preços das commodities caíram, as receitas declinaram e trabalhadores foram despedidos. O modelo social liberal entrou em colapso com crescimento negativo e os ganhos anteriores em emprego e redução da pobreza foram revertidos.

Lições do colapso do modelo social liberal

Várias lições importantes podem ser retiradas da experiência em curso de regimes social-liberais.

1. Programas sociais positivos não são sustentáveis sem mudanças estruturais, as quais diminuem a vulnerabilidade externa .

2. Reduzir a vulnerabilidade externa depende da propriedade pública dos sectores económicos estratégicos a fim de evitar fugas de capital, o comportamento típico do capital com base no estrangeiro.

3. Reduzir a vulnerabilidade económica depende de diversificar mercados para longe dos centros imperiais infestados de crises e controlados financeiramente. Maior sustentabilidade económica depende do aprofundamento do mercado interno, aumento do comércio intra-regional e redireccionamento do comércio rumo a regiões de crescimento alto.

4. Despesas sociais são paliativos necessários no imediato mas não vão à raiz da pobreza e dos rendimentos baixos. Programas de distribuição de terra de grande amplitude ligados ao desenvolvimento em grande escala com financiamento e investimento da produção alimentar local e em indústrias internas que complementem e se associem à produção agro-mineral diminuirão a dependência de mercados além-mar e estabilizarão a economia.

5. O controle estatal do comércio estrangeiro e das empregas minerais estratégicas permite a captura do excedente económico para financiar a diversificação económica e a inovação.

6. A integração regional tem de passar das declarações retóricas ao desempenho e prática reais. O presidente Chavez da Venezuela, o principal advogado da integração regional e promotor da Associação Bolivariana da América Latina (ALBA), ainda depende dos mercados dos EUA para 80% da sua venda de petróleo e 70% das receitas de exportação do petróleo, e mais de 50% das suas importações alimentares da Colômbia, cliente militar dos EUA. A integração regional é factível com base no planeamento de investimentos complementares e empreendimentos públicos conjuntos na industrialização de minerais, petróleo e outras commodities primárias.

7. Pactos de segurança entre regimes latino-americanos destinados a reagir às bases militares colombianas dos EUA e à estratégia de militarização estado-unidense também podem ter uma função económica – criar indústrias joint-venture de armamentos e reduzir compras externas.

8. A diversificação do comércio com a Ásia e a diminuição da dependência dos EUA e da UE é necessária mas insuficiente se o conteúdo exportado continuar a ser predominantemente mercadorias primárias. Mudar parceiros comerciais mas perpetuar padrões comerciais de "estilo colonial" não diminuirá a vulnerabilidade. A América Latina, especialmente a Bolívia, Brasil, Peru e Equador, devem insistir em que os seus produtos primários sejam industrializados e seja acrescentado valor antes de serem exportados para a China, Índia, Japão e Coreia.

Em resumo: a actual crise mundial revela as limitações e insustentabilidade das políticas e regimes sociais-liberais. No reconhecimento das vulnerabilidades e da volatilidade jaz o fundamento para uma transformação estrutural completa com base em mudanças na posse da terra, nos padrões comerciais e na propriedade de indústrias estratégicas. A crise actual desacreditou tanto as receitas neoliberais como sociais-liberais e abre a porta para um novo pensamento que liga despesas sociais com propriedade social.
Fonte:Resistir.info

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